Apesar de minha atuação profissional e minha preferência pessoal pelo meio digital — afinal de contas, aos 14 anos, em 1982 ganhei meu primeiro computador, um tijolinho singelo chamado TK-82C e daí nunca mais parei — sempre tive um respeito muito grande pela mídia impressa.
Os livros? Nem se fala. De novo: apesar de apaixonado pela tecnologia, me apaixonei pela literatura primeiro, e sempre amei ler. Mas não é dos livros que falo aqui (bem, deles também, mas esse assunto vai merecer um artigo à parte, por suas características serem suficientemente sui generis). Falo, sim, do noticiário impresso, a que todos convencionamos chamar de “mídia impressa”: os jornais e as revistas.
Pois é, a má notícia é que estão morrendo, e esta morte, a meu ver, pode até ser adiada, mas não há possibilidades de impedi-la. Da mesma forma, digamos, que o automóvel matou a indústria de charretes, coches e diligências, assim também a combinação entre os dispositivos digitais, a Internet e a mídia digital está matando a mídia impressa.
A mídia impressa começou a morrer lá em 1990, quando Tim Berners-Lee, um pesquisador do CERN (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares), criou um pequeno protocolo para transporte de hipertexto, a que deu o nome de HTTP, inventando, assim, a Web. Na época a mídia impressa não percebeu, mas estava lançada a semente que um dia se transformaria no monstro que a engoliria. Essa, aliás, tem sido a tônica com as revoluções digitais: começam singelas, sem muita pretensão, são ignoradas (ou desdenhadas, quando se lhes notam a presença), mas com o tempo seus efeitos destroem antigos impérios e constroem outros. Eu vi isso acontecer em 1993, quando, recém-saído da faculdade, vi meus colegas e gestores na IBM caindo na risada às minhas custas quando perguntei por que a empresa ainda mantinha proprietário o SNA (protocolo de comunicação dos mainframes da empresa) em um mundo em que cada vez mais computadores eram conectados pelo TCP/IP (protocolo aberto sobre o qual se alicerça toda a Internet, interconectando 4 bilhões de pessoas no mundo inteiro nos dias de hoje). Em meio às risadas, meu gerente à época soltou algo na linha de “Ele é novo. Ainda está apaixonado pelo brinquedinho que é o PC”. PC, vocês bem sabem, é o computador pessoal, que já estava engolindo o mercado de mainframes da IBM sem que ela percebesse. Há quanto tempo você não ouve falar em IBM, aliás? A risada geral, na época, tinha eco de “nau dos insensatos” em meus ouvidos. Mas, moleque que era, absorvi o “pito” e calei a boca. Na mesma época, o amigo jornalista Sergio Kulpas viu uma demonstração da Web na redação onde trabalhava, e presenciou o escárnio dos colegas. “Isso não tem a menor chance de pegar”. Aposto que os poucos dinossauros que olharam para o céu noturno quando um novo pontinho luminoso se fez visível, também não prestaram a menor atenção.
O fato é que o mercado dos jornais vem encolhendo a olhos vistos nos últimos 10 anos. A NAA, Associação Norte-Americana de Jornais, que mantém estatísticas atualizadas sobre o assunto, aponta que o faturamento anual dos jornais em 2005 era de 50 bilhões de dólares. Em 2015? Foi de 19 bilhões de dólares. Uma impressionante queda de mais de 60% no faturamento. No Brasil, a queda tem sido mais amena, mas mesmo assim não há dúvidas que o mercado enfrenta uma crise sem precedentes, ainda que as publicações façam “boca de siri” sobre o assunto. Não é de hoje que as principais publicações olham para o mercado com preocupação, e muitas já estão ativamente buscando soluções para a crise instaurada.
O que, especificamente, causa a crise no setor? A resposta é de fácil compreensão. Desde o surgimento da Internet comercial, a partir do início da década de 1990, os hábitos de navegação e as possibilidades da Web à disposição do indivíduo têm mudado sensivelmente. No cenário anterior, tínhamos a mídia eletrônica (tevê e rádio) reinando supremas, controlando tudo o que o espectador assistia e ouvia. No setor de mídia impressa, os jornais e as revistas ficavam (e, a bem da verdade, ficam até hoje) com a porção mais nobre do público. Isto se explica porque rádio e tevê (aberta) são “de graça”. Quem paga pelo conteúdo são os anunciantes. Já no caso dos jornais e das revistas, o leitor arca com os custos, comprando exemplares avulsos ou pagando pela assinatura por um período de tempo determinado. Além disso, no caso da mídia impressa há leitura envolvida, o que exige maior nível educacional por parte de quem consome jornais e revistas.
