Cinco grandes questões – entre diversas outras também importantes – demarcam a conjuntura e as diferenças de projetos políticos e econômicos no Brasil nos últimos e nos próximos meses. São eles: a substituição de um governo eleito através de uma articulação política-jurídica-midiática por um programa oposto e rejeitado pelas urnas; a corrupção para financiamento das eleições e para enriquecimento ilícito; o corte dos gastos públicos; a reforma trabalhista e a reforma previdenciária.
Os cinco temas aparecem de maneira muito interligada, sendo difícil separá-los completamente. Este artigo, entretanto, pretende se debruçar com mais detalhes sobre a reforma da previdência.
Pesquisei e li dezenas de artigos e estudos com argumentos pró e contra a PEC 287/16. Ficou praticamente impossível tratar de todos eles neste espaço, de forma que selecionei alguns pouco deles aqui. Reproduzo a lista ao final para quem quiser se aprofundar no assunto.
Um destes estudos me pareceu o mais completo: “Previdência: reformar para excluir? – Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da Previdência Social brasileira” – elaborado pela ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) e pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Este documento é um precioso estudo de 212 páginas sobre a situação da Previdência Social e sobre a PEC 287/16. Existe ainda uma versão sintética, com 48 páginas, que destaca os principais dados e argumentos do estudo. Como o tempo de todos é precioso, sintetizo aqui alguns dos principais elementos.
O documento original se inicia com uma boa análise da situação econômica nacional recente, desde 2014, e os falsos argumentos de que são os gastos sociais que a agravariam. Mostra a relação da reforma da previdência com os objetivos gerais do atual governo em reduzir o papel do estado na distribuição de renda e acesso aos serviços públicos, o que se comprova pela recente aprovação da Emenda Constitucional 95/16 que limita os gastos sociais do governo nos próximos vinte anos, o que visa “reduzir as despesas primárias do governo de cerca de 20% para 12% do PIB” (ANFIP, 2017, p.14).
O estudo demonstra, em seguida, que a proposta de reforma se baseia em premissas questionáveis. Após o que li eu diria, premissas completamente falsas: a crença de que o desajuste seria provocado pelo gasto social; o envelhecimento da população; e, o mais grave de todos, a própria existência de um déficit e seu crescimento descontrolado.
Não é difícil perceber a incongruência deste raciocínio. Em 2015 tivemos o maior corte de despesas dos últimos anos. Nas palavras do professor Belluzzo, “No momento em que a economia estava se contraindo, estava perdendo receita, a presidente fez um contingenciamento de mais R$ 8,5 bilhões, em cima de um contingenciamento que já tinha ocorrido, de R$ 70 bilhões”. Ou seja, o governo brasileiro gastou menos em programas sociais em 2015 e 2016 – de forma que não poderia ser o aumento das despesas que gerou o alegado problema.
O envelhecimento da população, que deveria ser comemorado com uma conquista social, é apresentado como justificativa para a redução da qualidade de vida – e da própria sobrevivência – desta mesma população. Há uma série de experiências internacionais que permitem enfrentar este necessário aumento de despesas com o pagamento de aposentadorias, como o aumento da remuneração e das contribuições médias por quem está na ativa, alteração da forma de financiamento, taxando renda e riqueza e não o trabalho, criação de fundos financeiros baseados em petróleo e gás, entre outras soluções já conhecidas.
Finalmente, o mais repetido e mais falso argumento a favor da reforma é a própria existência do déficit. Há diversos estudos que justificariam uma CPI para investigar o assunto e barrar a reforma. E, eles são claros. Assim como em diversos países desenvolvidos, a Constituição de 1988 definiu que nosso sistema de seguridade social teria um financiamento tripartite: trabalhadores, empresas, governo. E a CF também diz de onde sairão os recursos da parcela do governo. Mas isso não começou em 1988. Desde 1930 o sistema prevê contribuição estatal.
