Conheci o Juquinha (nome fictício) quando eu morava em São Paulo. Chegou ao grupo alquebrado, tendo terminado uma etapa de desintoxicação que o deixou esquálido, por dentro e por fora. Um caco do que havia sido antes de se deixar destroçar nas insaciáveis e impiedosas presas do crack.
Descobriu que tinha de mudar o rumo do trapo em que sua vida havia se tornado quando se viu tendo que fechar com o corpo a porta de um quarto imundo em uma “pensão” na cracolândia, desesperadamente tentando evitar que as duas travestis que o perseguiam o cortassem na gilete para recobrar as pedras que ele havia roubado.
“Ou mudo ou morro”, a situação lhe mostrou, “não tem meio termo”.
Mudou. Quando o conheci, isso já era passado.
Aos poucos reencontrou seu sorriso, sua simpatia. Ajudava na distribuição de alimentos na Favela de Paraisópolis, participava dos eventos do grupo, conversava muito com a gente.
Queria ser útil, e era.
De vez em quando, à beira de uma recaída, ligava em casa, de madrugada.
“Cara, vou usar”, sentenciava antes mesmo de dizer que era ele.
Eu sentava na cozinha, com a luz apagada, fechava a porta e fazia a única coisa que podia fazer: ouvia. Ele tremia, chorava, doía, e eu só pedia: “Não desliga, eu tô aqui. Vamo conversá. Fala mais.”
Uma hora e meia, duas horas depois, a gente se despedia, os dois exaustos, mas inteiros. A queda evitada ainda uma vez mais, pela força dele e pela minha insistência que ele continuasse falando, porque se desligasse, babau.
Foram poucas as vezes que isso ocorreu, pelo menos na minha lembrança. E aos poucos até esses perigos foram passando.
Recuperou o amor e o respeito dos filhos, casou de novo, ganhou enteados, e ia nos churrascos lá em casa.
Voltou a viver.
Conto a história não porque tivesse recaído depois disso. Não que eu saiba. Morei mais um tempão em São Paulo, e ele continuou firme: família, trabalho, amigos. Um cara legal.
Conto pelo que ele me ajudou a enxergar, algum tempo depois de termos nos tornado amigos.
Eu cuidava do grupo de jovens, e era muito bacana. Fazíamos as nossas atividades em prol da favela, conversávamos sobre os problemas da adolescência, fazíamos eventos de prevenção contra as drogas, visitávamos orfanatos. A molecada adorava e eu também, claro.
Um dia apareceu um casal. Os dois pediam ajuda para a filha. A menina tinha 15 anos e não queria saber de nada, a não ser de drogas. Largara a escola, os amigos antigos e nem falava com os pais. Vendeu suas bonecas, seu aparelho de som (naquela época, isso ainda existia), sua pequena televisão do quarto. Vendeu todas as roupas que a mãe não conseguiu esconder. Tudo o que tinha na casa estava guardado, senão ela roubava para vender.
Os pais já não sabiam o que fazer. A menina só dormia, comia e sumia no mundo, voltando rasgada — às vezes machucada —, fedendo, fora de si. Caía na cama para no dia seguinte começar tudo de novo.
“Ajuda a gente, que a gente não sabe mais o que fazer.”
Eu também não sabia o que fazer. Me ofereci para conversar com ela, já sabendo que isso não ia ajudar em nada, e os próprios pais disseram que ela não queria nada com o grupo.
Aí lembrei do Juquinha. Ele tinha passado pelo processo de sair desse inferno, saberia o que fazer.
Quando falei com ele, a resposta me deu a impressão de que eu estava sendo atropelado por um ônibus:
“Olha, só tem que fazer duas coisas: por ela prá fora e trocar as fechaduras é a primeira; procurar um grupo de famílias de drogadictos é a segunda. Parece loucura, né? Colocar uma menina de 15 anos para fora de casa e cortar as relações, assim, de maneira radical. Mas vai por mim: não é.”
“Como não é, Juquinha? Como não é radical cortar uma filha do convívio da família?”
“É simples: se não fizer isso, a família acaba. O drogado não tem família, só droga. Qualquer coisa que se ponha entre o drogado e a droga é um obstáculo a ser removido. Não tem mãe, não tem pai, não tem amigo. Só tem a droga. Qualquer conselheiro, qualquer terapeuta que lide com drogado vai te dizer a mesma coisa: põe prá fora. E a família tem que procurar um grupo de apoio, pois lá vai encontrar gente passando pelo mesmo problema.”
“Tá, mas e se essa menina morre na rua? Como é que a família fica?”
