O meme é simples e está em circulação nas redes sociais. Nele, duas imagens são apresentadas com frases curtas: na primeira, uma leoa atacando fatalmente uma zebra, com a frase “Vítima desarmada”; na segunda, uma leoa observa impotente um porco-espinho que passa sem cerimônia, com a frase “Vítima armada”; para terminar, o fecho supostamente conclusivo “Alguma pergunta?”
Minha reação foi imediata. Claro que eu tinha várias perguntas, e não me fiz de rogado em coloca-las na discussão: nesse contexto, qual é a imagem sugerida para um bêbado armado em um bar da Vila Madalena (ou de Copacabana, ou da Savassi, etc.) num sábado à noite que puxa sua arma para um rapaz que está apenas conversando com os amigos numa mesa ao lado? Qual é a imagem para um estressado armado no trânsito numa segunda-feira, seis horas da tarde na 23 de maio congestionada? Qual a imagem de uma criança brincando de mocinho-e-bandido que acha a arma do pai e atira no irmãozinho mais novo? Qual a imagem do pai que dá um tiro na cabeça da criança que vai para a cama do casal no meio da noite? Qual a imagem da vítima armada que atira em um transeunte que não tem nada a ver com o assalto? Qual a imagem do assaltante que, ao invés de apontar a arma, já chega atirando para não correr o risco? Para o quadro ficar completo, precisamos de pelo menos mais essas imagens, argumentei com meu amigo conservador que postou o meme.
Infelizmente, em um primeiro momento, minha resposta à postagem — com todos esses questionamentos —, não foi me recebida. Obtive, de meu amigo conservador, a sugestão de apenas uma imagem: “a de um cara indeciso, que trata exceções como se fossem a regra. A imagem de um cara confuso, que nem sabe que é de esquerda, tendo de decidir entre, digamos, algumas centenas de mortes acidentais ou impulsivas (como os casos que você citou) ou milhares de vítimas poupadas, caso tivessem a chance de se defender.”
Um parêntese se faz necessário: acho interessante que tenha recebido de volta não um argumento, mas um ad hominem (um ataque pessoal): sempre uma indicação clara de que a contra-argumentação é fraca. Obviamente que o ad hominem não substitui os argumentos em um debate, não responde nada. Quer discutir o Aécio? Menciona que ele é frequentemente comprado por empresários e ameaça de morte quem recebe em seu nome, e não que ele, digamos, é mulherengo. Quer brigar contra o Dória? Aponte se corte na merenda escolar sob a estapafúrdia desculpa da prevenção à obesidade infantil, e não o fato de que ele é um ‘filhinho de papai burguês”. Quer debater contra alguém que defende o Lula? Aponte as amplas provas de seu envolvimento com a corrupção, não o fato de que ele gosta de cachaça. Quer falar sobre a Dilma? Aponte o estado ruinoso em que deixou a economia e o mercado de trabalho do Brasil por meio de sua política econômica (ou falta de) desastrosa, que a ter continuidade teria nos arremessado no lamaçal em que hoje se encontra a Venezuela, não o fato de que ela não é bem articulada no idioma português. Em qualquer dos casos acima, obviamente, esteja preparado para defender com fatos e números concretos suas ideias e afirmações. Em suma: atacar as ideias é válido em qualquer debate, mas atacar a pessoa, além de ser inútil, é praticamente uma concessão de derrota.
Mais interessante ainda é o teor da acusação pessoal: “você é de esquerda (e nem sabe)”, ou coisa que o valha. Acho interessante porque meus amigos de esquerda têm o posicionamento DIAMETRALMENTE oposto: acusam-me de ser “coxinha enrustido”, ou coisa que o valha. Para mim está de bom tamanho: se consigo me equidistanciar de direita e de esquerda, então estou no caminho certo (sob minha óptica e de acordo com meus objetivos, claro). Nunca me furtei a dizer que essa polarização entre direita e esquerda é uma estupidez sem tamanho, que permite outro grupo equidistante de ambos — a quadrilha que ocupa executivo, legislativo e judiciário no momento — continuar pilhando o país e rindo às nossas custas. Fecha parêntese.
Voltando ao assunto, se tirarmos o ad hominem da resposta de meu amigo conservador, fica um argumento interessante, que merece ser debatido: se armarmos a população, os casos de crimes evitados de maneira legal serão a regra, e os casos de mau uso, acidentes e que tais, serão a exceção.
