Dia desses, puxei uma palestra do TED que tinha uma modelo internacional chamada Cameron Russell. Ela falava sobre a fragilidade da aparência. Vivendo em plena “cultura das aparências”, interessei-me pelo assunto.
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Fiquei bem impressionada com a forma que a modelo tratou o já tão batido tema sobre a aparência não ser tudo na vida de uma pessoa. Ela destacou a realidade cruel que nossa cultura discriminatória trata indivíduos que não carregam um código genético que esteja devidamente dentro dos parâmetros impostos como esteticamente aceitáveis. Isso mesmo: nossa sociedade estabelece uma normatização doentia que, de forma subliminar ou não, pode nos levar a valorizar (de forma velada o não), a juventude, a cor da pele, a altura, o peso, o tipo de cabelo dentre outros atributos que simplesmente foram inventados e que simplesmente cada um de nós aceitou (sob protesto ou não).
Meu respeitado e querido leitor (e leitora), cá entre nós? O quanto você estaria sendo sincero se não assumisse que, pelo menos uma vez na vida, olhou para uma mulher jovem, alta, magra, branca e de longos cabelos loiros e brilhantes como o mais genuíno símbolo da beleza feminina?
E eu atribuo essa atitude a cada um que esteja fora dessa “régua” – até porque, os que estão dentro, fazem parte de um universo ínfimo de privilegiados, não? Eu, que já não sou jovem, tenho um pouco mais de um metro e meio, curtos cabelos não tão brilhantes já adotei esse tipo de “catalogação” de beleza várias vezes. Apostaria que você, jovem mulher de biotipo afrodescendente e cabelos crespos também já se pegou fazendo isso, nem que por um segundo. E, você também, mulher de baixa estatura e com peso que contraria o “controle de qualidade” dessa indústria tirana da beleza.
Qual de vocês nunca riu de ironias do tipo: se essa mulher tem todos esses atributos, deve pelo menos ser desprovida de inteligência, pois Deus teria que disfarçar sua predileção por esse tipo de criatura.
É fácil e até de bom tom, criticarmos a sociedade, em que estamos inseridos, como se fôssemos totalmente isentos de qualquer prática vergonhosa que ela venha a fazer. Ora essa! Se fazemos parte dessa sociedade, de alguma maneira, contribuímos com algumas (senão todas) dessas práticas, não é mesmo?
É histórica a valorização da saúde, da juventude e da simetria. O poder da ciência em garantir longevidade a esses atributos é mais recente. Chega a ser exagerada a importância que damos à imagem pessoal.
Dentro desse contexto, Cameron Russell menciona que alcançar o status de modelo é como ganhar na loteria. Isso faz muito sentido, pois a combinação genética para se chegar ao efeito da “perfeição estética“ é tão desafiadora como o sorteio de números que formem exatamente aquele em que você apostou.
A fala de Cameron me fez compreender que ser modelo não faz parte de um plano de carreira, mas mero resultado de circunstâncias, como a sorte genética, crenças culturais favoráveis (como a discriminação e a superficialidade), a habilidade de responder a instruções mecânicas (como a combinação simultânea de posições de pernas, braços, mãos e cabeça, por exemplo) e a capacidade de submeter a vontade própria a um regime quase militar de alimentação, descanso e lazer.
Um pensamento que não consegui calar: Ufa! Eu não queria estar no lugar de uma modelo. Primeiro, porque eu valorizo muito um plano de carreira. Segundo, porque não condenaria meu cérebro brilhante ao mecanicismo corpóreo. Terceiro, porque não me submeto a nada (lembre-se: sou mulher pós-moderna dona de minhas vontades!). É claro que, ao ouvir esse pensamento, ri de mim mesma. Fiz lembrar-me daquela fábula da raposa e as uvas. Eu raposa, ao não conseguir algo desejado, declarei: eu não queria mesmo!!!
É incrível como nós, os desprovidos de “beleza padrão”; que não alcançamos o “mérito da fama”; que não fomos sorteados com o bilhete da genética apurada; somos ensinados a lançar mão de pensamentos de compensação para nos sentirmos menos frustrados, não é mesmo? Desafio você a dizer, sinceramente, que não usa também esse subterfúgio.
Eu arriscaria a afirmar que a cultura (principalmente a ocidental) nos ensinou esse modelo de pensamento. Perdeu o ônibus? Foi providência divina, pois vai se saber se ele não se envolveria em um acidente? Você foi poupado! Nunca ganhou na loteria? Que bênção, pois você correria o risco de atrair apenas pessoas interesseiras – sua vida seria um inferno! A combinação em seu DNA lhe conferiu uma verruga na ponta do nariz? Isso será sua marca! Praticamente seu marketing pessoal.
E então? Mais confortado agora? Eu também não! O resultado, ao se perder um ônibus, é um embaraçoso atraso. Ganhar na loteria me faria muitíssimo feliz! Ter uma verruga, como essa da descrição, iria me levar a empunhar um estilete e arrancá-la a sangue frio!
Estaria eu propondo a aceitação de vivermos sem consolo? Sermos como o “super-homem” nietzscheano? Caso não tenha lido nada a respeito, trata-se do indivíduo comum que enfrenta viver suas próprias frustrações e sofrimentos – caracteristicamente humanos – sem qualquer sedação metafísica. É claro que estou simplificando absurdamente o conceito – até porque uma explicação mais fiel renderia outros tantos textos (quem sabe, futuramente…)
Na verdade, eu mesma não me sinto pronta para assumir esse personagem que Nietzsche teria imaginado. Preciso muito de consolos. Não renego nem os metafísicos. Procuro minhas forças pessoais, mesmo não podendo contar com uma loteria genética. Valorizo o ser acima do ter. Gosto de estudar as coisas da matéria e das que vão além-matéria. E, admito que procuro atingir algumas medidas dessa tal régua da boa aparência.
Minhas reflexões tentam apenas encontrar brechas para uma compreensão da relação que travamos com as crenças que acolhemos socialmente.
Neste momento, tendo a concluir que o melhor seja lidarmos com o fluir desconcertante de todos os aspectos que abordei aqui. Talvez, esse lidar signifique assumirmos que, até nós, os desafortunados, a minoria, os mais fracos, os discriminados, os “fora do padrão”, os donos dos bilhetes não contemplados, tenhamos também uma parcela de responsabilidade nessa cultura da exclusão.
Por que será que nos deixamos levar, tão facilmente, pelas mensagens midiáticas tão tiranas? Simplesmente embarcamos em crenças e valores que são criados por detentores de interesses que não nos trazem qualquer garantia de bem-estar.
Não pretendo esgotar o assunto aqui e agora. Eu gostaria de me atrever a plantar esse desconforto nas cabeças daqueles que me leem: ser resiliente aos valores sociais que destaquei nos leva a quê?
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Foto by Marcos Lalli
Carlinha, texto muito apropriado para os nossos dias onde o ter e muito mais valorizado do que o ser e a aparencia aindaaa conta muito!!! Colocou de forma leve, inteligente a inquetacao de que nao podemos nos render a essa ditadura imposta por padroes criados por esteriotipos de beleza entre aspas perfeito!!! parabens!!!
Amigamada, obrigada por tua leitura. Sinto-me lisonjeada!