Antes de começarmos, um lembrete: esse texto é a continuação do meu texto da semana passada, O espelho de Galbraith. Sugiro passar um pouco de raiva com aquele antes de se enfurecer com este.
Uma frase famosa erroneamente atribuída a Albert Einstein especifica:
“A definição de insanidade é fazer as coisas sempre da mesma maneira e esperar resultados diferentes.”
Em que pese a frase não ser do ilustre físico alemão, ela estabelece algo de profundamente verdadeiro: não é nada menos que insano fazer agir várias vezes da mesma forma e esperar que os resultados dessas ações sejam diferentes.
Até pouco tempo atrás, eu acreditava que a frase acima fosse uma corruptela de uma frase mais profunda, também atribuída a Einstein:
“Os problemas significativos que enfrentamos não poderão ser resolvidos com a mesma mentalidade com que os criamos.”
Esta frase não fala sobre insanidade, mas reforça um ponto fundamental: é preciso modificarmos nosso modo de pensar e agir caso queiramos resolver os problemas que criamos por termos adotado uma mentalidade nociva e e um conjunto de ações igualmente nocivo. Este pensamento também não é de Einstein, mas gosto muito dele, também pela verdade que abriga: a solução dos problemas que enfrentamos — criados por nós mesmos — depende de mudarmos nossa mentalidade.
Parece simples, quase uma obviedade, não é mesmo? Pois é, e justamente por isso me espanta que insistamos com tanta “verve” em ignorar esse ensinamento, mais especificamente no que tange à triste situação de nosso país.
Veja: no artigo da semana passada, apontei um exemplo claro e clássico de dois lados do espectro político atual que agem rigorosamente da mesma forma, isto é, justificam as atitudes corruptas de seus ídolos políticos, enquanto condenam rigorosamente as mesmas corrupções nos políticos do outro lado.
No passado, o pessoal da esquerda dizia que o Mensalão — um crime, puro e simples, cometido pela mais alta cúpula dos poderes executivo e legislativo — era a única maneira de aprovar a pauta do governo, em benefício do povo. Todo mundo que não é de esquerda chiou — e com razão — sobre esse despautério, rechaçando os argumentos furadésimos dos defensores.
Já hoje, o pessoal da direita diz que a alocação de 40 milhões em emendas para cada deputado que votar positivamente a pauta do atual governo — um Mensalão 2.0, ou seja, um crime puro e simples, proposto pela mais alta cúpula dos poderes executivo e legislativo — é a única maneira de aprovar a pauta do governo, em benefício do povo. Todo mundo que não é tiete do atual governo chia — e com razão — sobre esse despautério, rechaçando os argumentos furadésimos dos defensores.
Será que essa gente ainda não percebeu que está agindo igualzinho o outro lado? Será que é tão difícil assim? Será que ainda não ficou óbvio que não dá para resolver os problemas com a mesma mentalidade que gerou esses problemas?
Alguns — independente de que lado estejam — vão dizer “Ah, mas não tem nada a ver! Eles estão errados, e nós estamos certos! No nosso caso, um desviozinho é permitido, porque vai levar a um lugar melhor!”
Balela. Pura balela. Faz mais de quinhentos anos que adotamos essa postura: uma “ligeira” subversão da ética em nome de um resultado melhor para “todos”. Colônia, Império, República Velha, República Nova, Getúlio, Pós-Guerra, 50 anos em 5, Ditadura, Nova República, Collor, Real, PT, e agora Bolsonaro: em todos os casos — sem absolutamente nenhuma exceção — agimos da mesma forma: demonizamos o que veio antes; subimos ao poder para mudar tudo; trombamos de frente com o “sistema”; subvertemos a ética — por meio da porcaria chamada “jeitinho brasileiro” — para supostamente fazer a coisa funcionar; damos com os burros n’água; abrimos as portas para ideias radicalmente opostas; enxague; aplique novamente o xampu; repita o processo ad nauseam.
É como se tivéssemos uma fila inesgotável de Sísifos, empurrando a pedra — cada um à sua maneira, com seu número, seu logo e seu slogan — montanha acima. Quando ela inevitavelmente rola para o outro lado, outro Sísifo grita, valoroso: “Xacomigo!” e repete o processo. A cada iteração o país é um pouco mais destruído, um pouco mais espoliado. A cada iteração o Sísifo da vez grita contra a sandice de seu antecessor em discursos inflamados, mas na dificuldade vai tomar rigorosamente os desvios daquele a quem denunciou, obtendo o mesmo resultado no final, e se colocando em posição de ser ele o próximo denunciado.
