Fiquei intrigado com alguns dos comentários ao meu artigo Em queda livre, publicado algumas semanas atrás. Alguns leitores teimaram em defender o cai-cai do Neymar e isso lhes pareceu mais importante que o ponto central do texto. Outros trataram logo de defender esse ou aquele nome que citei no texto, também se esquivando do xis da questão.
Pensando bem, ambas as reações são alicerçadas no mesmo terreno, e por mais que apenas uma delas aparente, o que as define é o futebol.
Explico.
Aqueles de nós mais afeitos ao esporte são introduzidos ao futebol desde pequenos. Pais, irmãos mais velhos ou parentes próximos nos encantam pelo time de seu coração, e nossa admiração por essas pessoas nos leva ao mesmo caminho, no mais das vezes. Independente de nossas preferências que ainda estão se formando, aquele passa a ser o nosso time. Torcemos por sua vitória, acompanhamos seus jogos, analisamos as compras e vendas de jogadores e as trocas de técnicos. E a despeito de, às vezes, nos frustrarmos com os resultados, aquele é o nosso time, e estaremos com ele seja qual for a situação.
O saudoso compositor Lupicínio Rodrigues descreveu com maestria esse sentimento no hino que compôs para o Grêmio:
Até a pé nós iremos
Para o que der e vier
Mas o certo é que nós estaremos
Com o Grêmio onde o Grêmio estiver.
Torcer, para a maioria de nós, é isso: é apoiar o time, independente do que ocorra. Choramos, claro, quando nosso time é derrotado. Mas em pouco tempo estamos nós lá, de novo, apoiando o “escrete”.
Mesmo quando o time (ou algum jogador do time) age de maneira menos adequada, não nos importamos. Simulou um pênalti inexistente mas o juiz deu? Tá valendo! O time comprou o juiz? Que mal tem? E por aí vai.
Claro que as mesmas situações são absolutamente inadmissíveis quando vêm de times adversários. “Simulador do capeta aquele Fulano. Você viu? Se jogou na área na maior cara-de-pau e o juiz caiu na dele!”. “Aquele time joga com doze: onze jogadores e mais o juiz”. E por aí também vai.
Um exemplo simples é pedir para um gremista e para um colorado lerem os primeiros parágrafos desse texto e exprimirem o que sentem. Os gremistas vão ler a primeira estrofe de seu hino e vão achar o máximo. Os colorados vão discordar e muitos serão os que abandonarão o texto aí. Em tempo: não sou gremista nem colorado. Só gosto muito do hino, uma declaração de amor de um dos maiores compositores da primeira metade do século XX no Brasil.
Torcer, para a maioria de nós, também é isso: aceitar tudo de errado em nosso time, enquanto hipocritamente rejeitamos nos times adversários. Em suma: torcer é deixar de lado o senso crítico e substituí-lo pela paixão irracional.
Para quem consegue olhar para o futebol de maneira imparcial, o cai-cai de Neymar é uma excrescência. Uma atitude antiesportiva, desonesta, digna de repúdio. Assim como a atitude de Rivaldo em 2001, que caiu com as mãos no rosto depois do zagueiro turco Unsal chutar a bola contra suas pernas. Resultado: expulsão injusta do zagueiro turco. Os exemplos de encenação são inúmeros e nenhum deles é justificável. Mas a massa de torcedores justifica. “Roubado é mais gostoso!” é comum ouvirmos depois de um lance desprezível desses gerar o resultado que o jogador desonesto esperava.
Recentemente uma amiga se posicionou a respeito: “Como censurar, se em muitos casos é só isso que o sujeito tem? Se em um país tão injusto só lhe resta a paixão pelo futebol?” Em que pese essa “filosofia” ter uma certa poesia no caso do futebol e da quase sempre periclitante condição do brasileiro, em um contexto mais profundo, mais primordial, essa é uma falácia perigosa. Principalmente porque quem é irracional e hipócrita com algo banal como o futebol, provavelmente não vai ser mais criterioso com assuntos mais importantes.
