O que nos leva a procurar um problema para resolver, na falta de um desafio? Sim, foi isso mesmo que você leu. No fundo, exigimos problemas, pois fica difícil lidar com coisa pior, como tédio, apatia ou medo. Hoje em dia, fala-se muito sobre realizar aquilo que nos apetece, realizar-se, trabalhar naquela carreira que almejamos como se fosse a melhor coisa do mundo a nos acometer, em tudo: em qualidade de vida, em remuneração, em reconhecimento.
Assim, procuramos nos alocar em algo. Um grupo, por exemplo: uma igreja que nos receba de braços abertos. Ou então, uma vaga: que seja, de trabalho, em uma universidade, no coração de alguém, ou ainda uma vaga de garagem, um lugar no elevador, um espaço, um tempo. Às vezes, uma fila bem organizada é um baita lenitivo. Preenche, mesmo que precariamente. No entanto, aceitamos de bom grado essa via de mão dupla, a nos exigir inclusive aquilo que nem esperávamos, mas o necessário para sustentar esses sonhos. Tudo para uma plena e estável e duradoura satisfação, mesmo que essa sensação já esteja definhando. Nossas expectativas são surpreendentes, para nos mantermos motivados.
Quer dizer, pretendemos ser o melhor possível, mesmo naquilo em que de fato não somos realmente habilidosos, até o ponto em que descobrimos que talvez não sejamos tão bons assim, ou que não existam vagas suficientes, ou que nossas ilusões tinham a ver com o mundo que sonhávamos, sem considerar o resto, que é importante, que é tudo. Às vezes, temos nostalgia de uma fila que não há, mesmo de uma que nos leve a lugar algum. Careta é pouco quando notamos que o mundo, o sonho são bem pequenos, ou grandes demais para sustentá-los, Calma. Esclarece-se: pesadelo também é o mundo ou são os sonhos, às vezes. Um sonho pode ser uma coisa muito alentadora, mas viver disso também é descobrir-se antiquado, deslocado, um tanto louco.
O louco consegue ver caminhos, reais e imaginários. Ele enxerga o caminho que pode existir mesmo quando no momento só haja muro e pedra. Um louco é um escapista, porque ciente de que uma miragem não nos preenche, de que o vazio é uma coisa medonha. Especialista em planos de fuga, todo o louco deixa um plano de fuga sempre à mão: podemos trocar nossos sonhos.
Dá trabalho. Um tanto insanos, vamos fazendo outros sonhos, devaneios, obsessões. Qualquer brisa, um alento. Assim, quando paramos de nos importar, aparece uma chance, que podemos não levar a sério mesmo de primeira. Despretensiosamente, achamos que aquilo possa ser tolo, quimera, mais uma ilusão de óptica provocada por nós mesmos. A trilha realizada pelo peregrino é dolorida e bonita: a visão de uma curva nos impede de vislumbrar o todo, já que a todo o momento projetamos um fim nessa curva que não existe. Até sabemos disso, mas sentir é outra coisa.
O fato é que as pessoas aqui reunidas, um tanto tresloucadas deixaram que os sonhos viessem à tona. Permitiram-se pensar um projeto, um texto, um reconhecimento, uma confissão, um diário, um local de debates e disputas, amigáveis ou não, mesmo que nos percamos no meio do caminho. Parece que isso já não importa tanto, já que todos aqui decidiram revelar o que sabiam, e ainda escrever sobre o que não sabem – e que se propõem, portanto, a compartilhar sua ignorância e curiosidade.
Uma confraria de estranhos unidos pelo acaso de uma fila, todos tão díspares, mas camaradas. É disso de que se trata o Confrariando.
Portanto, seguem alguns avisos a você, nobre leitor, cara leitora:
– O pacto, se aceitá-lo, é só seu. Não se sinta tão comprometido conosco. Ao contrário.
– Seremos arbitrários. Diremos aqui assuntos de nosso interesse. Aceite isso também.
– Teremos opiniões que não serão sempre acolhedoras, nem sempre consistentes, ou coerentes. Nosso compromisso é nossa dignidade, até onde ela for.
– Sem pretensão de sermos grandes, porque esse já não é algo tão importante como um fim em si, seremos generosos o suficiente, movidos pelo afeto e pela nossa curiosidade.
Cyrano – um louco a referir-se a outro, Dom Quixote – sabia que os moinhos de vento poderiam derrubar a triste figura, mas também arremessá-lo às estrelas.
Por fim, se o conhecimento é esse algo partilhado, nunca divisível, sempre multiplicável enquanto houver pessoas, que sejamos camaradas o suficiente para tornar um saber um pouco menos obscuro e mais significativo. Como um trecho de uma obra, um hieróglifo, um desenho, solto, a esmo, que séculos depois, junto a outros cacos, fomenta toda a visão de uma era.
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