As férias são um momento especial, em que o tempo se dilata. Um sabático. Revisitamos a estante com os livros por ler. Assim, encontro na estante um livro emprestado por meu pai, sobre um tema que sempre me agrada: relatos de viagens. Com o livro a tiracolo na bagagem, comecei sua leitura entre o Natal e o Ano-Novo, em lugar quente e úmido, com comida acessível e sem passar qualquer tipo de contratempo ou aperto. Para variar, em seu próprio sabático, o viajante do livro que li decidira, há exatos dezesseis anos, terminar sua peregrinação pela Ásia Central em lugar e momento e modo bem diferentes: no Afeganistão, em janeiro de 2002, a pé. Seu nome é Rory Stewart, o autor de Os lugares do meio (Trad. S. Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2008).
Stewart decidira, naquela ocasião, realizar uma viagem pela Ásia Central logo depois de se formar. Caminhando. Já tinha ido ao Irã, ao Paquistão, à Índia, ao Nepal, ao próprio Afeganistão. Caminhando. Se você notou, caro leitor ou leitora aguçado, os países assinalados aqui são parte da Rota da Seda, o famoso percurso terrestre que ligava comercialmente toda a Eurásia, do Extremo Oriente Asiático à Península Ibérica, na Europa. O leitor e a leitora também devem ter notado a época escolhida por ele para viajar pelo país que deu muito trabalho para Alexandre, o Grande, Gêngis Khan, o Império Britânico, a ex-URSS e, mais recentemente, os países da coalizão internacional contra o terrorismo (como os EUA, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, entre outros). O Afeganistão, em pleno inverno, seis semanas após a derrubada do regime do Taliban. Esse foi o motivo que alçou o relato de Rory ao status de best-seller pouco depois de sua publicação. Assim esse também é o motivo deste relato de viagem se distinguir de qualquer outro “mochilão”.
Não é à toa que, de toda a peregrinação pela Ásia, o livro se dedica a narrar o trecho da viagem ao Afeganistão ocidental, muito embora, como um ótimo escritor, ele consiga retomar as experiências colhidas nos demais países pelos quais passou por meio de ótimas digressões. Rory tentara, meses antes, atravessar o Afeganistão a pé, mas fora impedido pela falta de visto não concedida tanto pelo Irã como pelo Paquistão. Quando a coalizão internacional, chefiada pelos EUA, conseguiu derrubar o regime talibã em Cabul, ele viu nisso uma possibilidade ímpar de entrar no país, com autorização, muito embora houvesse à época poucas garantias de que a situação no interior do país estivesse estabilizada de fato. À medida que os ataques dos exércitos da coalizão avançavam, os talibãs se entrincheiravam cada vez mais no interior ou estavam em fuga. Em outras palavras, havia pouca informação real sobre o estado das estradas, as possibilidades de estadia, de alimentação, de segurança ou até mesmo de se fazer entender: seja pela língua (o Afeganistão conta com duas principais línguas: o patcho e o dari são derivados do tronco linguístico do persa, falado no Irã), seja pela etnia (devido às ocupações ocorridas por diferentes povos em sucessivas épocas, o Afeganistão apresenta uma diversidade enorme de etnias), além das interpretações distintas do Islã. Há uma maioria sunita nas 14 etnias da população afegã. No entanto, os hazara, descendentes dos mongóis que remontam à época da ocupação de Gêngis Khan, são uma minoria xiita que foi violentamente perseguida pelo Taliban.
A partir do 11 de setembro de 2001, relembremos: naquele momento, pouco sabíamos distinguir quem, de fato, havia planejado o ataque às Torres Gêmeas, o conflito entre Israel e a Palestina, os regimes teocráticos, e o próprio Islã como um todo desse caldo. Como hoje de fato sabemos, o Ocidente pouco sabia o que era de fato o Afeganistão naquele momento, e continua sem saber muito até hoje. Portanto, havia uma demanda crescente por informações e conhecimento a respeito das culturas ali presentes, da geografia do local, da economia, dos direitos humanos transgredidos por anos de domínio do Taliban, que havia imposto uma aplicação peculiarmente extremada da sharia do Islã. Mas havia sobretudo uma vontade de conhecimento mais realista sobre o que ocorria naquela parte tão distante dos olhos do mundo ocidental, mas não pelos olhos dos militares, ou dos órgãos de inteligência ou ainda da mídia.
Em janeiro de 2002, ele decidiu atravessar a fronteira entre o Irã e o oeste do Afeganistão a pé. Ali ele encontrou ao longo do caminho uma sucessão de feudos. Isso mesmo, feudos. Entre a cidade de Herat, sede de um dos distritos afegãos, e a capital Cabul, havia várias aldeias nas quais a população nunca havia tido contato com a tecnologia digital, com a cultura de outros países além dos que faziam fronteira ou que tinham relação com a religião, e com artigos de consumo atuais. Segundo Rory, “a única tecnologia estrangeira era um rifle Kalashinikov e a única marca global era o Islã”. As relações entre as aldeias remontavam à época dos senhores feudais combatidos durante a ocupação soviética, e influenciadas naquele momento pelo fundamentalismo praticado pelos talibãs contra os dissidentes, em forma de guerra civil. Ou seja, o país sofria os efeitos nefastos de cerca de 25 anos de conflitos internos e externos. Uma viagem no tempo, por meio das distintas marcas deixadas pelos que passaram ali.