O que nos leva à segunda reação ao meu texto sobre o cai-cai nacional. Falei ali sobre a tentativa de levar na esperteza o que deveria ser feito de maneira honesta, clara, leal. Falei sobre ações irresponsáveis (ou corruptas, mesmo) de políticos que há séculos se dão bem na base do “jeitinho”, lesando o país. Falei sobre ações não-republicanas do judiciário — em especial do STF — encontrando motivos para soltar presos após processos judiciais os terem condenado, como no caso de Eduardo Cunha e José Dirceu. Falei sobre a tentativa de “cai-cai” de um plantonista que queria soltar um condenado em segunda instância, o ex-presidente Lula.
E aí que a vocação para torcedor ultrapassa os limites do futebol, para muitos de nós. Não foram poucos os que se levantaram para defender o ex-presidente e o ex-ministro-chefe da Casa Civil. Assim como em outros textos meus houve os que se levantaram para defender Bolsonaro, FHC, Alckmin, Maluf, Dória e tantos outros. Enxergam perfeição nos que defendem e rejeitam sem apelação os que consideram estar “do outro lado”.
“Ah, mas o Maluf fez um monte de coisas por São Paulo!”, “Ah, mas o FHC pôs fim a uma inflação endêmica!”, “Ah, mas o Lula foi personagem fundamental à redemocratização do Brasil!”, “Ah, mas o Bolsonaro quer dar o direito de defesa que o cidadão nunca teve!” gritam com relação aos “craques” de seus respectivos “times”. E muito do que alegam até pode fazer sentido para eles. De fato veem Maluf como um gestor ousado e visionário, por exemplo.
Mas a capacidade de enxergar é de torcedor, e para por aí. Não conseguem analisar criticamente esses personagens, como não conseguimos analisar crítica e objetivamente nossos times e nossos craques do coração. Não aceitam a realidade que acompanha seus ídolos políticos. São incapazes de enxergar que são seres humanos, e não os semideuses que criaram em suas mentes.
E pior: preferem se cercar de sofismas e falácias ao invés de enxergarem a verdade: “Ah, mas pelo menos ele faz alguma coisa!”, dizem os que se negam a enxergar que ao “fazer” o indivíduo lesou os cofres públicos em 3 ou 4 vezes mais do que foi “feito”. “Ah, mas ele entregou o país arrumadinho para o sucessor”, dizem os que se negam a enxergar que fora a estabilização econômica, nenhum índice social prometido foi atingido, e o patrimônio público foi espoliado (sem contar que a semente do pagamento direto a parlamentares foi plantada ali, antes da virada do milênio). “Ah, mas ele tirou dezenas de milhões da pobreza!” dirão os que se negam a enxergar o disparate de se criar uma folha de pagamentos extras a parlamentares para se ter projetos aprovados, o aparelhamento partidário de instituições governamentais, a cogitação explícita da censura aos meios de comunicação. “Ah, mas só ele vai por ordem nesse país!” dizem os que se negam a enxergar que pouca coisa de útil (e nada de concreto) está por trás da misoginia, da bravata, do discurso de ódio, da defesa da tortura. Tenha dó. Nenhuma dessas (entre várias outras) são mais do que expressões claras de nosso viés, de nossa parcialidade. Tanto que se fossem outros (de outros “times”) que tivessem feito o mesmo que o nosso, não aceitaríamos.
