Dia desses, tive uma lembrança que veio do meu primeiro ano de faculdade. Não foi saudosismo, na verdade, a recordação se deu numa associação de ideias em meu “banco de metáforas”. Tenho um costume muito antigo de usar figuras de linguagem em meus processos de aprendizagem.
Naquela época, os tempos já eram velozes e os calouros famintos por novidades, por disputas, competitividades e oportunidades para se exibirem. O curso era Comunicação e a habilitação em Publicidade e Propaganda. Os professores naquela faculdade eram profissionais destacados em agências, veículos e grandes corporações. O mote da escola era: “Ensina quem faz”. Havia criadores de campanhas de publicidade premiadas, gestores das marcas mais admiradas nacional e internacionalmente e agentes das mídias mais tradicionais do mercado. Eram nossa fonte de inspiração: queríamos ser como eles quando crescêssemos.
Ao usar minhas lentes atuais para olhar aquela época, acho muita graça: crianças deslumbradas! De qualquer forma, grande parte daqueles amigos despontaram no mercado publicitário pouco tempo depois de nos formarmos.
Um dos colegas – uma das mentes mais inquietas da turma – já trabalhava na área e sempre trazia novidades e tendências como forma de se empolgar com a admiração que provocava no grupo. Eram tempos em que a ordem dizia: “quebre paradigmas”. E outros ditos prosseguiam: “esteja ligado”; “seja criativo”; “crie diferenciação”. E, nessa toada de todo mundo querer ser diferente, todos se tornavam iguais. Paradoxo? Não, apenas ingenuidade…
Um dia, esse tal colega chegou muito empolgado e, durante o intervalo das aulas, ele contou que participou de um treinamento com feras da liderança que tinham vindo da matriz da multinacional em que trabalhava especialmente para implantarem o pensamento competitivo da época.
Um teste havia sido aplicado para detectar a iniciativa e a capacidade criativa e de cada profissional. Então, pegando um papel branco e uma caneta, meu colega desenhou dois traços verticais paralelos e um traço horizontal entre eles. Explicou-me: “você está numa estrada e, de repente, surge um paredão bem no meio, interditando o seu caminho. O que você faz?” Ao olhar para aquela situação, restrita a três traços cercados por imensas margens brancas do papel, logo respondi: “Eu desviaria, ué!”. Então, esse amigo, com um olhar reprovador e uma voz sonorizada por toda sua convicção disse: “Nossa! Essa é sua resposta? Eu simplesmente detonaria o paredão e aceleraria sobre os destroços, continuando meu caminho sem que nada me impedisse de prosseguir!”
Aquele comentário me fez sentir a criatura menos capacitada do mundo. Achei que o “resultado do meu teste” teria demonstrado que eu não encarava problemas. Pensei que meu futuro profissional estava fadado a ser destroçado por milhares de dinamites como essa detonada pelo meu colega…
Meus Caríssimos Leitores, esse pequeno evento já tem décadas e minha vida profissional vai bem, obrigada! Continuo inteira e não criei poeira inútil com detonadores pelo meio do meu caminho.
Quanto ao meu antigo colega? Até onde eu soube, também ia muito bem com sua vida profissional! Só não consegui ver se as suas roupas estavam empoeiradas por destroços de todos os paredões que teria estourado em seu caminho.
E, o que me importa? Eu fui genuína em meu teste e creio que ele também tenha sido.
Se eu pudesse criar uma moral para essa história, eu diria: não há respostas certas ou erradas para as provas da vida. Não tente gabaritar! A interpretação de cada questão do seu próprio viver deve ser sua. Seguir uma resposta padrão não lhe garantirá aprovação.
Eu nunca vou saber realmente o que se passava pela cabeça do meu colega quando ele se imaginou guiando na tal estrada. Talvez, ele estivesse guiando o carro do Batman (aquele cheio de truques como detonadores escondidos atrás dos faróis) num cenário de escarpas que rodeavam toda a margem. Talvez, para ele, tudo fosse ameaça. Ele precisaria estar concentrado ao que vinha pela frente. Nada deveria fazê-lo desviar-se de seu objetivo de ir adiante.
