Não é de hoje que a televisão é uma expressão do zeitgeist, destilando em suas ficções a psique da sociedade. O assunto é da preocupação de algum grupo expressivo? A televisão vai se apropriar desse assunto de alguma forma.
Você conhece aquele meme antigo, a chamada “Regra 34” da Internet? É assim: “Regra 34: Se existe, há pornografia a respeito.” (em tradução livre). Pois é, a televisão é uma corruptela da Regra 34 (bem mais antiga): se existe, a televisão vai se apropriar e ficcionalizar.
Mais recentemente, esse processo vem sendo realizado com o auxílio de ferramentas ultramodernas: a Ciência dos Dados e a Inteligência Artificial. Foi assim, por exemplo, que vimos a Netflix criar Stranger Things, uma série cujos temas surgiram de garimpagens nos dados de acesso dos assinantes do serviço. Mais recentemente, Hollywood adotou prática semelhante, usando Inteligência Artificial para decidir que filmes devem ser produzidos. Os dados usados pela indústria do cinema americano provêm de fonte semelhante à usada pela Netflix: a empresa de análise de dados Cinelytic licencia dados históricos sobre apresentações de filmes ao longo dos anos, depois faz referências cruzadas com informações sobre temas de filmes e atores, usando IA para descobrir padrões que se escondem nos dados.
Menciono essas tendências porque desconfio fortemente que sejam a resposta para uma questão que tenho percebido nas últimas semanas: o renascimento da ficção apocalíptica nas séries de TV. Não, não me refiro a The Walking Dead, o mega-sucesso das séries de zumbi, ou outras de gênero semelhante. Refiro-me a séries que focam em catástrofes reais, passadas, ou realistas, projetando um futuro mais que tenebroso. Todas são recentes, não estando disponíveis por meios legais ao público brasileiro. Mas já estão por aí, para os que sabem operar a torrencialidade da Internet e que não se importam de usar tapa-olho como acessório de moda.
Essas séries têm em comum — como mencionou o confrade Sergio Kulpas em conversa recente — o fato de que representam o altíssimo grau de ansiedade que os tempos atuais imputam ao inconsciente coletivo. Não é fácil olhar para o noticiário em qualquer dia da semana, dada a enxurrada de notícias péssimas (e piorando) acerca do estado de nosso planeta e de nossa civilização. Pois lá está a TV para identificar essa angústia coletiva, fritar um alho com azeite, reduzir por 40 minutos, adicionar umas ervas finas e regurgitar o resultado nas gargantas daqueles de nós que esperamos de biquinhos abertos, ávidos.
São três as séries que identifiquei nessas últimas semanas que cabem nessa descrição, sendo que duas delas retratam catástrofes passadas enquanto a terceira projeta o que vem por aí com base nos acontecimentos atuais. Apesar de várias liberdades terem sido tomadas com as três séries, uma coisa é certa: essas não são histórias de ficção.
Vamos a elas.
Chernobyl
O nome já diz tudo, não é verdade? Trata-se de uma produção anglo-americana da HBO, uma série criada por Craig Mazin, que anteriormente escreveu várias comédias adolescentes como Todo Mundo em Pânico (3 e 4) e Se Beber Não Case (2), entre outras. Ao que parece, ele decidiu se dedicar a assuntos mais sérios e leva jeito para a coisa.
A série reconta de forma ultrarrealista os acontecimentos na extinta União Soviética após o acidente ocorrido na usina nuclear de Chernobyl, em 26 de abril de 1986.
Que tristeza foi aquilo. Um reator nuclear explodiu por conta de uma sucessão de erros dos técnicos e administradores, e outra sucessão de erros — muito maiores e muito mais letais — se iniciou a partir daí. Nada como a estupidez e a burocracia do governo soviético para transformar um acidente grave em uma catástrofe de proporções continentais. Os dados que temos hoje sobre o espalhamento da nuvem radioativa de Chernobyl sobre a Europa são horripilantes como mostra o vídeo abaixo. A radioatividade foi detectada a milhares de quilômetros do ponto na Ucrânia onde ocorreu a explosão.
A única boa notícia é que o cidadão soviético — calejado por quase setenta anos de “bota na cara” — não se furtou a dar sua contribuição, sempre que cooptado pelo estado, auxiliando como pôde no esforço de reparação. E, como era de se esperar, esse cidadão deu sua vida sem reclamar. Milhares foram os que se sacrificaram para evitar que o desastre provocasse a inutilização de boa parte do território europeu por séculos à frente.
No elenco, Jared Harris (de Mad Men), Stellan Skarsgård (de Gênio Indomável e Amistad) e Emily Watson (de A Menina que Roubava Livros) representam os principais envolvidos na resolução do problema, indicados para suas posições pelo governo soviético, encabeçado à época por Michail Gorbatchev.