Se formos racionais, é muito fácil perceber por que uma boa parcela da população pensa assim. Em primeiro lugar, há um sentimento de impotência gigantesco, nos dias de hoje, que prevalece em praticamente toda a classe média brasileira. A corrupção de um lado, a crise de outro, o crescimento das estatísticas de crime ainda de outro, e a inapetência do estado (leia-se: da polícia) de garantir a segurança, colocam esse cidadão em uma sinuca de bico. Não tendo a quem recorrer, ele passa a entreter o que entende como sendo a única saída: se o Estado não o defende — apesar da alta carga de impostos que pago todos os anos — que, pelo menos, conceda-lhe a oportunidade de que ele mesmo se defenda.
Não sou a favor da liberação do porte de armas de fogo, mas entendo perfeitamente e respeito esse raciocínio. Visto assim, fora de um contexto mais amplo, faz sentido. Ainda mais vindo de uma pessoa como esse meu amigo conservador: um cidadão sério, responsável, que tem a disciplina para fazer bem feito o que se propõe a fazer. Tenho certeza de que uma arma em suas mãos seria tratada com a seriedade e a segurança que o assunto merece. Ele passaria por todos os treinamentos necessários, manteria sua arma em perfeito estado de funcionamento, e a armazenaria da maneira mais segura possível. A quem o conhece, basta ver a seriedade com que treina e cuida da própria saúde por meio de suas atividades físicas para perceber que isso seria verdade.
Porém — ainda dentro da linha racional — seria razoável pensar que todos os (ou mesmo que a maioria dos) brasileiros trataria o assunto com a mesma seriedade, responsabilidade e disciplina que esse meu amigo? Não, não seria. Seria muita ingenuidade ou muita vontade de se autoenganar. Nós vivemos no país do jeitinho, do atalho, da propina. Vivemos no país em que se compra CNH, onde a cola é a regra (e não a exceção), onde qualquer desvio possível é tomado porque o caminho oficial dá muito trabalho. Por tudo isso, fica muito claro que o mau uso, o acidente, o abuso de armas de fogo não seria a exceção, mas sim a regra. Para cada cidadão de bem que conseguisse se defender adequadamente de um assalto, teríamos dois ou três casos de cada um dos exemplos que citei em minha primeira resposta.
E não adianta dizer que teríamos um sistema adequado de escrutínio, fiscalização e veto para o uso de armas aqui em nosso país, algo que garantisse que apenas pessoas capazes teriam acesso ao porte de armas de fogo. Todos os casos de falhas de escrutínio que temos no poder público hoje em dia (fraudes para comprar casa própria, fraudes na Previdência Social, fraudes no Detran, fraudes em contratos de empresas com o governo, e por aí vai) são indícios gritantes de que qualquer sistema nesse sentido também vai falhar miseravelmente. O resultado é que, em pouco tempo, cidadãos armados de bem, como esse meu amigo, serão uma fração do contingente de pessoas incapazes que estarão igualmente armadas.
Esse é um argumento baseado em fatos — o histórico e o estado atual das coisas —, que faz previsões futuras com base no que qualquer um pode enxergar nos dias de hoje em qualquer metrópole, cidade ou vila do Brasil.
Esse é o grande barato de um debate racional: a partir daí a discussão entrou no campo da lógica e da civilidade e não mais saiu. Meu amigo conservador identificou que, apesar dos indícios históricos e atuais, minha postulação de que para cada crime evitado teríamos três ou quatro mortes desnecessárias por acidente ou mau uso é apenas uma especulação. Admitiu também que é especulação sua posição de que serão “algumas centenas de mortes acidentais ou impulsivas contra milhares de vítimas poupadas, caso tivessem a chance de se defender”. Percebe como as ideias clareiam quando deixamos os ataques pessoais de lado e buscamos a lógica?
