Sou capaz de apostar que você vai aceitar sem dificuldade algumas das afirmações a seguir, e vai rejeitar com veemência outras:
- A tortura é uma maneira eficiente de se obter informações precisas em pouco tempo.
- Lula é inocente de todas as acusações feitas contra ele.
- A liberação do porte de armas vai melhorar a situação da violência que enfrentamos no Brasil nos dias de hoje.
- O juiz Sergio Moro demonstra claramente que é parcial e partidário do PSDB porque nunca sequer cogitou processar Aécio Neves.
- O maior problema que enfrentamos no Brasil, nos dias de hoje, é a desigualdade social.
- O Brasil será um país melhor o dia que abolirmos todos os impostos.
Muita gente vai dizer um sonoro “Sim!” para 1, 3 e 6, gritando “Não!” (provavelmente seguido de vários palavrões) para 2, 4 e 5. Em boa parte dos casos, vai ser exatamente o contrário, claro.
Nas duas situações há uma característica comum: infelizmente falta pensamento crítico. (Se você questiona todas, sem exceção, e tem argumentos claros e racionais para tanto, parabéns!)
Os sonoros “Sim!” e “Não!”, na maioria dos casos, são proclamados com as vísceras, e não com o cérebro. São respostas proferidas com base em emoções, preconceitos, crenças pessoais construídas ao longo de anos, sem muita consideração racional. Muitas vezes são baseadas no que chamamos de “bom senso”, sem que essa expressão seja questionada. Outras, são parte de valores e opiniões que nos são passadas por figuras que têm (ou tiveram) autoridade moral sobre nós: pais, avós, líderes, ídolos, e por aí vai.
O que falta? Falta pensar racionalmente sobre o assunto. Falta juntar informações acerca das afirmações. Falta pensar no ponto de vista oposto. Falta admitir a possibilidade de que a resposta pode não ser um “sim” ou um “não”, assim, preto-e-branco, mas acomodar tonalidades de cinza. Vixe, para quem não titubeia em emitir uma opinião, na vasta maioria dos casos falta muita coisa.
A boa notícia? Dá para ser diferente.
O astrofísico Neil deGrasse Tyson ajuda nesse sentido, apontando (mais) uma deficiência em qualquer sistema de ensino e que, se corrigida, resolve a questão com louvor. Tyson aponta para o fato de que ensinamos muita coisa aos nossos alunos, mas falta ensinar-lhes a pensar criticamente. Em outras palavras, ensinamos ao aluno o que pensar, mas deixamos de lado a importantíssima tarefa de ensinar-lhe como pensar.
Com o objetivo de ajudar nos primeiros passos do pensamento crítico, a educadora Samantha Agoos, do TED-Ed, criou um texto animado por Nick Hilditch e disponibilizado no YouTube. O texto, simples e claro, é um verdadeiro bê-á-bá do pensamento crítico, e pode ser resumido nos cinco pontos a seguir:
- Formule adequadamente sua questão. Quando concordo ou discordo com uma afirmação qualquer, com o que exatamente estou concordando ou discordando: com a afirmação em si, ou com uma implicação dessa afirmação para mim e para minha vida? Por exemplo, se concordo com o ponto número 6, lá em cima, realmente acho que abolir todos os impostos é uma boa ideia, ou o que realmente penso é que pago impostos demais para o retorno que percebo por parte do estado? Chegar à questão correta não é (ou não deveria ser) um exercício trivial, feito “nas coxas”. Pensar sobre o que realmente queremos ou precisamos em uma situação qualquer, ou o que de fato nos incomoda em uma situação não é fácil. Temos que nos despir de aparências, em muitos casos encarando facetas de nossa personalidade que não são assim “tão legais” e motivações nada nobres. Mas se não identificamos a questão da maneira correta, certamente não estaremos correndo atrás do resultado mais adequado para nós mesmos.
