Pode até parecer um exagero, mas eu vejo em tudo motivo para ficar filosofando. Já não me preocupo mais com essa minha mania, pois os pensadores que mais admiro sempre fizeram isso durante suas vidas. Khalil Gibran tornou-se recentemente um desses em minha lista de admiráveis.
Gibran nasceu em 1883 no Líbano. Viveu a maior parte de sua curta vida (morreu anos 48 anos) nos Estados Unidos. Assim como a Profa. Lúcia Helena (Nova Acrópole), também acho que a vida não precisa ser longa para ser grande. Khalil Gibran pode ser visto como poeta, filósofo, conferencista, pintor etc. Dentre os bens preciosos que ele nos deixou, está a obra O Profeta (Associação Cultural Internacional Gibran, 1980): aquela que será minha fonte de inspiração para as reflexões nesse texto.
Totalmente influenciada pela palestra da Profa. Lúcia Helena, proponho utilizarmos o capítulo “O comer e o beber” que, diga-se de passagem, ocupa apenas uma página do livro. Acredite ou não, Gibran escreveu sobre os mais variados temas da humanidade (eu diria quase todos) em uma obra que não ultrapassa 70 páginas. Sabe como? Com um texto intenso, repleto de significados e que deve ser lido com um profundo interesse pelo assunto.
Depois da rápida introdução que eu fiz, você já deve estar avisado que minha intenção é abordar o “comer e beber nosso de cada dia” através das “vielas” da abstração. Para isso, vou apresentar algumas premissas que você não precisará necessariamente adotar, mas deve lançar mão delas pelo menos para me acompanhar em algumas reflexões que vou propor.
Não pense que eu desprezo o olhar materialista, pois ele pode ser bastante útil sim, principalmente quando se trata da vida cotidiana. Mas quando falamos da vida como um todo, tenho lá minhas dúvidas. Ou melhor dizendo, tenho lá minhas certezas. Esse olhar não dá conta!
Uma das premissas que vou adotar diz que experimentamos a vida por meio de três tipos de corpos: o físico (mobilizado pelos cinco sentidos); o psíquico (mobilizado pelos nossos pensamentos e por nossas emoções) e o metafísico (emprestei esse termo da filosofia de Aristóteles: meta = além; physis = física). No caso deste último tipo, esse corpo seria mobilizado por uma inexplicável sensação de fazermos parte de um todo ao qual não temos total compreensão).
Com essa premissa em mãos, eu perguntaria: afinal, o que alimenta o homem? Se a sua resposta for um belo “depende”, creio que podemos seguir em frente. Por outro lado, se a sua resposta for: “Comida, ué!”, vou lamentar porque saberei que você não seguirá a leitura até o final…
Se temos corpos diferentes, cada um se alimenta de um tipo de alimento. Como alimentar o corpo físico para que ele fique saudável? Um nutricionista nos diria: glicose; aminoácidos; ácidos graxos; ferro; cálcio; minerais; vitaminas etc. São elementos que vêm de nossa comida (é o óbvio). E quanto ao corpo psíquico? Como alimentá-lo para deixá-lo saudável? Psicoterapeutas responderiam: otimismo; felicidade; amor; paz; confiança etc. Agora, o mais difícil: como alimentar nosso corpo metafísico para que ele fique saudável? Alguns diriam: meditação; altruísmo; caridade; desapego etc.
De qualquer forma, mesmo tendo suas específicas necessidades, parece-me que esses tais corpos se integram de alguma forma, a ponto de a alimentação de um interferir na saúde do outro. Você deve saber do que estou falando: quantas vezes não comemos sobremesas açucaradas para matar a fome de amor que nosso corpo psíquico tem? Quantas vezes a sensação de solidão de nosso corpo psíquico não é sanada, quando alimentamos nosso metafísico com o altruísmo?
Se as premissas e suas implicações estão claras para você, sigamos para uma rápida imersão nas palavras de Gibran em O Profeta.
