É incrível como algumas trivialidades do cotidiano podem alavancar profundas reflexões. Hoje, tornei-me vítima de dois cliques fotográficos. Sabe aquele tipo de foto, tirada do celular, na hora do almoço, sol a pino, ao ar livre? Como recusar? Foi a pedido de uma de minhas amigas mais queridas. Lá fui eu, de frente ao sol implacável das treze horas. Eu, com minha pele austríaca, olhos claros e impetuosos o suficiente para dispensarem óculos escuros. O resultado? O mais alto desafio à minha autoestima (construída a duras penas durante décadas até ganhar o verniz da minha maturidade).
Com requintes de crueldade, a lente do celular registrou uma feição distorcida que misturava o profundo sofrimento causado pelos raios solares diretamente em meus olhos e a heroica tentativa de um sorriso. Talvez eu não precise explicar que não há tratamento antissinais, no mundo inteiro, que possa salvar o semblante de uma mulher nessas condições…
São inacreditáveis as interpretações que uma situação tão pitoresca (e traumatizante para os mais frágeis) pode suscitar. Lembrei-me do mito da Medusa. Você já reparou que todas as estátuas – absolutamente todas –, criadas pelo aterrorizante olhar de Medusa tinham semblantes de sofrimento? Até porque, não tinha como ser diferente, não é mesmo? Como num clique fotográfico, a pessoa que olhasse para esse ser mitológico era congelada exatamente no momento de terror. Um segundo da manifestação máxima do pavor é perpetuado por um simples clique da Medusa.
A fotografia é magia das mais perigosas. Não é pra menos que se popularizou o medo que indígenas teriam das máquinas fotográficas. Décimos de segundo da sua vida podem ser perpetuados. A fotografia transforma uma ínfima parte de você em uma representação de você como um todo. Isso significa eternizar o melhor ou o pior centésimo de segundo de sua vida.
Ah, a magia das fotos. Acho que os mais jovens não têm o prazer que nós, os veteranos, tivemos em nossas infâncias. Após a fartura dos almoços italianos de domingo, o momento de sentar-se no tapete da sala e abrir as velhas caixas de sapatos. Um alerta aos não veteranos: não havia sapatos nessas caixas! Era costume guardar dessa forma as fotografias reveladas em papel. Puxa… acho que essa nova geração não faz ideia do que seja isso… Minha sugestão: procurem no Google, ok?
Algumas fotos nem eram coloridas. Trajes antigos, penteados ultrapassados. Quem seriam aquelas figuras tão excêntricas? Logo surgia uma tia de mais idade, óculos em punho, nariz quase encostando na foto: “Ah, sim! Esta era sua bisavó.” E, então, a imagem da minha bisavó era eternizada em minha memória em função daqueles décimos de segundo em que se deixou fotografar. Eu nunca saberei se a pobre era realmente carrancuda ou se estava com fome, cólica ou dor de cabeça. Aquele simples clique a petrificou naquele diminuto espaço de tempo.
O pintor e ensaísta belga Phillipe Dubois, em seu livro chamado ”O Ato Fotográfico“ (Campinas/SP: Papirus, 2003) menciona um episódio bastante interessante de sua vida. Quando moleque, ele participava de uma corrida de 300 metros quando, liderando à 25 metros da linha de chegada, percebeu a alegria de seu pai mirando a máquina fotográfica em sua direção. Em suas próprias palavras (p.163):
“Ao ver o aparelho, ao pensar provavelmente que eu seria ‘preso’ pela película, paro de uma vez e fixo meu pai que me fixa. Recuperando-se de sua surpresa – mas feita a foto -, este cansou-se de berrar para que eu continuasse, para que eu voltasse à corrida, tornasse a correr. De nada adiantou. Eu permaneceria imóvel em meio aos gritos, completamente petrificado – a foto está aí para mostrar”.
Ao ler esse trecho do autor, não me contive: “ah… o clique da Medusa que petrifica…”
Aos amantes da fotografia, recomendo a leitura dessa obra de Dubois. Com uma abordagem ensaística, ele aborda o corte temporal e o corte espacial vinculados em um mesmo movimento chamado de Ato Fotográfico.
O roteirista e doutor em Comunicação Maurício Lissovsky, em sua obra “A Máquina de Esperar” (Rio de Janeiro/RJ, Mauad, 2014), capta perfeitamente a proposta de Dubois: o caráter implacável da fotografia cuja navalha dá conta de interromper tempo e delimitar espaço. Em suas palavras (s/p):
“[…] somos obrigados a rever o sentido da interrupção que o gesto fotográfico perpetra. Philippe Dubois, em O ato fotográfico, certamente o melhor livro de ensaios sobre a fotografia publicado nos anos 1990, faz passar o conjunto das questões teóricas tradicionalmente vinculadas à fotografia pelo fio da navalha de seu gesto fundador, o ‘corte’, que com seu duplo gume segmenta, de um mesmo golpe, o tempo (‘o fio da duração’) e espaço (‘o contínuo da extensão’).”
Seja como for, eu ousaria algumas recomendações: (1) frente à possível crueldade da navalha de uma foto, use sua mente criativa para dar asas ao tempo e ao espaço; (2) não se permita fotografar quando estiver com algum incômodo; (3) caso tenha sido o autor de um clique desaforado, delete a foto, por compaixão ao fotografado!
Muito bom! Adorei... e com certeza vou refletir sobre uma possível fotografia, rsrsrsrrs.