O argumento é tão ridículo que vale a pena olhar um gráfico elaborado pelo estudo da ANDIF:
1 – Reproduzido de Andif, 2017, p.19. Disponível em: http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_21_02_2017_17_29_36.pdf
É possível ver que, em geral, a parcela de contribuição do governo é muito superior à contribuição dos trabalhadores e, em alguns casos como Portugal, Finlândia, Itália, Reino Unido, Suécia, Irlanda e Dinamarca, é maior ainda que a soma das contribuições dos trabalhadores e empresas. Aqui no Brasil, entretanto, apesar das fontes de financiamento serem constitucionalmente definidas, o aporte do governo no sistema é tratado como déficit. Um erro conceitual grave que tenta ocultar os reais interesses por trás da proposta.
O percentual do PIB que o Brasil investe na previdência, 7,5% também é bem mais baixo que na maioria dos países estudados: Alemanha, Bélgica, Eslovênia, Espanha, Finlândia, Hungria e Polônia superam os 10%. Áustria, França, Grécia, Portugal e Itália superam os 13%. Para efeito de comparação, as despesas com os juros no Brasil em 2015 atingiram 8,5% do PIB. Qual deveria ser nossa prioridade?
Vejamos outros números ainda mais esclarecedores:
A partir dos dados existentes em duas tabelas – Figura 9, página 59 e Anexo 1, página 207, elaborei a tabela abaixo que permite ver claramente o truque embutido na argumentação do governo.
2 – Elaborado pelo autor a partir dos dados da Andif/Dieese 2016. Valores em bilhões de reais.
Os defensores da PEC levam em conta apenas as receitas em verde, desprezando uma boa parte das receitas determinadas pela própria CF e também parte das despesas, considerando apenas aquelas em laranja. Através deste artifício tentam demonstrar a existência do déficit de R$ 85,8 milhões (436-350) que justificaria sua proposta. No entanto, verificamos, com o conjunto dos dados, que na verdade a previdência é superavitária e – além disso, o superávit dos anos anteriores deveria compor a reserva para o futuro.
Pode-se argumentar que houve redução do superávit nos últimos anos. O estudo mostra também que o desempenho da economia influencia diretamente as receitas e despesas do sistema, o que explica este movimento tipicamente sazonal. O próprio estudo apresenta uma série de simulações com projeções de aumento do PIB e seus impactos sobre o sistema, o que confirma que sempre que a economia vai bem, a saúde financeira do sistema melhora. Ou seja, não é razoável se utilizar de uma fotografia num momento de recessão grave para tentar reduzir direitos fundamentais do cidadão.
Além disso, segundo o estudo,
O suposto “rombo” R$ 85,8 bilhões apurado pelo governo em 2015, poderia ter sido coberto com parte dos R$ 202 bilhões arrecadados pela Cofins, dos R$ 61 bilhões arrecadados pela CSLL e dos R$ 53 bilhões arrecadados pelo PIS-Pasep. Haveria ainda os R$ 63 bilhões capturados da Seguridade pela DRU e os R$ 157 bilhões de desonerações e renúncias de receitas pertencentes ao Orçamento da Seguridade Social. (Andif, 2017, p.20)
Além de todos estes valores, há ainda um crédito gigantesco derivado das dívidas de poucos devedores que totalizam mais de R$ 400 bilhões, de que poderia contribuir ainda mais para o sistema. O documento aponta também outra falha grave nos cálculos do governo, que soma despesas da previdência pública e privada, que são regimes distintos quanto às receitas e despesas.
Ou seja, não faltam recursos para a manutenção do sistema. Tanto que em 2015 este mesmo Congresso Nacional aprovou proposta do governo Dilma de um novo modelo baseado na soma de idade e tempo de contribuição, conhecida como 85/95, que superou o fator previdenciário da época da presidência de Fernando Henrique. Talvez esse seja mais um dos benefícios trabalhistas dos governos anteriores que geraram a fúria golpista que agora propõe esta PEC, defendida por uma nova coalizão em torno do atual governo que se iniciou, conforme podemos ver nesta confissão, aqui.
