Alguns acontecimentos recentes no meio artístico têm gerado reações acaloradas da porção mais reacionária do público. A exposição do Queermuseum, em Porto Alegre, a exposição La Bête, no MAM e a peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu foram pivôs de controvérsia e suscitaram inclusive (para bem ou para mal) a intervenção da justiça.
Uma das reações mais interessantes (sob o ponto de vista fenomenológico claro, porque sob o ponto de vista cultural é tudo muito lamentável) foi o surgimento de questionamentos sobre o que é ou o que deixa de ser arte. Para alguns dos “críticos” de plantão, muito do que temos nos dias de hoje à guisa de expressão artística (nas artes plásticas, cênicas e na música, para ficarmos nos mais visíveis) na verdade não é arte.
Dirão eles: um homem nu em meio ao público (crianças presentes!) não é arte; um transgênero fazendo o papel de Jesus não é arte; Wesley Safadão não é arte (ou, pelo menos, não é música que preste).
Sobre esse último ponto, um amigo escreveu um post bastante bem articulado sobre o Prêmio Multishow 2017, em que Luan Santana, Wesley Safadão e Anitta (entre outros) concorreram em diversas categorias. O amigo perguntava onde estavam “Marisas, os Caetanos, os Djavans, os Tons, os Miltons, seus sons e seus dons geniais”, enfatizando a importância de Milton Nascimento, cujo aniversário foi há pouco.
Olha, eu até me compadeço, viu. Sou da mesmíssima geração e meus gostos musicais são bastante parecidos. Ele próprio coloca com precisão: gosto não se discute. Ainda assim, pergunta: o que aconteceu com a música brasileira?
Nada que não venha acontecendo o tempo todo, em todos os lugares, em todas as expressões artísticas: os tempos mudam, as gerações novas substituem as antigas, os gostos mudam, a tecnologia muda, a sociedade muda. Mudança é a única constante, diz aquele velho jargão que teima em não mudar. Da mesma forma que lamentamos o Wesley Safadão no Prêmio Multishow 2017, muita gente lamentava o Gilberto Gil (com Os Mutantes!) no Terceiro Festival da Record de 1967, meio século atrás. Do mesmo jeito que sentimos falta de um cenário em que o Milton Nascimento é relevante nos dias de hoje, naquela época poderíamos perguntar por onde andava o Orlando Silva, o Francisco Alves, a Aracy de Almeida, e por aí vai.
As coisas mudam, e por mais que naquela época o valor da Tropicália fosse questionado, hoje sentimos falta daqueles tempos. Nós, a geração que começa a ensaiar sua saída de cena (oxalá apenas para daqui umas quatro ou cinco décadas), nos agarramos a um cenário musical que também está de saída. O que era transgressão virou clássico, quem diria, e clássico não mexe com as fibras das gerações mais novas.
O mesmo movimento pode ser averiguado em qualquer época das artes plásticas. Michelangelo teve que aguentar ver paninhos, nuvenzinhas e folhinhas colocados para todo lado no teto da Capela Sistina, pois o Clero não tolerava aquelas cenas de nudez renascentista, tão contrastantes com a pudica abundância de roupas dos quadros góticos. Os mesmos admiradores da arte renascentista não gostavam das imperfeições perfeitamente iluminadas da pele representada por Rembrandt, e não entendiam o valor da precisão fotográfica das cenas de Vermeer, pintadas no século XVII.
Os rejeitados do Salão de Paris, a maior exposição de Belas-Artes da Europa, não se fizeram de rogados e, em 1863, organizaram o Salão dos Recusados. Ali surgiria o movimento impressionista, que causou ojeriza em vários críticos (como causara nos organizadores do Salão de Paris, claro). Um deles, como conta o artista plástico e confrade Cleido Vasconcelos, chegou a aconselhar os maridos de mulheres grávidas que fossem afastadas da exposição, pois corriam o risco de abortar se contemplassem os quadros ali expostos. Quem fazia parte dos artistas do Salão dos Recusados? Monet, Renoir, Cezanne, Manet, entre outros. Hoje, mais de um século e meio depois, olhamos para “o que passa por artes plásticas” e sentimos falta dos “clássicos”. Nunca serão Monet, nunca serão Renoir, lamentamos.
Ainda bem, assim as gerações vindouras terão de quem sentir falta.
O interessante é que o oposto também é verdade: Renoir, Cezanne, Monet e toda a turma do Impressionismo rejeitavam as Beaux-Arts de antes de seu tempo. Caravaggio, o pintor italiano barroco da transição dos séculos XVI e XVII rejeitava tão visceralmente o que veio antes de seu tempo que seus quadros do Novo Testamento eram ambientados em seu século, com roupas e objetos seus contemporâneos, ao invés das imitações gregas e romanas clássicas do período anterior. (Desnecessário dizer que a Igreja não morria de amores por ele, também).