Rory tinha bons instintos e tinha conhecimento. Confiou em seu domínio do persa, do árabe e dos costumes islamitas, como na lei da Hospitalidade que, segundo o Corão, deve ser praticada por todos os fiéis aos viajantes que pedirem abrigo. Foi alimentado, foi abrigado, recebeu cuidados quando estava doente, e até ganhou um cão. Um mastim afegão para quem ele deu o nome de Babur. A escolha do nome remete um pouco aos motivos da viagem pelo país hostil: Zahīr al-Dīn Muhammad Bābur foi um conquistador que fundou o império Timúrida-Mongol, entre os séculos XV e XVI, e era descendente de Tamerlão por parte de pai e do próprio Gêngis Khan por parte de mãe. Sua vida de aventuras e desventuras, suas conquistas e suas viagens, foi narrada em suas célebres memórias, o Bāburnāmah.
Seu relato sobre a travessia entre Herat e Cabul, centro de seu império, inspirou Stewart a realizar a peregrinação e ajuda a entender um pouco as heranças culturais e históricas deixadas aos afegãos pelos povos conquistadores. Caravançarais (uma espécie de estalagem para o pouso dos viajantes), em ruínas, por todo o período. Carcaças de tanques, veículos militares abandonados e construções de origem soviética. Resquícios da presença de povos antigos, como os gregos, os persas, os guridas, os mongóis, para ficar entre alguns dos registros de maior destaque. Por outro lado, em certos lugares, também foi hostilizado, xingado, agredido, apedrejado, passou fome, frio e sede, foi acusado de ser espião e quase chegou a ser baleado, em essência por ser um estrangeiro. Um outro.
Stewart nasceu em Hong Kong em 1973, cresceu na Malásia, mas é na verdade escocês. Isso se deve ao fato de que seu pai foi diplomata do governo britânico e, já que atuou em vários lugares da Ásia, levou a tiracolo a esposa e os filhos. Isso lhe deu a oportunidade de levar o filho Rory a conhecer os países em que se encontrava por meio de caminhadas. As mesmas caminhadas que levaram o filho, já adulto, a cruzar o outro lado do mundo de forma peculiar para os dias de hoje. Caminhando. Retornou à Inglaterra, serviu o Exército Britânico, estudou no colégio Eton e em Oxford, formando-se em história. Depois disso, Rory podia ter ficado na Inglaterra ou na Escócia, estudando. Podia ter ficado em casa, ou podia ter procurado um emprego. Mas resolveu fazer uma jornada extrema, tanto para ele como para o desconhecido que o viu.
Após ler o livro, fui pesquisar um pouco mais sobre a vida desse escritor e me surpreendi com o fato de que ele se tornou um proeminente acadêmico e diplomata e, mais recentemente, membro do Partido Conservador, ministro de Estado do atual governo britânico de Theresa May e do ex-ministro David Cameron. Também assessorou os EUA durante a ocupação e estruturação do governo afegão. Em notícia recente, defendeu, por exemplo, um combate sem flexão aos terroristas fundamentalistas, inclusive de cidadãos britânicos combatentes do Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Como político, ele tornou a caminhada um de seus emblemas, para se aproximar dos eleitores, recorrendo a uma imagem bem cristalizada no imaginário britânico: recorrer à memória dos viajantes vitorianos e, por conseguinte, à memória da glória do Império Britânico.
Como acontece com a maioria dos viajantes, nota-se que a viagem não somente transformou Stewart como indivíduo, mas o transtornou. Se a visão paternalista do estadista e diplomata ocidental (seja pela via do altruísmo ou pelo medo do estrangeiro, curiosamente similar a dos chefes das aldeias que visitou) substituiu o olhar aguçado, generoso e bem humorado do viajante, não importa, pois fica retida a obra que pode proporcionar uma visão interessante sobre um lugar e um tempo no meio de nossa história recente.
Photo by Pierpaolo Lanfrancotti on Unsplash
Que cavalo de pau na vida desse sujeito, hein? Com esse destino político, algum afegão bem poderia dizer: "Não falei que o cara era espião? Tanto que virou ministro..." Grande abraço, meu caro!
Mano, também achei curiosíssimo! O cara entra na vida política pela via humanitária, defende as vias livres para os viajantes (os turistas, os cientistas, ocidentais, leia-se). Por outro lado, faz uma defesa ferrenha de fronteiras do Reino Unido, bem como de combate ao terrorismo, por uma via também torta mas bem conhecida, ao apoiar a criminalização dos refugiados e dos imigrantes. Ele pode visitar os estrangeiros, mas o contrário não. Curioso mesmo! O exótico somente possível se sempre no seu devido lugar. Seria o livro um exemplo de uma boa obra de uma pessoa pequena, como já tínhamos conversado antes? De qualquer modo, o feito (trekking no Afeganistão) e o relato são ótimos. O Paul Theroux, em seu último livro, O último trem para a zona verde, percorre a Costa dos Esqueletos, da Cidade do Cabo e sobe pela costa leste, seguindo pela Namíbia e Angola. É também um retrato desanimador, e nada amistoso. Ele mesmo revela o conflito entre o flâneur acidental, na pegada dos hippies, que enfrenta não mais o exótico, mas a hostilidade da população para um turista que deve ser rapinado. Já tem agência de turismo que te leva para ver regiões devastadas. É tudo muito confuso. O mundo já não está mais tão globalizado assim. Vai entender! Estou lendo a respeito e ainda tento.
Guilherme, ao ler o texto, revivi toda a viagem de Rory. As explicações sobre as impressões que me passarem desapercebidas. As explicações me clarearam muitas pormenores do país, sua historia e seu momento atual. De quebra sua pesquisa sobre o autor foi novo para mim. Me veio à memoria outra obra: Diário de Motocicleta, cujo personagem toma outro caminho ao conhecer a realidade dos povos visitados. Obrigado.