A pergunta óbvia é: como fazer para quebrar esse ciclo absurdo de acharmos que estamos dando um giro de 180 graus, enquanto fatalmente trocamos seis por meia dúzia?
“Ah, mas o Bolsonaro não tem nada a ver com o Lula! Não poderiam ser mais diferentes!”, gritará a metade da direita. “Você está louco! O Lula fez o país crescer e tirou um monte de gente da miséria! Não tem nada a ver com o Bolsonaro!”, gritará a metade da esquerda.
Mas a verdade que, em meio a tantas diferenças ideológicas, ambos os lados, no andar da carruagem, se entregam ao tal “pragmatismo”, abandonam seu discurso eleitoral e abraçam o fisiologismo do Centrão. Ambos os lados se corrompem em nome da tal “governabilidade”, defendem os corruptos de seu lado, repetindo o que condenaram no lado de lá, e no fim das contas, quem ganha — invariavelmente — é a corrupção. A boa vontade em mudar dá lugar ao “veja bem”, à relativização, ao “pelo menos nos livramos deles”, sem que nenhum resultado concreto fique como legado.
O que é impressionante é a taxa de sucesso desse tipo de relativização: no mais das vezes, os eleitores do salvador da pátria de plantão vão ouvir o “Veja bem” e vão concordar. O fim da inflação, com o Plano Real, e a privatização do sistema de comunicação seriam a rampa de decolagem para o progresso do país. Quando não aconteceu, veio o “Veja bem” da crise internacional e o “Veja bem” com as justificativas para a lambança da privataria. Lula acabaria com a miséria no país, mas quando seu governo foi pego de calças curtas no Mensalão, veio o “Veja bem” do se não for assim, não tem jeito. Dilma foi pega descumprindo a LDO e passando por cima do Congresso (e da Constituição) ao conceder créditos suplementares por decreto, além de perpetrar pedaladas fiscais, a fim de maquiar o resultado fiscal, ouvimos até hoje o “Veja bem” de que outros presidentes também deram pedaladas, e que os créditos suplementares eram necessários, ainda que inconstitucionais. A cleptocracia implantada por Michel Temer foi enfrentada com o “Veja bem” do “Pelo menos evitamos o destino da Venezuela”. Agora, ainda no começo do governo Bolsonaro, vemos ataques frontais às universidades, uma guerra ideológica contra os fantasmas inventados dos “esquerdistas”, um plano mirabolante para virtualmente pagar deputados pela aprovação de pautas, enquanto o desemprego passa de 12 milhões do fim de 2018 para 13 milhões. O PIB de 2019? A cada semana sai uma análise baixando mais um pouco, com a possibilidade de ser negativo, caso continuemos nessa marcha desgovernada. O “Veja bem” vem com tudo:
- “Você está torcendo contra!” Como se o responsável pelo fracasso que se avulta no horizonte fosse a torcida, e não a incompetência do time em campo.
- “São só 100 dias de governo, depois de anos e anos de destruição!” Não, são 100 dias de inércia da direita, depois de 14 anos de destruição da esquerda e 502 anos de destruição da direita. Nesses 100 dias, o que fica claro é que a “nova política” usa rigorosamente a mesmas ferramentas da velha, agora com tons nacionalistas e moralistas.
- “Vamos aprovar a reforma da Previdência que tudo entra nos eixos.” Do mesmo jeito que tirarmos a Dilma ia acabar com a corrupção e que aprovarmos a reforma trabalhista ia acabar com o desemprego? Sei.
- “Pelo menos tiramos o PT! “Sim, e o Mensalão do passado será substituído por uma verba parlamentar de 40 milhões para cada deputado que votar com o governo. Belaroba tirarmos o PT.
E mais: os fãs de carteirinha dos governos passados e do atual batem palma e ecoam cada um desses “vejabens”. Aceitam as desculpas, esquecem que o resultado fica brutalmente aquém do que deveria, e seguem em frente, aplaudindo seus ídolos (e, em alguns casos, jurando de pé junto que são inocentes).