Por outro lado, eu sei o que se passava pela minha cabeça ao me imaginar na tal estrada. Olhando a representação, feita com tinta esferográfica, da estrada e do paredão no grande papel branco, eu vi que o problema proposto era pequeno demais diante do grande cenário vazio demarcado pelas margens do papel. Por que eu iria gastar energia tendo todo aquele espaço de oportunidade ao redor da estrada? Eu estava livre e solta, percorrendo a pé. Ao redor da minha estrada, havia grandes pastos verdes. Então, eu simplesmente tiraria meu calçado e, pisando na grama fresca e úmida, teria me desviado do empecilho e retornado à estrada logo em seguida. Ao olhar para trás, eu simplesmente riria porque o paredão continuaria lá, imóvel, decepcionado por não ter conseguido interferir negativamente em minha vida. Ele não poderia nem mesmo tentar me perseguir.
Esse exemplo corriqueiro pode nos levar a algumas reflexões, dentre elas:
- O momento em que o desafio (parede na estrada) foi apresentado para meu colega e para mim foram tão diferentes que nossas percepções da problemática foram divergentes e, automaticamente nossas reações também.
- O treinamento mencionado estava voltado às ações comerciais. A estrada poderia ser a imagem de um mercado competitivo, as escarpas ao redor poderiam ser as variáveis incontroláveis enfrentadas por qualquer indústria e o paredão, a ação contundente de algum concorrente. Diante desse contexto, é de se compreender a reatividade de meu colega.
- Se eu tivesse passado pelo tal treinamento, talvez incorporasse o tom agressivo do contexto e bombardeasse a parede também. Se eu não conseguisse essa incorporação, talvez pensasse em soluções intermediárias, como usar uma picareta e fazer um pequeno buraco suficiente para que eu passasse para o outro lado da estrada – solução essa, aliás, que me faria alcançar “nota baixa” no tal teste…
Com certeza, poderíamos continuar refletindo sobre esse ínfimo evento de minha juventude. À minha cabeça vêm uma porção de perguntas:
- Se esse treinamento pretendesse classificar o nível de competência dos participantes em relação ao desempenho em vendas, esse teste seria confiável? Que implicações poderia acarretar no ânimo da equipe? Que tipos de feedback poderiam ser dados a cada integrante?
- Até que ponto o contexto criado pelo treinamento poderia induzir os participantes a determinada tendência comportamental? O que fazer com aqueles que não bombardearam o paredão?
- Esse tipo de condução de times de trabalho é construtivo e sustentável? Até que ponto essas dinâmicas corporativas promovem a evolução humana?
Sejam quais forem as respostas a que cheguemos, meu Caríssimo Leitor, eu diria, àqueles que trabalham com desenvolvimento humano, que assumam sua responsabilidade pela condução dos jovens no mercado de trabalho. Muitos deles são tábulas rasas prontas para receber impressões. O mundo de amanhã é resultado de como esses jovens foram orientados hoje.
Costumo dizer, aos “aplicadores” de testes comportamentais: o ser humano não é rato de laboratório. Se eu já tenho dificuldade de lidar com a ideia de manipularmos animais em experimentos irresponsáveis, o que dirá fazer o mesmo com seres humanos!
Se puder, pense nisso!
Aguardo você em nosso próximo encontro.
Oi, Carla! a metáfora do muro me remeteu à uma outra associação: muitas vezes, ao longo da vida, vamos nos deparar com muros gigantes diantes de nós, feitos de concreto armado e repletos de fios de alta tensão. O desafio de transpô-los (seja explodindo-os ou tirando os calçados e caminhando pela margem) pode nos deixar desesperados e com a sensação de impotência. A força para passar para o outro lado do muro é saber que do lado de lá também há vida.
Meu querido amigo Emi, belíssimo apontamento!! Você tem toda razão. Isso pode acontecer muitas vezes com todos nós: ficamos paralisados por não sabermos o que há do lado de lá...
Pingback:Pelas Frestas | Confrariando
[…] Assim, ao ver o intento alcançado pela vegetação, dentre as frestas de um banco, fiquei pensando se nós, “meros humanos”, temos essa mesma capacidade. Será que conseguimos ultrapassar os obstáculos à nossa frente sem sair quebrando tudo? Aliás, já falei um pouco sobre isso em meu texto Um Paredão na Estrada (http://confrariando.com/um-paredao-na-estrada/). […]