A disponibilização em larga escala da Internet e, em especial, da Web veio desestabilizar este cenário: trouxe a conveniência da escolha, o imediatismo da disponibilidade, e a variedade de conteúdo para a ponta dos dedos do usuário. E, talvez mais importante: trouxe isso a custos realmente baixos. No que diz respeito ao noticiário, então, nem se fala: inúmeros cidadãos se prestam hoje a dar notícias de seu interesse, a replicar conteúdo que obtêm de outros veículos, ou mesmo a gerar suas próprias notícias, buscando-as em seu redor. É o conceito do “blogueiro”, um jornalista/articulista amador.
Ocorre que dar de graça aquilo pelo qual os jornais e revistas cobram gera instabilidade no setor da mídia impressa: cria-se a expectativa da notícia gratuita, do artigo atualizado na hora, sem custo algum. A qualidade não é a mesma dos veículos tradicionais, mas o leitor, no geral, acha que a troca da qualidade pela conveniência, quantidade e variedade compensa. A opinião de que a quantidade e a variedade de fontes compensa e constrói a fidedignidade não é incomum — para aqueles que têm esta preocupação. E assim vamos contribuindo para a morte da mídia impressa tradicional.
Os publishers, como são chamados até mesmo aqui no Brasil, não deixam de enxergar esta realidade, e movem-se como podem para tentar salvar sua indústria. Alguns veículos já conseguiram perceber que a mudança para o meio digital é inevitável e já fizeram a transição. Em 2010, o Jornal do Brasil — um diário com 119 anos de existência à época — abandonou a edição impressa e se tornou a primeira publicação nacional a transitar totalmente para o meio digital. Não é uma transição fácil, e não é possível manter-se a mesma estrutura ao fazê-la. Por um lado, a cultura do “grátis”, instituída na Internet, torna mais difícil conseguir assinaturas; por outro, os valores pagos pela publicidade on-line são uma fração de seus correspondentes nas páginas dos jornais e das revistas. Isso sem falar no uso disseminado dos bloqueadores de publicidade, cada vez mais em voga entre os internautas. O resultado é que uma estrutura de notícias on-line sustenta bem menos profissionais que as redações de tijolo e concreto. O que leva à principal pergunta na cabeça dos publishers do mundo todo que contemplam a inevitabilidade da transição para o meio digital: qual é o modelo de negócios que permitirá a lucratividade do setor no meio digital?
À alternativa clássica da assinatura, um modelo parece estar evoluindo: os micropagamentos. Trata-se de um modelo que surgiu nos jogos e aplicativos para smartphone, há alguns anos, e que se consolidou nesta plataforma: o jogo (ou aplicativo) é gratuito, mas alguns itens, facilidades e features exigem que o usuário pague para ter acesso. No caso das publicações on-line, o usuário tem acesso às manchetes, e paga apenas pelos artigos e reportagens que lê. O quanto cobrar por artigo, como cobrar, como incentivar a adesão são algumas das questões que ainda precisam ser esquadrinhadas neste novo modelo. E, é bom lembrar, como ocorre com coisas novas na Internet, nada garante que seja este o modelo que vai “pegar”.
Uma mudança menos que ideal infelizmente já vem ocorrendo em algumas publicações da mídia impressa (e a mídia digital não é exceção): o “ajuste” do conteúdo para que seja mais ao gosto do freguês. Este “ajuste leva a dois resultados, ambos muito questionáveis, sob o ponto de vista do bom jornalismo: o primeiro é o surgimento de uma pauta mais voltada ao entretenimento, e o segundo é a inserção de matérias pagas pelos anunciantes, passadas à guisa de artigos e reportagens isentas.
No primeiro caso, o resultado é uma pauta menos relevante sob o ponto de vista jornalístico, substituindo a informação pelo divertimento. “Notícias de gato” (meu termo para o equivalente jornalístico dos “vídeos de gato” que empesteiam as redes sociais nos dias de hoje) substituem fatos relevantes do dia-a-dia. Dilui-se o valor da notícia para atender um leitor mais interessado em entreter-se do que em se manter informado.
