AVISO: Contém (alguns) spoilers. E também não estou sendo 100% fiel à narrativa. Escrevo o que percebi, o que registrei, o que não é pouco, pelo que você, leitor e leitora, poderá perceber.
Na trilha nostálgica dos anos 1980, a incensada série Stranger Things teve sua tão esperada continuação. Os irmãos Duffer deram um encaminhamento adequado para cada um dos personagens da série, e houve a presença de outros tantos novos participantes que agregaram à trama uma forte carga emotiva. Você, leitor e leitora, deveria assistir a série: trata-se de uma narrativa fantástica clássica, com uma constituição de argumentos bem construída, mesmo que óbvia. No entanto, apesar do sucesso da série, todo o material disponibilizado pela plataforma Netflix descortina questionamentos interessantes e inclusive polêmicos em relação ao encaminhamento da produção.
Em relação à trama, a constituição do enredo em torno da invasão de nossa realidade pelos seres do chamado Mundo Invertido, a dimensão aberta pelas experiências realizadas no misterioso Laboratório de Energia de Hawkins, é tributária de algumas referências cinematográficas importantes. Entre elas, podemos destacar algumas, mais explícitas, como o filme Tubarão (1975), equivalente ao Demogorgon da primeira temporada, como os próprios Duffer colocam no conteúdo do making off (O Universo de Stranger Things, disponível na plataforma). Assim, a invasão de demogorgons na segunda temporada está mais para Gremilins (1984): algo tomado inicialmente por uma postura terna e ingênua que se configura posteriormente em uma ameaça, devido à ignorância consequente das ações do protagonista. Nesse sentido, os personagens Dustin (Gaten Matarazzo) e Steve (Joe Keery) se aproximam, formando uma inusitada dupla em meio aos episódios. São personagens que não contam com irmãos e, portanto, criam estratégias para se inserir socialmente. Os irmãos Duffer não são bobos e aproveitam o ensejo para promover mais um esquete dos anos 1980: a “broderagem”, ou a relação entre irmãos (do irmão mais novo ao mais velho).
Já a consciência coletiva da segunda temporada é um passo além, uma “evolução” da trama e do antagonista. Nesse caso, a exposição do misterioso ser que rege as criaturas, o Devorador de Almas, aparece de maneira insinuada, sem que vejamos sua dimensão plena, diferentemente do que ocorre na primeira temporada. Um recurso narrativo bem instigante, que permite insinuar sempre uma ameaça que paira, mas que nunca é evidente, sob o argumento de que o medo advém da ignorância. Esse mesmo princípio é utilizado para estabelecer um elemento importante para a constituição da verossimilhança da narrativa, que é a explicação dada pelas crianças: de que o Devorador de Almas é uma forma de consciência coletiva, presciente, que se conecta a todos os seres vivos da dimensão do Mundo Invertido, e quer fazer o mesmo na nossa realidade. Outra produção que utiliza o mesmo princípio é o filme de John Carpenter Enigma do Outro Mundo (1982), em que um ser alienígena unicelular com alta capacidade cognitiva se apossa dos membros de uma expedição na Antártida. Assim como nessa história, não sabemos de onde vem a ameaça. Algo característico das narrativas fantásticas está presente aqui: a perspectiva dos eventos e as representações dessa nova realidade são dadas pelas crianças, não pelos adultos. São as crianças quem ditam essa mitificação da realidade que se lhes apresenta, como já fazem com a realidade factual. Como em qualquer narrativa primordial, são as crianças a reescrever a realidade, nesse caso por meio dos livros de orientação de role player game (o RPG).
Em contraponto a esse elemento, mas tão importante quanto, em ambas as temporadas da série, bem como nas duas produções que comentamos, temos a presença dos cientistas, que evidentemente estão ali para respaldar o argumento do inusitado e do fantástico. Em outras palavras, para afirmar como a realidade é, e não como ela se apresenta, a mens rea. Ao analista/cientista, cabe o papel de capturar a evidência para analisá-la, mensurá-la, realizar sua autópsia e, provavelmente, descartá-la e passar adiante para outro experimento. Assim os cientistas são os personagens que expõem a leitura literal da realidade, em oposição as possibilidades de variadas representações permitidas pela imaginação das crianças. De fato, os irmãos Duffer estão falando da própria narrativa cinematográfica que os influencia.
O grande tema da série é a memória, editada, construída, que trabalha com reminiscências, não com evidências. Não é gratuito o fato de que o nome da turma de amigos é o Clube do Audiovisual. O resgate dessa memória ocorre por meio da tecnologia e das potencialidades imaginativas e imagéticas que poderiam proporcionar naquele momento, sem o conhecimento do que se tornaram de fato atualmente. Assim, a memória pode estar personificada pela personagem Onze (ou Jenny, interpretada por Millie Bobby Brown), que tem o poder de reestruturar a realidade e viver em torno da primeira memória afetiva positiva que Mike (Finn Wolfhard) lhe proporcionou.
