Atenção: esse texto contém spoilers do filme Carros 3.
Gosto do filme Carros, o desenho do estúdio Pixar lançado em 2006. Na época, foi mais um sucesso de bilheteria do estúdio de animação engendrado por Steve Jobs. Além disso, a obra consolidou de maneira simbólica a aproximação entre as empresas Pixar e Disney, e entre os criadores da primeira, que haviam sido demitidos da segunda. Como todas as produções anteriores, há nesse caso um conceito caro à identidade criativa da empresa, que é materializar o que poderia ser um universo a partir de uma premissa imaginária simples. Em Toy Story, o grande marco cinematográfico do estúdio, esse argumento seria “E se os brinquedos pudessem se comportar como nós, os humanos?”.
Já no caso de Carros, poderia ser: “E se os carros pudessem se comportar como nós, os humanos?” Na época, achei que o filme era bacana, ao reunir nomes inusitados do universo artístico e automobilístico, como o ator e também piloto de corrida Paul Newman, por exemplo. Falava também de um elemento nostálgico que é a paixão por carros e por uma vida levemente romantizada de seguir sem rumo pelas estradas. Em outras palavras, o filme seria uma espécie de iniciação bem didática às crianças para a estrutura dos road movies. Além disso, em relação à temática, uma palavra que me vem nesse momento é fides, termo latino que dá origem a palavras em português como fiel e fidelidade. Em um sentido amplo, era utilizada para denominar um tema importante da literatura e da arte: o respeito às tradições, à história, aos antepassados. A narrativa me atraía, já que se tratava da formação de um corredor iniciante ambicioso, o carro de corrida Relâmpago McQueen, que sofre um choque de realidade e, orientado por um ex-corredor mais experiente, torna-se um competidor leal e ético, além de formar seus valores consistentes com a experiência e orientação adquiridas.
Já o intuito da segunda continuação desse filme Carros 2, lançada em 2011, trata de dois valores importantes: o primeiro seria o respeito à diversidade, por meio das culturas dos vários países apresentados, além dos subsequentes choques culturais pelos quais a picape de guincho Mate passa; já o segundo seria a valorização dos laços de amizade, em que a reconciliação entre os protagonistas McQueen e Mate. Em sua estrutura, a animação dialoga com outra tradição cinematográfica: a linha dos filmes de espionagem, com alguns dos lugares comuns característicos do gênero, como os equipamentos de agentes secretos, os códigos de identificação, a alta tecnologia, a troca de identidades. Em um ambiente no qual não se pode confiar em ninguém, a amizade seria a solução idealizada para o impasse ético decorrente.
Mesmo tendo nascido sete anos depois de seu lançamento, meu filho Ben ficou impressionado desde o início pela fábula motorizada. No caso do primeiro filme, assistia desde cedo às aventuras do protagonista, que, penso, simboliza um ideal bem-sucedido de formação. No segundo filme, ficou nítido para nós, os pais, seu estranhamento diante do deslocamento de protagonismo na trama. Ainda assim, a aventura mantinha seu interesse como entretenimento descomprometido.
Já no terceiro filme da saga, Carros 3, lançado em meados de julho desse ano, houve muita expectativa de nossa parte – do Ben e a minha – em relação ao encaminhamento da história, embora o trailer já insinuasse muito. No entanto, enquanto assistíamos ao filme, houve uma troca da relevância dos protagonistas na trama: McQueen, agora mais experiente, entende que deve ceder espaço e ao talento não revelado de sua treinadora Cruz, anos mais nova, e possibilitar a introdução da nova estrela no circuito. Ou seja, ele deveria perder. O Ben grita durante a exibição do filme: “Não, McQueen! Você não pode perder!…” Além dos apupos e dos pedidos de silêncio dos demais expectadores, ficou nítido o incômodo que foi atenuado somente no fim, quando a ascensão da corredora Cruz, agora orientada agora por um mentor e chefe de equipe McQueen, repete os mesmos lugares comuns que o levaram no passado a se tornar um campeão.
Há um elemento de conto de fadas evidente, em relação à constituição da protagonista feminina Cruz, que representa também outra importante mudança estrutural na narrativa: a heroína tem um ciclo próprio de aventura, com características específicas, distintas do Mito do Herói exposto por Joseph Campbell. Apesar de podermos considerar esse último aspecto como bastante salutar, a narrativa havia se tornado sofisticada demais para uma criança na primeira infância, mas ainda é suficientemente compreensível para crianças um pouco mais velhas e adolescentes, que ficaram satisfeitas de “adivinharem” os próximos momentos da narrativa. Ou seja, um filme infantil se tornou anticlimático.
Curioso falar dessas coisas, se compararmos os tempos atuais, em que tudo é posto em suspeição, tanto em termos conceituais, como também estéticos e éticos. Isso porque, como já o dissemos em texto sobre a saga Star Wars e sobre a série Stranger Things, as narrativas da Pixar, que eram vistas como uma lúcida alternativa à crise criativa que assola o cenário cinematográfico, passaram a emular o mesmo processo de adequação de seus roteiros ao pastiche de grandes obras e à autorreferência sem fim. Esse cenário todo em que vivemos parece tomado por uma evidente nota melancólica. Estaríamos revisitando um limiar de passagem de século tomado pelos mesmos ímpetos decadentistas da virada do século anterior? Um sonho de um fim de mundo parece se insinuar em todas as narrativas contemporâneas, inclusive nas animações infantis. Mas isso é nosso olhar contemporâneo, talvez descompensado pela falta de perspectiva.
Na reunião de contos do escritor e dramaturgo russo Anton Tchekhov, A dama do cachorrinho e outros contos (Editora 34, 1999), o tradutor Boris Schnaidermann, já falecido, brinda-nos no posfácio com um comentário interessante sobre uma das histórias daquela coletânea. Segundo o tradutor brasileiro, mais especificamente, o conto “Um acontecimento” suscita uma reação semelhante: o leitor que não se compadece da morte trágica de uma ninhada de gatos, devorada pelo cão de guarda de uma fazenda, na qual crianças estupefatas são censuradas e ridicularizadas por seus pais por essas sensações, está tomado pela mesma indiferença dos personagens adultos diante do fato.
Pode parecer tudo muito pueril esse assunto, mas o que se discute de fato é a atestação de nossa indiferença e insensibilidade para com o mundo. Sinto, leitor/leitora, se você esperava um texto mais animador, mas essa é minha preocupação como um pai em relação à constituição do repertório cultural de seu filho. Não sei se as pessoas consideram isso com frequência. Cada vez mais estamos fascinados com a quase infinita quantidade de conteúdo disponível, mas que é apresentado de maneira desestruturada e inarticulada. Uma forma de narrativa que se deseja fragmento.
Naquele dia, perguntei ao Ben o que ele havia achado do filme, se havia gostado. Nada como uma criança, que toma pela primeira vez a linguagem para si, para resgatar o sentido das coisas. Ele disse que não. Então perguntei se ele havia achado o filme chato. Fui devidamente esclarecido: “Chato não, papai! O filme é triste…”
Tristes tempos o que vivemos, em que mesmo a nossa imaginação tem de se esforçar bastante para sair desses impasses.
Profunda reflexão... Gostei! ;)
Oi, Ana! Obrigado pela leitura e comentário. Bjs!