No segundo caso, o leitor é levado a consumir publicidade como se esta fosse notícia. A maioria das publicações discrimina este tipo de conteúdo por meio de avisos (mais do que sutis, em alguns casos) de que se trata de “conteúdo patrocinado”. Quando encontramos este tipo de conteúdo, não dá para ter dúvida; trata-se de publicidade disfarçada.
Estas ideias são ações no sentido de adaptar os periódicos à nova realidade imposta pelo mercado. Nem todas são boas, nem todas sobreviverão. São mais um testemunho de que a crise demanda soluções criativas, e que os publishers têm um desafio e tanto à sua frente.
Uma alternativa no mínimo bizarra foi adotada pelo jornal semanal The Hardwick Gazette, do estado de Vermont, nos EUA. O dono do jornal, Ross Connelly publicou, em 11 de junho de 2016, a chamada para um concurso de dissertações. O tema era “qual sua capacidade e visão para ser dono de um jornal semanal no novo milênio”. O prêmio: o próprio jornal.
Pelas regras, a inscrição custaria 175 dólares, e o concurso só valeria se fosse atingida a marca mínima estabelecida de 700 inscrições (gerando 122 mil dólares como retorno para o dono do jornal). Até a data final inicialmente estipulada por Connelly, 11 de Agosto, a marca de 700 inscrições ainda não havia sido atingida, e o publisher decidiu prorrogar o prazo por mais 40 dias.
É ou não é a metáfora perfeita para o estado da mídia impressa?
Meu caro amigo. Pra variar, mais um texto repleto de informações interessantes, reflexões inteligentes e uma pegada toda especial que só o seu jeito de escrever oferece. Não vejo a hora de ler o próximo!!!
Puxa, Carla, muito obrigado! Vindo de você, é um elogio e tanto! :D
Outra possibilidade é que o setor pode encolher, mas continuar. Sempre vai ter gente querendo notícia.
Oi Gilberto. Em primeiro lugar, obrigado pela leitura e pelo comentário. Acredito nesse "encolhimento" do mesmo jeito que acredito que os dinossauros "encolheram" (e criaram penas) depois do meteoro. Ou seja: acredito que a mídia impressa vai ficar irrelevante a ponto de ser chamada de outra coisa, quando esta transição terminar. Sim, sempre vai ter gente querendo notícia, mas esta necessidade já está sendo atendida pela mídia digital (se bem ou mal, são outros quinhentos). Quero crer que continuaremos a ter bons repórteres, boas linhas editoriais, bons articulistas, bons analistas. Mas estou certo de que no futuro não os encontraremos em páginas impressas, seja de jornais ou de revistas, ou de qualquer outro tipo de mídia em papel. E, obviamente, não é só o substrato que vai mudar. Como eu disse no artigo, as linhas editoriais já estão mudando (no momento, para pior) e os modelos de negócio também vão mudar. Mas, claro, sempre teremos algo que se passe por notícia, uma vez que o interesse por algo que se passe por informação sempre estará presente. Até a próxima!
Grande Ruy, você tem razão estamos vivendo isso diariamente em muitos outros setores. Avanços estão transformando Impérios em coisas irrelevantes (exemplos vão da Kodak, passam pelas Gravadoras de CDs e continuam pelas Operadoras de Telefonia). Só para dar uma contribuição sobre um assunto que conheço de perto a PSTN (public switched telephony network ou rede de telefonia pública comutada que conhecemos) deverá desaparecer nos EUA até 2020, muito antes disso no entanto já terá se tornado irrelevante....
Rodrigo, A maioria de meus amigos os EUA (todos morando em regiões metropolitanas, bem desenvolvidas, é verdade) já não tem mais "landlines", ou linhas fixas. Mais: é motivo de chacota pelas costas alguém dar um telefone fixo como forma de contato. A cultura, lá, já mudou. O fato é que o caminho criado pelas tecnologias digitais é pavimentado com os escombros de quem não se adapta estas tecnologias (ou, pior, delas desdenha). Obrigado pela visita, meu caro. Volte sempre! :)
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[…] bits, cujo acesso é bem mais fácil. Eu mesmo já previ, aqui nessas páginas do Confrariando, que o jornalismo impresso vai desaparecer, e cada vez mais penso que isso seja inevitável. O jornalismo — e que isso fique bem claro — […]