“Nesse momento, a menina ainda não morreu, mas já matou a família para si mesma. É uma morte diferente, tem recuperação, mas a família não significa nada para ela. Ela pode até chorar e implorar para ficar, mas não é a família que ela está enxergando: é a cama, a comida, o teto e todas as coisas que tem na casa, que ela ainda vai dar um jeito de vender para comprar droga. Ela chora é porque vai perder esses mecanismos que a ajudam a continuar no caminho da droga. Só por isso. Ou seja: a família não está ajudando a tirar a menina do buraco, mas sim cavando mais fundo esse buraco.”
“OK, mas e colocar a menina para fora, resolve o quê?”
“Resolve que a família — se procurar um grupo de apoio e seguir o programa — se preserva, se fortalece, segue em frente. Tem outros filhos na jogada, não tem? Então, eles também precisam de pai e mãe, também precisam de lar, também precisam viver. O mesmo vale para os pais. E essa força, essa volta à normalidade, vai ser necessária, para quando a menina resolver voltar.”
“E quem garante que ela vai voltar?”
“Ninguém: ela pode morrer antes de querer voltar. Mas muita gente volta. Muita gente (como foi o meu caso) entende — de tanto apanhar, de tanto se ferrar — que precisa mudar. É só essa decisão, de próprio punho, que pode tirar a moça do abismo. E quando ela voltar para casa — depois de meses ou anos, não de dias, já vou avisando — vai precisar de todo mundo estar forte para poder recebê-la e ajudá-la como ela precisa.”
“Puxa, que maluco isso, Juquinha.”
“Parece maluquice mesmo. Mas fala para a família procurar ajuda profissional que eles vão ouvir a mesma coisa que eu estou te falando.”
Agradeci.
Contei a história para os pais, na semana seguinte. Eles ouviram praticamente a mesma coisa de um grupo de drogadictos anônimos que funcionava no bairro.
Nunca mais os vi. Torci muito para que aquela menina e aquela família se recuperassem.
O remédio receitado era “brabo”, cruel, doloroso. Amargo a não poder mais. Colocar um filho para fora de casa, alguém que a gente ama mais do que a própria vida, não deve ser tarefa nada fácil. Mas às vezes é necessário, como me mostrou o Juquinha.
É quebrar um ciclo vicioso, é desentupir um ralo onde tem água parada apodrecendo. Dói, mas precisa acontecer.
Isso aconteceu faz mais de 20 anos. Não sei se ainda se aplica, não sei se hoje em dia há maneiras menos drásticas e mais eficientes para se tratar situações semelhantes. Não recomendo ler essa história e achar que é solução. Não sou especialista no assunto: só estou relatando algo que ouvi e que me foi ensinado por alguém que viveu na pele.
Mas o ponto é a quebra do ciclo, é o chacoalhão que mostra que não há caminhos fáceis. É a atitude que machuca, mas com vistas a melhorar. É o amor austero, que visa se preservar para poder preservar o outro, quando chegar a hora de o outro ser preservado.
É também a solidificação daquele bordão dos drogadictos anônimos atribuído ao Einstein (mas que não é dele, por mais que seja sábio): “A definição de insanidade é continuar fazendo as coisas sempre do mesmo jeito e esperar resultados diferentes.”
Oi Ruy. Ótimo texto que remete a outras situações de vida. Eu só fico pensando se alo que não machuque tanto o outro poderia ser feito. Porque feridas vão ficar, afinal, ninguém é, literalmente, abandonado pela família e o inconsciente processa isso numa boa. Nessa questão da droga, o remédio amargo pode ser a solução, em outras situações, a conversa, a escuta, sem julgamento, talvez auxilie mais. Abs.
Concordo com você, Jaylei. Se bem que o texto foi escrito por conta de uma situação (não ligada a drogas) que pelo visto só vai se resolver desse jeito. Vício — ainda que seja só de comportamento — é um problema sério.
Perdi o meu primo no alcoolismo (perdi meu pai e meu avô também, mas este doeu mais) vivemos juntos, partilhamos quarto, mais hoje compreendo que foi a falta de compreensão da família que lhe levou a loucura, não que a família tinha que ser tolerante, mas quando ele voltava sóbrio em casa (porque ele ficava dias fora de casa), ninguém mais via a sua personalidade, víamos somente mais um alcoólatra sem cura. E o pessoal gritava e xingava, e isso fazia ele voltar nas drogas (ele tinha também o seu fumo). No final, se mantinha embriagado para não sofrer o que sofria quando estava sóbrio. Entrou em depressão profunda e, infelizmente, se foi. Sim, a família precisa ter força em todos os sentidos, para suportar este que muito precisa.
É sempre uma situação muito difícil, Julino, porque são pessoas a quem a gente ama muito. Uma tristeza. Abração procê.