Em 2010 ultrapassamos um marco, no que concerne a computação, que é ao mesmo tempo impressionante e desconhecido do grande público. Naquele ano, no lançamento do iPhone 4 da Apple, a Humanidade atingiu um ponto singular em seu desenvolvimento: pela primeira vez um telefone celular — um smartphone, para ser mais preciso — atingia um poder de processamento superior a todo o poder de processamento à disposição da NASA no ano de 1969, quando aquela agência colocou dois astronautas na superfície lunar e os trouxe de volta sãos e salvos para a Terra.
Olhe para seu celular. Dificilmente ele terá menos poder de processamento que o velho aparelho da Apple, já obsoleto há bastante tempo. O físico americano Michio Kaku foi quem trouxe este fato à luz, em seu livro Physics of the Future, em que explora fatos interessantes acerca do desenvolvimento tecnológico proporcionado pela Física.
O que impressiona — a mim, pelo menos — neste fato, não é apenas o desenvolvimento tecnológico impensável que ocorreu entre 1969 e 2010, pouco mais de 40 anos. É claro que demos alguns saltos quânticos nesse período, especialmente em tecnologia da informação. O que impressiona é a implicação social que obrigatoriamente temos que derivar desse fato: já que temos – você e eu – mais poder computacional que a NASA, que progressos temos trazido à humanidade com nossos supercomputadores de bolso?
Não que todos precisemos estar engajados em mandar astronautas para o espaço, obviamente, mas é fato que, ao afirmar que subutilizamos a tecnologia ao nosso alcance, cometemos um eufemismo sem tamanho. Com apenas uma fração do poder computacional que temos à nossa disposição no dia-a-dia, a vasta maioria do progresso da Humanidade foi atingida, enquanto usamos estas maravilhas da tecnologia para destruir fileiras de doce virtual e assistir vídeos de gato.
Quando essa situação absurda se fez presente em minha mente, duas ocorrências correlatas vieram em meu socorro, fornecendo pistas sobre como explicar o fenômeno.
A primeira dessas ocorrências se materializou nos lançamentos recentes dos flagships — aparelhos topo-de-linha — dos dois principais fabricantes de smartphones do mundo: a nova linha Galaxy, da Samsung, e a nova linha iPhone, da Apple. Em ambos os casos, outro marco impressionante foi atingido: ambas as linhas apresentam aparelhos que se aproximam (e, em alguns modelos, ultrapassam) o valor de mil dólares. Este valor até pouco tempo só era admissível, em assuntos de informática, a computadores já avançados em poder de processamento, memória e design. Os celulares sempre ficaram na faixa entre 100 e 500 dólares, mas a partir de agora passam a competir com seus “primos mais velhos”, os computadores pessoais. Com preços assim, passam a assumir ainda mais o papel de símbolos de status que já vinham ocupando em alguns casos (os iPhones em países subdesenvolvidos, sobretudo). Conta-se (apocrifamente) que o CEO da empresa Rolex uma vez ouviu a pergunta “Como vai o negócio dos relógios?”, ao que teria respondido “não sei, a Rolex não está no negócio dos relógios, mas sim no negócio dos artigos de luxo”. Essa anedota (provavelmente inventada por alguém que queria enfatizar o poder da percepção de um negócio) ilustra como poucas o movimento que vêm fazendo os principais fabricantes de smartphones: estão cada vez mais no negócio dos artigos de luxo, e cada vez mais afastados da percepção de que são empresas de tecnologia. Vendem o status que os que não conseguem comprar (e muito menos manter) uma Ferrari procuram. E a velocidade com que os estoques desaparecem, bem como o tamanho das filas no dia do lançamento atestam para o sucesso dessa estratégia. Usamos nossos celulares para desfilar, na vasta maioria dos casos, explorando apenas uma fração de seu poder de processamento e realização. Não são auxiliares eletrônicos, mas sim acessórios de moda, garantidores de status.
A segunda ocorrência se deu mais recentemente ainda, em uma roda de amigos, em que um dos presentes tentava sem sucesso se lembrar o nome de uma praia de Ubatuba. Não se lembrou, e quando um de nós fez menção de procurar no Google, ele se lamentou: “pena que estejamos tão dependentes do Google. Eu queria que não fosse assim”. O lamento mostra um lado paradoxal ao argumento do celular como artigo de luxo e não como assistente eletrônico, pois ao mesmo tempo que não usamos o poder do celular, quando usamos, nos tornamos dependentes de suas facilidades, bem menos afeitos a usarmos nossas capacidades cerebrais de raciocínio e memória. Uma pena.
Assim vamos usando esses aparelhos: à guisa de joia e muleta ao mesmo tempo. Os que usam os aparelhos de forma diferente, criativa, aproveitando seu potencial para realizar coisas novas, e não apenas para consumir e ostentar, são apenas exceção.
No mais tudo é vaidade: “vaidade de vaidades”, para citar o superlativo do Eclesiastes.
Ah, e preguiça. Muita preguiça.
Sensacional Ruy! Me pego pensando sempre no quanto somos superficiais, mesquinhos e individualistas em nossos usos tecnológicos. Não tenho respostas e propostas para este dilema, mas procuro, como pessoa, lembrar-me de humanizar tudo ao meu redor. Amo tecnologia e não gosto nem de me lembrar de vida sem Internet. Aliás foi vc quem me ajudou a ter o meu primeiro email (idos de 1996 - na Hipernet, lembra?). Depois disso sou quase sempre early adopter das tecnologias mais comuns. Mas me incomoda a necessidade da ostentação do mais caro e mais cheio de recursos, quando não usamos quase nada dos smart phones que temos em mãos. Invariavelmente. E, uma outra coisa que me incomoda é chamar a traquitana de telefone quando o que menos fazemos com eles é falar com os outros, certo? Bj
O que mais me impressiona é que quanto mais tecnologia, menos aproveitamos (no geral, claro, pois há exceções).Mais usamos superficialmente, levianamente. Mais tomamos a tecnologia como objeto de ostentação, desperdiçando chances fabulosas de melhorar nossas vidas e compreender melhor o mundo à nossa volta. Obrigado pelo carinho, Cida!