Lá atrás, quando adotaram seus ídolos, rejeitaram os anteriores e denunciaram seus fãs batendo no peito “Eu não tenho corrupto de estimação!”. Isso até que seus eleitos comecem a fazer lambanças, pois a partir desse momento saem em sua defesa com sangue nos olhos e a faca nos dentes. Gritam impropérios, chamam o “outro lado” de coxinha ou esquerdopata, conforme suas preferências, definem tudo e todos que não estão rigorosamente de acordo com seus ídolos como sendo inimigos a serem combatidos. Só não fazem uma coisa: questionar se seus ídolos têm, de fato, razão, ou se estão traindo os princípios que os tornaram ídolos aos olhos de quem os defende.
É nesse sentido que são todos iguais. É nesse sentido que não há diferença entre direita e esquerda. Ideologia? Ideologia mais dois copos d’água matam a sede. E só. Porque, no fim das contas, a ideologia vai às favas quando o que interessa é perpetuar o poder e exercê-lo (e, se esse exercício beneficiar quem o exerce, fazer o que, né…). O Centrão fisiológico, que sempre apoiou o alcaide de plantão, aprendeu isso faz séculos e é o único beneficiado nesse processo como um todo.
Noves fora, responder a pergunta “Mas e aí, que fazer se direita e esquerda são gêmeas siamesas em seus métodos, sua incompetência e suas desculpas?” obviamente não é fácil. Mas mesmo que não seja possível enxergar o caminho todo até a resposta, uma coisa é cristalina: é preciso quebrar o ciclo. É preciso que paremos de eleger salvadores da pátria que logo ali na frente vão trair o que defendiam. É preciso deixarmos de ter políticos de estimação. É preciso, mais que isso, sairmos do estado de negação em que nos encontramos, rejeitando a noção de que temos, sim, políticos de estimação.
Vou repetir (por mais que você vá negar de novo): temos políticos de estimação.
Você que defende o Lula, apesar das inúmeras evidências contra ele nos casos do tríplex e do sítio, tem o Lula como político de estimação. Você que defende o Bolsonaro apesar dos 200 mil que ele recebeu de propina da JBS (depois de “lavar” o dinheiro por meio do partido), e propor a criação do Mensalão 2.0, tem o Bolsonaro como político de estimação.
Quer uma prova? Você concorda com veemência com uma das duas frases do parágrafo acima, enquanto rejeita a não poder mais a outra, independente do lado político que escolheu, e independente de ambas serem verdadeiras (o fato de que você não acredita que ambas sejam verdadeiras é mais uma evidência de sua parcialidade).
Pois é, é preciso encararmos a dura realidade de que nossos ídolos não são perfeitos, e precisam ser cobrados cada vez que pisarem na bola. Já falei sobre isso quando argumentei que somos torcedores, e não eleitores, o que é um ponto de vista válido, apesar da chiadeira que o artigo causou na época. Pior: hoje, mais de um ano depois, acho que está mais difícil entendermos que não devemos agir como torcedores, pois a polarização aumentou ainda mais.
Ocorre que, infelizmente, é o único jeito: deixarmos de lado o viés de nosso ponto-de-vista (e, se formos honestos de verdade, de nossos preconceitos).
Isso implica em olharmos em outras direções do que só o umbigo de nosso político de estimação:
- Olhar para nosso político de estimação e enxergá-los como seres humanos capazes de cometer erros, tanto acidentais como propositais;
- Olhar para os efeitos de suas ações e criticá-las. Lógica e construtivamente;
- Olhar para o que o país realmente precisa — e não para o que nossas ideias preconcebidas nos dizem — e lutar para que o governo atual caminhe nessa direção;
- Olhar para nossas falhas de conhecimento e julgamento e buscar corrigir-nos;
- Olhar para o que foi feito de bom nos governos passados — e não adianta negar: algo de positivo todos os governos anteriores e este que está aí tiveram/tem para oferecer;
- Repudiar as falcatruas em nossos ídolos que condenamos do lado de lá;
- Estudar História;
- Estudar História um pouquinho mais;
- Entender que quem pensa diferente de mim não é vagabundo, bandido, almofadinha, coxinha, mortadela, iludido, alienado ou qualquer coisa nessa linha, mas sim alguém com convicções tão válidas quanto as minhas, e tão cidadão quanto eu;
Do contrário, continuaremos nessa toada triste de apoiar o Sísifo da vez, enquanto o país continua sua marcha inexorável para o brejo.
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