A série discute o evento sob o ponto de vista histórico, tomando poucas liberdades, como por exemplo juntando vários cientistas na figura da pesquisadora fictícia Ulana Khomyuk, vivida por Emily Watson. Contudo, todos os passos, tanto os que levaram à explosão do reator, quanto os que foram tomados a partir daí para conter o problema, são reais, inclusive com os nomes dos envolvidos preservados na série.
A cinematografia é perfeita, com os produtores tendo optado por cores bastante esmaecidas, sem qualquer saturação, adicionando à desolação que sentimos ao testemunharmos o desenrolar da história.
A trilha sonora é o que se espera para uma série de catástrofe: pouca música e longos acordes, crescentes em volume, colaboram para a atmosfera de fatalidade e desolação. É como se a cada nota o diretor estivesse sussurrando baixinho “Sim, Não tem jeito: isso vai acabar mal, muito mais do que você imagina.”
No fim das contas, mesmo que a história seja conhecida, os detalhes apresentados e todo o contorcionismo político do aparatchiksoviético fica escancarado. Aquilo ali, sim, é que é esquerdopatia. O PT brasileiro é um coral de igreja, em comparação.
The Hot Zone
Em 1994, quando a Internet ainda era uma criança e a Web ainda engatinhava, o escritor Richard Preston lançou o livro The Hot Zone, contando como o Ebola chegou aos EUA. O livro foi alvo de um artigo da revista Wired, e foi um dos primeiros que adquiri por meio da Internet, colocando meu cartão de crédito “em risco” muito antes de as pessoas se preocuparem com isso.
Pois é, e não é que agora, 25 anos depois do livro, o canal National Geographic comissionou uma minissérie em seis episódios contando — de maneira ficcional — o relato do livro de Preston.
Os personagens reais são a coronel Nancy Jaax (Juliana Margulies, de The Good Wife) e seu marido, o também coronel Jerry Jaax (Noah Emmerich, de O Show de Truman), além de personagens fictícias vividas por Topher Grace (de That 70’s Show) e Liam Cunningham (de Game of Thrones).
A história se passa em dois momentos: no Zaire, em 1976, com a descoberta dos primeiros casos de infecção por Ebola; e em 1989, com um carregamento de macacos importados para a Virginia (para fins de pesquisa) acusando a presença do vírus. Nada como a possibilidade de uma epidemia com 90% de taxa de mortalidade a menos de 40km de distância da capital da maior potência mundial.
Novamente temos uma trilha sonora que murmura o tempo todo que o desastre está calmamente saindo do controle. Novamente temos um caso em que a burocracia e os joguetes de poder se opõem a cada passo do caminho àqueles que tentam desesperadamente conter o problema.
O Ebola — assim como a gripe suína e a gripe aviária — foi um desastre global que (ainda) não se confirmou. Diferentemente da AIDS, a epidemia foi contida e continua sendo coisa de país de terceiro mundo, restrita aos rincões africanos. Mas o que The Hot Zone nos conta é como essa calamidade chegou à porta da frente do primeiro mundo, tocou a campainha, tentou a fechadura, mas (até agora) não entrou.
Years and Years
A última versão do apocalipse a surgir na telinha é a produção britânica Years and Years, em exibição na BBC, e que em seguida será exibida pela HBO americana (se virá para o Brasil, é outra história, ainda sem confirmação).
A série junta política com tecnologia e se transforma em uma história digna de Black Mirror com duração de seis horas, dividida em seis episódios.
O enredo acompanha a vida de uma família de Manchester, quatro irmãos adultos, suas famílias e uma avó octogenária (no início da história). Já no começo, um caldeirão de “boas” notícias: Trump é reeleito, acirra o conflito dos EUA com a China e comanda um ataque nuclear a uma ilha chinesa. Delícia, né?
A partir daí a história salta para alguns anos à frente com o atual vice-presidente americano Mike Pence (um ultraconservador cristão que adoraria que voltássemos aos padrões morais vigentes durante a Inquisição) assumindo a presidência. Na Grã Bretanha, uma milionária e arrivista política chamada Vivienne Rook (vivida pela maravilhosa Emma Thompson) vai ganhando tração e pondo em ação seu projeto político, fundando um partido independente e cada vez mais se inclinando para um radicalismo de direita que tanto os americanos como nós, os brasileiros, conhecemos bem. No plano familiar, as várias crises que avassalam o mundo vão transformando e desarticulando os quatro irmãos, que se mantêm unidos, mas cada vez mais angustiados e incertos quanto ao futuro.
Aqui as longas notas dos instrumentos de corda ganham a companhia de um coral minimalista que entona algo que só pode ser traduzido em palavras para “Espera que ainda vai piorar bastante.”
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Nos três casos, a mensagem é clara e contribui para a angústia e para a ansiedade que as criaram: você pode até não ter percebido, mas o apocalipse já começou.
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