“PUDÉSSEIS VIVER DO PERFUME DA TERRA E, COMO UMA PLANTA, NUTRIR-VOS DA LUZ.” (p.23)
Você tentaria sobreviver de perfumes e de luz? Eu também não! É evidente que nossos corpos físicos não sobrevivam sem alimentos físicos (até que se prove o contrário…). Concluímos que Gibran, logo no primeiro verso do capítulo, não estava se referindo ao corpo físico e sim ao corpo metafísico.
“MAS, JÁ QUE DEVEIS MATAR PARA COMER E ROUBAR DO RECÉM-NASCIDO O LEITE DE SUA MÃE PARA SACIAR VOSSA SEDE, FAZEI DISSO UM ATO DE ADORAÇÃO.” (p.23)
O autor admite que manter o corpo físico pode exigir violências a outras vidas. Roubamos o leite que é de direito do bezerro e justificamos que nosso corpo depende disso para sobreviver. Só que, em momento nenhum, nossa civilização consumista demonstra qualquer reconhecimento pela doação da natureza. Nosso corpo físico sobrevive e nosso corpo metafísico padece: o leite alimenta o primeiro e a falta de gratidão adoece o segundo.
Acho que sei o que você está pensando: nem todos enxergam dessa maneira. Sei que não! E arriscaria afirmar que essas pessoas não se consideram parte de um todo. Eu fico me perguntando: como ser um grão de areia que não se sente parte da praia?
“E QUE VOSSA MESA SEJA UM ALTAR ONDE OS PUROS E INOCENTES DA FLORESTA E DA PLANÍCIE SÃO SACRIFICADOS ÀQUILO QUE AINDA É MAIS PURO E INOCENTE NO HOMEM.” (p.23)
Sim, os puros da floresta e da planície são inocentes. Vegetais e animais são imolados em mesas de humanos nada inocentes. Não reconhecemos o quanto sacrificamos vidas e mais vidas para nos debruçarmos em comilanças exageradas, muitas vezes regadas a conversas estéreis e gargalhadas débeis. Não, não estamos alimentando nosso corpo físico, estamos deixando-o empachado! Comemos muito mais do que ele necessita. Durante os famigerados churrascos e happy hour semanal, nosso corpo psíquico é ameaçado pela intoxicação de conversas impalpáveis que são ativadas por altas doses de álcool. Nosso corpo metafísico pode ser destroçado pelo isolamento a que nosso ego nos carrega. Definitivamente, não fazemos de nossas mesas o nosso altar:
“E, QUANDO MORDERDES UMA MAÇÃ, DIZEI-LHE NO VOSSO CORAÇÃO: – TUAS SEMENTES VIVERÃO NO MEU CORPO, E OS BROTOS DE TEUS AMANHÃS FLORESCERÃO NO MEU CORAÇÃO, E TEU PERFUME SERÁ MEU HÁLITO. JUNTOS, REGOZIJAR-NOS-EMOS EM TODAS AS ESTAÇÕES”. (p.23)
Os versos de Gibran contam com nossos olhos metafísicos para compreendermos seu texto. Digo isso porque ele nos convida, o tempo todo, a nos sentirmos como uma parte que depende de outras partes para, assim criar outra parte ainda maior.
Colocamos os alimentos “goela abaixo” como se fôssemos máquinas engolidoras de coisas. Os alimentos são coisas realmente? Ou são vidas que foram interrompidas em função de nossas próprias vidas? Você já pensou quantas vidas são sacrificadas para te alimentar? Para te vestir? Para te curar? Você faz a sua vida valer todo esse sacrifício? O que devolvemos à natureza, como retribuição às vidas que ela nos cede?
“E, NO OUTONO, QUANDO COLHERDES A UVA DE VOSSOS VINHEDOS PARA O LAGAR, DIZEI-LHE, NO VOSSO CORAÇÃO: – EU TAMBEM SOU UM VINHEDO, E MINHA FRUTA SERÁ RECOLHIDA NO LAGAR E, COMO UM VINHO NOVO, SEREI GUARDADO EM VASOS ETERNOS”. (p.23)
“Ser guardado em vasos eternos” – você sabe o que isso significa? Deixar um legado depois que partir dessa vida. Sua vida, mantida pelo sacrifício de tantas outras vidas, deve ser justificada por um legado.