- Informe-se. Uma vez que a questão foi adequadamente formulada, busque informações que te ajudem a decidir por um curso de ação. Leia muito sobre o assunto, converse com especialistas, fale com quem já enfrentou essa situação e chegou a alguma conclusão (de preferência com pessoas que chegaram a conclusões diferentes). E mais: resista bravamente à tentação de procurar e absorver apenas informações que corroborem o que você, lá no fundo, pensa sobre o assunto. Estamos vivendo o reinado do Facebook, que se apoia pesadamente sobre esse subterfúgio: nos mostra apenas “notícias” e opiniões que reforçam o nosso ponto de vista pessoal. Por isso estamos acostumados a aceitar de bom grado aquilo que nos agrada, e a rejeitar sem titubear aquilo que vai contra nossas crenças. Quem age assim não procura se informar, mas sim está sempre em busca de um cobertor de segurança, como aqueles que vemos crianças de dois anos arrastando pela casa.
- Use as informações de maneira crítica. Diante das informações à nossa disposição, quais são os conceitos relevantes acerca do assunto? O que se pode deduzir de maneira racional? As interpretações que faço com base nas informações são lógicas e racionais? Ou essa lógica é apenas aparente, um verniz que uso para disfarçar minhas preferências pessoais com relação ao assunto? Com base nas informações, é possível atingir meus objetivos? Analisar criticamente as informações e a situação em si é fundamental.
- Pense nas implicações. Mesmo que a priori uma ideia te pareça boa, quais os resultados dessa ideia no médio e no longo prazo? A frase cabal do filme Frankenstein, baseado na obra homônima de Mary Shelley é uma pergunta feita pelo monstro a seu criador. Depois de muita violência, dor e morte, o monstro pergunta ao Dr. Frankenstein algo na linha de: “Em algum momento você considerou as consequências de suas ações?” (Shelley é bem mais sutil, deixando por conta do leitor identificar essa questão no livro). Em muitos casos, na pressa de termos nossa vontade satisfeita, deixamos de considerar pontos e resultados potenciais importantes, que se tivessem sido levados em consideração teriam nos evitado muita dor de cabeça e muito provavelmente levariam a uma decisão diferente.
- Explore outros pontos de vista. Há, obviamente, mais de uma maneira de se pensar sobre uma questão. É fundamental que deixemos de lado aquilo em que acreditamos e que exploremos outras maneiras de pensar. Por que tem gente que pensa diferente? Quais seus argumentos? Como justificam seus pontos de vista? Esta exploração franca e sincera (e não apenas “para inglês ver”) de outros pontos de vista é fundamental para que possamos formular uma decisão racional. Se olhamos, por exemplo, para o ato de tomar uma injeção só sob o ponto de vista de uma criança, o que temos é: “dói, portanto não me interessa”. Mas quando consideramos que a injeção é recomendada por um médico para combater uma infecção, a coisa muda muito de figura. Mesmo que a criança continue se opondo, a mãe ou o pai não vão titubear em realizar o procedimento, uma vez que é do interesse de todos.
A lista de Agoos é esta: simples e direta. Absolutamente útil e um excelente modo de nos iniciar no assunto do pensamento crítico. Não é completa, claro, e nem de longe abrange todas as questões ligadas ao assunto. Mas é um excelente ponto por onde começar. Um primeiro passo seguro em direção ao pensamento crítico.
Por fim, um pequeno alerta: para dar o primeiro passo, é fundamental que o indivíduo primeiramente se levante, uma vez que dar um passo sentado ou deitado é bem contraproducente. Nesse caso, o ato de se levantar simboliza um elemento fundamental para que possamos pensar criticamente: o interesse. O autor Arthur C. Clarke disse tudo: “Onde há interesse, há aprendizado.” Para o pensamento crítico, não há como escapar dessa verdade: precisamos estar interessados em pensar racionalmente para conseguirmos aprender a fazer isso.
E como somos atavicamente apegados às nossas opiniões e preconceitos, talvez esse seja o ponto mais difícil — muitas vezes um obstáculo intransponível — para que seja possível pensar criticamente.