As personagens adultas que acreditam e vivenciam essas aventuras junto com as crianças, sempre apresentam uma relação traumática ou nostálgica com o passado. Assim, são personagens que mantêm uma ligação evidentemente forte com a memória. Hopper, o delegado interpretado por David Harbour, vive com o fantasma da filha falecida. Fantasmas. Os Caça-Fantasmas (1984) também estão ali, no dia das Bruxas. Joyce mantém os filhos à vista, pois teme se perder sem a presença deles. Por isso, Winona Ryder, como a beleza frágil revisitada, é a estrela da série. Mas é com grata surpresa que notamos o crescimento do personagem Bob, interpretado pelo ator Sean Astin, um dos adultos que estabelece a importância da imaginação, e ajuda a reconfigurá-la. É ele quem interpreta adequadamente as visões de Will e de seus desenhos, entendendo-o como um mapa de Hawkings. É ele o fundador da Sala de Audiovisual, onde a turma de amigos se reúne. É ele o herói de ocasião, bem hitchcokiano. É o Goonie em carne e osso, para materializar a ligação entre o passado dos anos 1980 e a nostalgia contemporânea. Uma pena que o personagem tenha morrido, mas esse terrível desfecho do herói morto, esse Aquiles eventual, serviu à boa causa dos irmãos Duffer. Ainda assim, foram realizadas algumas alusões ao retorno de alguns personagens que aparentemente foram mortos durante a primeira temporada. Então pode ser que ele volte a atuar na próxima temporada, como ocorreu com o personagem do Dr. Martin Brenner (Mathew Modine). A conferir.
Houve também momentos bem interessantes da narrativa, que revelaram alguns pontos não explorados da trama, ou ainda insinuados, como a narrativa de espionagem, a qual engendrou os experimentos no Laboratório de Energia de Hawkings e que gerou a cadeia de acontecimentos. Vale lembrar que, em uma trama de espiões, os personagens são movidos tanto pela necessidade de esconder suas próprias neuroses e defeitos, bem como para se descobrir e trazer à tona as fraquezas do inimigo, em que nada é o que aparenta ser. O clima de paranoia da Guerra Fria talvez seja um aspecto ainda a ser mais bem explorado nas próximas temporadas, já que alguns personagens, bem ambíguos, parecem ser espiões soviéticos, como é o caso do repórter investigativo Murray Bauman (Brett Gelman) contatado por Jonathan (Charlie Heaton) e Nancy (Nathalia Dyer). Movidos pela morte de sua melhor amiga Barbara (Shannon Purser) nos eventos da temporada passada, o casal procura um meio de denunciar as ações de acobertamento do governo norte-americano.
Já alguns episódios recorrem à nossa memória cinematográfica dos filmes de 1980 de maneira mais evidente. Nos episódios “Dig Dug” e “O espião”, o par Jonathan e Nancy têm uma relação à la Harry e Sally (1989), o que mostra como os criadores e produtores estão atentos a outros gêneros típicos daquela década. É bem interessante notar como a velocidade da edição, os enquadramentos de câmera se alteram, pois percebe-se nitidamente essas alterações durante os episódios, que permitem retomar um pouco da estética de filmagem e edição desses gêneros. O mesmo ocorre no capítulo “A irmã perdida”, que remete ao universo punk, bem retratado em filmes como Warriors, os Selvagens da Noite (1979), Ruas de Fogo: uma Fábula do Rock and Roll (1984) ou mesmo à referência explícita ao filme Mad Max (1979), que se refere ao apelido de Maxine, a paixão de Lucas. E, claro, os irmãos Duffer não poderiam deixar de tratar de um segmento importante da cinematografia dos anos 1980: o thriller erótico – com alusões inevitáveis a 9 e meia Semanas de Amor (1986), para ficarmos em um bom exemplo – por meio do encontro inusitado entre Karen (a bela Cara Buono), a mãe de Nancy e Mike, e o bad boy Billy (Dacre Mountgomery), que deverá ser mais bem explorado na próxima temporada.
Por outro lado, os comentários do documentário de entrevistas, disponibilizadas conjuntamente com os episódios da nova temporada, suscitam dúvidas em relação ao encaminhamento e até mesmo a viabilidade da produção. Os comentários recentes sobre a sexualização dos atores mirins e dos personagens infantis (como a polêmica cena de beijo forçado da atriz Sadie Sink) aproximam perigosamente a produção dos recentes escândalos de abusos sexuais envolvendo o showbizz de Hollywood, como o caso do produtor Harvey Weistein. Além disso, as mesmas narrativas aludidas pela série frequentemente expõem cenas de terror, de violência e de sexo explícito e implícito. Aparentemente não olhávamos essas produções com o mesmo rigor das produções de hoje. Continuamos a ser condescendentes com essas histórias, por mais tétricas ou assombrosas que possam parecer, e as reconstruímos como reminiscências, tal como acontece nessa trama.
O que a série – e a plataforma Netflix – tem nos proporcionado é resgatar essas narrativas e, portanto, esse passado, algo obscuro, relacionado aos primórdios das tecnologias que hoje conduzem nossas vidas, para assistir somente a hora em que pudermos. Lembre-se de que, em nosso texto sobre a primeira temporada, aludimos ao fato de que a regência do nosso escasso tempo livre se tornou um valor financeiro da mais alta conta. Aparentemente, esse Devorador de Almas pode representar o maltrato que realizamos com nossa memória e com nossas emoções. Uma consequência disso é a infantilização de nossa percepção da realidade: mesmo no afã de agir como adultos, tornamo-nos pequenos ditadores, mimados e medrosos. Talvez o personagem Mike seja quem mais bem evidencia isso: uma vontade inquebrantável de permanência, quando o mundo à sua volta sempre ameaça mudar e ruir. Ninguém está imune.
Isso também pode revelar um certo desgaste dessas narrativas, bem como pode também antecipar a falta de fôlego futura da série. Algo também a se conferir. Ao tirar esses esqueletos dos anos 1980 do armário, os irmãos Duffer nos proporcionam também nos atentar para nossos pesadelos contemporâneos. Como ocorre com o personagem de Will, interpretado pelo ator mirim Noah Schnapp, o Devorador de Almas – a memória mal interpretada, ou a emoção mal processada – retorna para nos devorar, em forma de pesadelos, neuroses, insônia, ressentimento, melancolia, em todos os sentidos.
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