Não, eu nunca estudei Fernando Pessoa. Na escola? Bem, devo ter visto nas aulas de literatura, mas não lembro nem quantos heterônimos o rodeiam. Será imprescindível estudarmos um poeta para sermos tocados por suas obras? E, todos aqueles que o estudam são realmente tocados por elas? Qualquer um poderia se atrever a analisar os versos de um Fernando Pessoa?
Deixar-se embeber por versos poéticos deve ser bem diferente de analisá-los. A primeira experiência é pura emoção; a segunda, no entanto, apela à razão, ao pensamento concreto. Emocionar-se com Fernando Pessoa é entregar-se. Tentar analisá-lo é esperar que ele se entregue. De uma forma ou de outra, acredito que o pulsar das palavras de um poeta em nossos corações não seja o mesmo pulsar do coração que as concebeu. Aliás, estou certa de que um mesmo poema reverbere em mim diferentemente do que reverbera em você.
Quando você solta palavras vivas, deixa de ser o dono delas. Seja oralmente ou na escrita, as palavras engendradas transformam-se em matéria-prima para qualquer um moldá-las ao seu bel prazer. Compreender um Fernando Pessoa me parece uma tentativa sem qualquer garantia. Fico imaginando os acadêmicos que realizam profundas investigações, colhendo pistas sobre sua vida, alinhavando pedacinhos de sua história, radiografando cada evidência, combinando todas as possibilidades. Creio que, mesmo depois de tudo isso, a análise nunca será o que foi um Fernando Pessoa. Nunca saberemos, de verdade, o que se passava em sua mente ou como chorava seu coração.
Quando faço essas considerações, sinto-me livre para lançar mão dos poemas desse brilhante escritor e arriscar-me na busca por compreendê-lo. Afinal de contas, posso não chegar ao que foi Fernando Pessoa em sua vida, mas posso simbolizá-lo em minha alma.
Um dos meus poemas prediletos é Não Sei quantas almas tenho.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
Estaria Fernando Pessoa se referindo aos seus heterônimos? Ou, haveria muito mais almas dentro dele?
Fernando Pessoa seria o espectador e a paisagem? Seria uma alma passiva ou exatamente aquela que gera todas as outras?
Ou, quem sabe, o próprio Fernando Pessoa não seria mais um heterônimo da alma que assiste a tudo?
Haveria um fio condutor que ligava todas as almas dentro de Fernando Pessoa? Que fio seria esse? Divino ou humano?
Não sei se alguém poderia ter as respostas reais para esses questionamentos que me instigam. Para dizer a verdade, desconfio que nem mesmo o grande poeta teria.
Uma coisa é certa: seja lá o que invadia a pessoa de Pessoa, era grande, era muito e era incontável!
_________________________
Foto: by Marcos Lalli
Comments: no replies