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Foto de Burst.
Como seria bacana todos terem pensamento crítico, não? Aliás, seria mais bacana ainda que, para muitas possibilidades de escrita, mas principalmente pela fala, houvesse muitas reflexões silenciosas, aliás, mais do que isso, escutas! Como é difícil escutar o outro! Agora, como vc mesmo escreveu "somos atavicamente apegados às nossas opiniões e preconceitos", ou seja, já era! Afinal, se mesmo no silêncio, o tamanho do valor dado, principalmente, aos preconceitos, não for considerado, calar a boca não gera espaço para reflexão ou escuta. Quanto às afirmativas, deixo duas perguntas, se Lula fosse letrado, do Sudeste, fluente em línguas, e, principalmente, não estivesse a frente das pesquisa para a eleição de 2018, os processos contra ele teriam tanto destaque? Fala-se muito do legislativo, mas o judiciário é uma vergonha, moroso e caro. Como o recente episódio do Juiz Bretas que acha "normal", pois é legal, ter casa própria, ser casado com uma juíza, mas receber auxílio-moradia.... A outra pergunta. Juiz deveria frequentar as redes sociais, ter fama, ir a encontros com denunciados? E isso não é uma pegadinha, acho a postura do "herói" Moro bastante equivocada. Abs!
Oi Jaylei. Você tem razão quanto a escutar, que implica em observar o mundo pelos olhos do outro. Dificílimo, e fundamental para o pensamento crítico. Quanto às tuas perguntas, pensando criticamente a respeito de ambas, penso que a resposta (para mim) seria "Não" em ambos os casos. Sua primeira, no entanto, não muda o fato de que a resposta à minha questão sobre a inocência do Lula deveria ser "Não", também. Sua segunda questão também não muda o fato de que qualquer ocupante de cargo eletivo federal não pode ser julgado a não ser pelo STF, o que resulta em "Não" também para minha quarta questão. O fato de um monte de corruptos letrados, do sudeste, e de outros partidos sairem ilesos não justifica dizer que Lula é inocente. A vergonha da farra do judiciário não justifica afirmar que Moro convenientemente não processa o canalha chamado Aécio Neves, senador da República. Bom fim de semana procê.
Post muito Bom, só fiquei com uma pulga na orelha, o que é um pensamento crítico? O que seria criticar? Abraços professor.
Oi Julino. O pensamento crítico pode ser definido como o ato descrito no texto: a coleta de informações e a análise objetiva dessas informações, bem como de pontos de vista diferentes para se tomar uma decisão ou se formar uma opinião sobre um assunto. Pensa no contrário do pensamento crítico que facilita: na ausência do pensamento crítico nós decidimos e/ou formamos opiniões com base em elementos subjetivos: opiniões não embasadas, emoções, preconceitos, e coisas afins. O pensamento crítico é uma forma de tomarmos decisões e formarmos opiniões mais alicerçadas na realidade dos fatos e em informações precisas sobre um assunto qualquer. Um abração!
Ruy, não acho Lula inocente, mas acho que ele está "na moda' e em pauta por motivos que não só a corrupção, ou, no mínimo, conivência com a mesma. Quanto ao Moro, sim, quem julga políticos com foro é o STF, mas lembre-se que Delcídio tinha foro... E não questiono as suas sentenças, apesar de juristas e especialistas (com as suas verdades) as questionarem, eu questiono o seu comportamento.
Nesses dois quesitos, concordo com você em gênero, número e grau, Jaylei: a lei brasileira trabalha com dois pesos e duas medidas para tratar pobres e ricos, bem como direita e esquerda. As evidências são claras nesse sentido. E quanto ao comportamento do judiciário, concordo mais ainda: o texto do Elio Gaspari de ontem, na Folha, coloca com bastante propriedade: o judiciário decidiu, por conta própria, subir no banco dos réus. Eticamente muitos deles agem mais como chefes de famílias mafiosas do que como guardiões da lei.