Meus caros leitores, se usei uma tinta mais pesada em alguns parágrafos, saiba que minha intenção foi cutucar a inércia de nossas consciências. Nem sempre as conversas em churrascos ou happy hour são banais e podem ser até proveitosas. Nem sempre engolimos nossos alimentos como se fôssemos “papa-bolinhas”. No entanto, insisto em repensarmos hábitos culturais como as churrascadas, o rodízio e o esvaziamento simultâneo de garrafas de bebidas alcóolicas. Afinal, estamos tentando alimentar que corpo? O físico que não é, pois sabemos que esses hábitos não oferecem quantidade nem qualidade ideais de comida ou bebida.
Para concluir, eu diria: a cada corpo, o seu devido alimento. Talvez, essa seja a chave para uma vida mais saudável. Estamos em uma época em que a maior parte das pessoas está acima do peso e a procura por dietas milagrosas tem sido insistente e improdutiva. É provável que, alimentando bem sua alma e seu espírito, o seu corpo físico pare de gritar uma fome que não é dele.
Se você chegou comigo até essas últimas linhas, eu o convidaria a se perguntar: como minha vida pode validar as vidas que se interrompem por minha causa? Lembre-se: há vida em cada parte da natureza que destruímos minuto após minuto.
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Foto by: MARCOS LALLI
Bom dia e que BOM DIA! "Esse olhar não dá conta!" É, não dá. Como os textos do Ruy, vcs deveriam ser mais lidos, mas o Ruy escreveu que expor ideias por aqui é "como forma de não ficar com essas coisas sufocadas no peito." Que bom, eu agradeço por esse olhar. :) Segue a leitura e vem a cacetada: “E, quando morderdes uma maçã, dizei-lhe no vosso coração: – tuas sementes viverão no meu corpo, e os brotos de teus amanhãs florescerão no meu coração, e teu perfume será meu hálito. juntos, regozijar-nos-emos em todas as estações”. (p.23) Mesóclise, afff, #Foratemer, desculpe-me, não resisti. Sabe o que dá vontade? Largar tudo e ir caminhar na praia, no parque, na rua. Olhar. Agradecer pelo tanto que recebemos e que mal agradecemos. Acorda, come, trabalha/estuda/malha, come, trabalha, come, dorme, ou em outras ordens... Quando agradecemos realmente? Quando paramos e olhamos o que é a nossa vida? Quando olhamos para dentro? Perguntas que seguem. Que nos alimentemos melhor. Mais uma vez, obrigado.
Bom dia, Jaylei. Que delícia ler o seu comentário! Essa troca é o que nos impulsiona a escrever semanalmente. Trocar impressões, trocar opiniões, trocar sensações. O mundo à nossa volta está um caos! Mas, voltando ao Caibalion, lembro-me de uma de suas máximas, a Lei da Correspondência: tudo o que está em cima é análogo ao que está embaixo. Ou seja, o micro está no macro e o macro está no micro. Tenho acreditado que, ao invés de focarmos no grande que está podre, devemos focar no podre que há em nós mesmos. Quem sabe, depurando os bilhões de micros, não começamos a curar o macro? Jaylei, é um grande prazer confrariar com você!
Carla, que reflexão maravilhosa sobre os textos do Profeta. Você acentuou de forma marcante e com uma escrita poética e feminil na interpretação tão apropriada. Muito gostoso ler o que você escreve. O uso contundente das palavras, sem ser rude, a construção poética, sem perder a essencialidade e a realidade. Um brinde às ideias.
Caríssimo Edu, que super motivação é o seu feedback ao meu texto! Obrigada pela generosidade. Que bom tê-lo conosco como leitor participativo. Gde. Abraço!