Um outro dado muito interessante apurado pelo estudo diz respeito ao impacto dos aumentos reais do salário mínimo sobre o sistema. Ao contrário do se dizia, apurou-se que o aumento real tem impacto sobre as receitas e sobre as despesas, sendo maior nas receitas. Simulações feitas mostram que, se o salário mínimo tivesse sido corrigido apenas pela inflação nos últimos anos, o superávit do sistema seria menor. Ou seja, gerar crescimento econômico e distribuição de renda são favoráveis ao sistema e foram medidas adotadas entre 2005 e 2014. Isso desmente o que se passou a apregoar a partir de 2015, quando aumentou a pressão para que o governo mudasse sua política, e o que vem ocorrendo com mais intensidade desde 2016. Ou seja, o remédio proposto tende a matar o paciente, e não o salvar.
Outro dado importante desmente que a previdência seja o maior gasto do governo. O estudo mostra que isso não é verdade. Se nominalmente as despesas da previdência foram maiores que as despesas com juros, entre 2006 e 2014 (em 2005 eram menores), o estudo alerta que do total de despesas da Previdência, apenas uma parte é coberta com recursos públicos, sendo a maior parte proveniente de contribuições patronais e de trabalhadores, enquanto que os juros são pagos integralmente com recursos públicos.
A partir destes dados o estudo então vai analisar cada uma das propostas e seus argumentos previstos na PEC 287/16, desmontando cada um deles. Voltaremos a estes detalhes na segunda parte deste artigo, na próxima edição, em Festival de Maldades, aqui no Confrariando.
Não é à toa que o debate tem incomodado o governo e seus aliados. Expostos à luz não resistem, viram pó como vampiros. Por isso a pressa em aprovar o mais rapidamente possível e encerrar o assunto – sem debate com os envolvidos. Por isso a chantagem mentirosa de que sem a reforma outros programas sociais serão encerrados. Por isso o volume gigantesco de recursos públicos com publicidade enganosa. Até nas telas de indicação das esteiras de bagagem dos aeroportos há inserções dizendo da ‘necessidade’ da reforma. Necessidade para quem?
Tempos sombrios nos aguardam. Enfrentar esta batalha é emergencial se não quisermos criar uma geração de velhinhos – nós mesmos – sem o mínimo de renda ou proteção no futuro – expostos a chuvas e temporais até o fim dos dias.
Referências pesquisadas:
http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2016/12/PEC-287-2016.pdf
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/belluzzo-afirma-que-dilma-cometeu-despedalada-em-2015/
PEC 287: A minimização da Previdência pública – http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_21_02_2017_17_55_39.pdf
Previdência: reformar para excluir? – síntese http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_21_02_2017_17_30_29.pdf
Previdência: reformar para excluir? – completo http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_21_02_2017_17_29_36.pdf
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/03/1863267-reforma-da-previdencia-sob-suspeicao.shtml
http://cut.org.br/noticias/reforma-da-previdencia-sera-o-estopim-da-rebeldia-popular-cd0b/
http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna=9&id_coluna_texto=7828
http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13963
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/dieese-reforma-da-previdencia-desmonte-social.html
http://brasildebate.com.br/a-previdencia-social-nao-tem-deficit/
https://www.youtube.com/watch?v=pP2IGTZOS4M
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Foto de Reinaldo Barros Cicone
Bom dia. A tendência da política brasileira vai sempre em direção a elite. Essa elite, todavia, deveria perceber e lembrar que a sua genética deveria ser voltada ao cuidado com os menos providos e não apenas ao cuidado consigo próprio. Obrigado por compartilhar o texto.
Pois é, amigo... enfim, vamos em frente... Eles puxam de lá, nós de cá... Grande abraço.
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