Ainda dentro da lógica, o amigo argumentou que “os EUA têm uma das maiores taxas de armas por habitante e, mesmo assim, a taxa de homicídio por habitante é muito inferior à nossa”. Aqui ele erra para menos: os EUA, na verdade, tem a maior taxa de armas por habitante do planeta. “Sei”, continua ele “que o armamento ou não da população não explica — isoladamente — tal diferença, mas parece ser um indicativo”. Olha que legal: ele foi buscar um caso real, estatisticamente comprovável, para contra-argumentar. Este argumento, em que pese ter seu valor, traz nas próprias palavras usadas, o meio de ser desconstruído: o armamento da população não explica — isoladamente — a baixa criminalidade (apesar de ser um indicativo a ser investigado). De fato: as diferenças entre Brasil e EUA são enormes em termos sociais, educacionais e cívicos. Os EUA não sofreram o mesmo tipo de colonização de exploração predatória que sofremos no Brasil; são um país que investiu na educação e na postura ética — pelo menos para uma parte bastante significativa de sua população — desde o primeiro momento; são um país que se enxergou como nação apenas a partir de sua independência, que — ainda que de maneira torta — preza por valores cívicos em pelo menos uma ou duas ordens de grandeza acima do Brasil, se é que é possível quantificar esse quesito. Não tenho dados concretos, mas estou inclinado a afirmar que o americano “médio” tem o mesmo grau de educação e a mesma seriedade/responsabilidade desse meu amigo conservador, mas nem de longe esse é o caso do brasileiro “médio”. Em média, o americano não abusa do privilégio que tem de andar armado, pois foi educado para tanto. Já no Brasil, continuo argumentando, essa seriedade seria exceção. Os casos que levantei lá no início do texto já acontecem hoje, sem que o porte de armas seja aprovado. Só crescerão exponencialmente, penso eu, se armarmos a população.
Tanto meu amigo conservador quanto eu acreditamos que não haja resposta perfeita, que inocentes vão morrer de um jeito ou de outro, qualquer que seja a solução tomada. Mas por todos os argumentos aqui apresentados, continuo enxergando muito mais malefício que benefício. Não só o armamento no Brasil não vai resolver o problema da violência, como vai agravá-la ainda mais, por conta de imperícia, negligência, irresponsabilidade ou simples má fé (e nenhum desses quesitos está em falta por aqui). O que está em falta que poderia ajudar nesse caso?
Em primeiro lugar, educação. Passou da época de levarmos educação a sério nesse país. Sim, é um processo que demora, é caro e tem resultados imprevisíveis (claro: as pessoas passam a pensar por si mesmas, e isso sempre é imprevisível). Mas é a única opção que efetivamente soluciona alguma coisa. Em segundo lugar, precisamos cuidar para que leis sejam cumpridas, punições sejam levadas a cabo e que a sociedade dê oportunidades iguais para todos. Apesar de também dar um trabalhão fazer isso, nós podemos contribuir bastante se aprendermos a votar em quem vai adiantar essa agenda ao invés de espoliar mais o estado.
É fácil? Claro que não. Fácil seria liberar o porte de armas. Seria fácil, mas não resolveria nada. Em pouco tempo os cidadãos de bem desse país seriam vítimas de muito mais tragédias pessoais do que as que hoje já abundam por aí.
Solução, de verdade, não se encontra com facilidade. Fácil é dormir nas férias, como sempre digo aos meus alunos. O resto dá um trabalhão danado.
Fácil é criar um bordão, "Bandido bom é bandido morto." UFA! Resolvido! Aham... Tbm vejo mais mal do que bem, mas vc já explicou muito e não sou eu que vou acrescentar algo ao debate. O que deixo é essa questão da educação. Pra mim sempre será educação, educação, educação, mas se percebe a importância da educação no enorme salário pagos aos professores... Quanto ganha um professor na Finlândia? Vixi, deixa quieto porque se algum professor ver o valor é capaz de começar a chorar ou entrar no primeiro curso de finlandês que surgir. Lembrei do Escola sem partido! OPA! Armados e sem a doutrinação, agora vamos! kkkkk Olha, está ruim, Ruy e vc ainda anda falando de alguns assuntos cabeludos! Bom, mas vc é esquerdopata, né? kkkkkk Aquecimento Global? Pô Ruy, como se a Terra é plana? Não, nada a ver, mas é assim que vejo alguns argumentos. A Carla pontuou que navegar é preciso, putz, mas que mares turbulhentos, não? Abs e ótimo final de semana!
Oi, Jaylei, Obrigado mis uma vez pelo contato e pelo carinho. Sim, a Educação é a chave, e insistimos em dexá-la em 49628483o. plano. Uma pena. Também concordo que tenho pego em temas cabeludos, mas são os que me saltam aos olhos.Eu adoraria ter coisas mais leves a comentar sem que elas suprimissem coisas mais tristes e importantes. Bom fim de semana procê também.