Um acontecimento atual que também pode ser explicado pelo mesmo mecanismo de rejeição das novas gerações pelo que vem de antes de seu tempo: o “fracasso” de bilheteria de Blade Runner 2049. “Fracasso”, assim, entre aspas porque o filme recuperou os 150 milhões de dólares de custo de produção em uma semana, e hoje, três semanas depois, já ultrapassa os 220 milhões de dólares em faturamento. “Fracasso” é o que Hollywood entende como um retorno de menos de 100% em um mês. Tudo tem que ser blockbuster para ser sucesso, e a mídia especializada concorda com gosto.
Já falei bastante sobre Blade Runner 2049 em minha resenha, e nós do Confrariando já falamos mais ainda em prosa escrita e em prosa falada, não cabendo, portanto, dizer de novo o que já foi dito (a gente gostou demais desse filme). O fato é que reconhecer Blade Runner 2049 como fracasso de bilheteria é algo em sincronia com a sucessão das gerações e a mutação dos gostos.
O filme já nasceu um clássico, pois recupera e expande sobre o filme anterior, 35 anos depois de seu lançamento. Dialoga com o original e usa uma linguagem que não é estranha à utilizada naquele que é considerado um dos grandes clássicos da ficção científica cinematográfica. Tem longas cenas em que o espectador é convidado a mergulhar em sua atmosfera de pós-civilização, e cada um dos momentos de suas 2 horas e 43 minutos contribui para essa atmosfera. Em outras palavras não é compatível com o que o público em geral (salvo raras e preciosas exceções) espera de um filme nos dias de hoje. Aliás, bem à guisa do original de 1982, que foi — esse sim — um fracasso de bilheteria.
Sem querer cometer estereótipos, mas não estando nem aí se por acaso alguém achar que os cometo, o público espera filmes mais rápidos, mais energia, mais ação, mais suspense, mais terror, mais humor, mais “wow”.
E nós, os que amamos o filme ficamos felizes, pois se ele fosse um sucesso de bilheteria, alguém iria sugerir alguma excrecência do tipo “Capitão América versus Blade Runner”, ou coisa do tipo. Assim, sendo um “fracasso”, quem sabe esperamos mais 20 ou 30 anos até que um sucessor de Denis Villeneuve se anime a dar continuidade ao universo.
Noves fora, como disse ao meu amigo viúva do Milton Nascimento, agimos (e agiremos sempre) na certeza de que tudo o que veio antes de nós é velharia, e tudo o que vier depois é porcaria. Só presta o que nos é reconhecidamente familiar, o que nos espantou na juventude e nos acompanhará pelo resto da vida.
Bom mesmo era o Led Zeppelin que descobrimos na adolescência, não o que passa por música pop nos dias de hoje. E toda geração terá seu exército de Led Zeppelins para admirar e verá surgir um exército de pré- e pós-Led Zeppelins que irá rejeitar.
Mas será que o que vem por aí é melhor do que o que sai de cena? Essa é uma questão subjetiva e absolutamente sem sentido. Quem a responde mais adequadamente é Charles Darwin, por incrível que pareça. O que se pode depreender da Teoria da Evolução é que os mais bem-sucedidos não são necessariamente os mais fortes ou os mais rápidos, mas sim os que melhor se adaptam às condições e ao ambiente em que vivem. As condições e o ambiente mudam, e ficam apenas os que conseguem mudar e se adaptar. (Os criacionistas de plantão que quiserem se manifestar podem, por favor enviar seus comentários por escrito, com firma reconhecida e já previamente rasgados, no sentido de facilitar o nosso trabalho aqui no Confrariando. Obrigado).
O mesmo ocorre com qualquer manifestação artística: as condições e a sociedade mudam, e a arte muda também. Muitas vezes a arte se adianta às mudanças, e outras tantas vezes as provoca. E não é porque não é do meu (ou do seu) gosto, que não é arte. Não é porque soa estranho, fere a minha (ou a sua) sensibilidade, se opõe à minha (ou à sua) crença religiosa que não é arte. É arte sim. E um dia será considerada clássica, vai deixar saudade, e aqueles que gostam vão se opor ao que vier depois.
O ciclo velharia-bom-porcaria não está nem aí para quem dele discorda, pacientemente apontando o caminho do cemitério a todos.
Afinal, paciência e determinação não lhe faltam.
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