Levantamos nossas bandeiras e as usamos para cobrir os patentes defeitos de nossos ídolos. E mais: ao invés de exigirmos que corrijam esses erros, usamos os erros dos outros para justificar-lhes as falhas. “Pelo menos o Temer tem o português correto e não fala que nem bêbado dizendo que vai encaixotar vento”, gritam os que se recusam a ver que nos comparar com a Venezuela não é suficiente para justificar a penúria em que o governo atual nos meteu. “Se o Lula não tivesse tanta intenção de voto, não estaria preso, como no caso do FHC ou do Aécio, que estão soltinhos por aí”, gritam os que deveriam estar gritando pela prisão do FHC e do Aécio, ao invés de insistir que o Lula é inocente. “Ah, mas o Alckmin não roubou nada perto do que foi roubado no Rio de Janeiro!” gritam os que deveriam perceber que “roubar menos” não credencia ninguém a nada que não seja uma pena menor do que quem “rouba mais” merece. Em todas essas situações, estamos gritando algo na linha de “meu time compra juiz, mas não tanto quanto o time Fulano de Tal!”. Ah, para, vai. Larga a mão de justificar os erros dos teus ídolos. Não há santos na política, e essa atitude subserviente é o que garante que eles nunca melhorarão sequer uma vírgula, quiçá se tornarem políticos decentes.
O fato é que, ao deixarmos passar os erros de nosso candidatos ou partidos, estamos agindo como torcedores, e não como eleitores. Estamos deixando de lado o pensamento crítico, a capacidade de raciocinar. Estamos votando com o coração, e não com a mente.
E sabe quem nunca substitui a mente pelo coração? Eles, os nossos “craques” políticos. Eles sabem muito bem usar essa nossa paixão. E a usam a seu favor, e não a favor de nós, seus defensores, como muitas vezes pensamos. Usam nossa torcida para se locupletarem. (E só o fato de lermos esse parágrafo e balançarmos a cabeça em sinal de “não”, recusando-nos a enxergar os vários momentos em que ficou claro que fazem exatamente isso, já mostra o quanto somos vulneráveis).
Tem solução? Claro que tem: de um lado, passemos a usar a mesma lente crítica com o nosso time de futebol que usamos para com os times alheios. Afinal de contas, hipocrisia é um modelito que não vai bem em ninguém. Até porque ela nos anestesia e facilita sermos hipócritas em outros campos menos inconsequentes que nossas paixões futebolísticas. Do lado mais sério da questão, passemos a enxergar os nossos ídolos políticos pela mesma lente — analítica, fria, imparcial — pela qual enxergamos situações que não nos despertam paixões, ou pelo menos, sem a hipocrisia que nos leva a calar nos “nossos” o que achamos de errado nos “deles”. E mais: deixemos de lado aquela atitude calhorda de pedir para que os “nossos” sejam tratados com a mesma leniência inadmissível que os “deles” recebem. Quando fazemos isso, estamos só ajudando a perpetuar o estado de exceção em que vivem os corruptos. O Fulano de Lá está solto? Não vamos lutar para que o Sicrano de Cá — pego com a boca na botija e condenado — também seja solto, mas sim para que o Fulano de Lá seja preso, pois é um disparate não estar.
Puxa, mas a verdade é que eu leio tudo isso que escrevi nesse artigo e parte de mim tem vontade de cair na risada e encher de bofetada a outra metade, de tão besta que essa outra metade é. Ninguém que já não haja assim vai ler isso aqui e pensar “Taí uma boa ideia: vou deixar de ser torcedor em assuntos de política e também vou aproveitar e deixar de ser hipócrita em assuntos de futebol.”
Vamos continuar com nossas convicções (leia-se: crenças arraigadas, paixões idólatras e preconceitos disfarçados), dando nosso quinhão de contribuição para que esse país vá cada vez com mais verve para o brejo.
Fazer o quê, né? Torcedor é torcedor…
Realmente é lamentável a cultura ultrapassada de nossa população!!! Assim a evolução fica num caminho muito distante!!!!!
"Fazer o quê, ne?..." Se pelo menos aprendêssemos a criticar (Um dos artigos aborda um quinhão disto) aprenderíamos a imparcialidade com a injustiça que no deixa cada vez mais para baixo. A educação nivela a vivência social, isentando o ser de se dignar superior com relação a outrem, parafraseando Erasmo de Roterdão.