Era uma manhã pálida e fria. Um gole do café bem quente e o sol bonito traziam aconchego aos pés gelados, mesmo cobertos por meias de lã. As mãos, resgatadas a todo momento dos bolsos quentes do roupão vermelho para buscar o café e escrever, já continham traços tristes de ressecamento por álcool gel. Um bom sinal de autocuidado para os dias atuais.
Eram muitas ideias, novos projetos e alguma solidão no meio disso tudo. Na maioria das vezes era mesmo solitude, pois era bom estar apenas consigo mesma. Nos poucos momentos de solidão, a saudade era do toque, dos mais diversos tipos de abraços e beijos, falta de sentir cheiro de outra pessoa, de ouvir pessoalmente outra voz humana. Entretanto, tudo era amorosamente compensado com a presença constante da natureza em seu lar. Seus dois filhos cachorros, os pássaros em busca de alimentos que ela colocava, as plantas com quem trocava confidências na varanda. Era um tempo solitário e necessário. A escrita brotava incansavelmente. Gostava de escrever da quarentena num tempo passado, como se fosse uma previsão de dias melhores. A inspiração sempre veio muito dessa esperança.
Cada manhã era sempre regada de uma rotina musical amorosa, saborosa e alegre, não importava o dia que fosse. E realmente importa o dia para se acordar bem? Possivelmente, não. Nos dias mais difíceis, pensava em tudo o que tinha e agradecia. Não deixavam de ser difíceis, mas a gratidão traz um tom de bênção tão acolhedor, com um gosto inebriante de paz fresquinha, que acaba por atenuar qualquer situação.
Havia algo de estranho na rotina toda da tal quarentena, que era não saber ao certo onde se pisava, onde se vivia, com quem se lidava de fato. Também muitos eram os indícios generosos de como desvendar isso tudo. A verdade de cada um se mostrava naturalmente, pouco a pouco. Nada de certo ou errado, só a verdade de cada um.
Clareza é algo muito inspirador, libertador, o que, para alguns, não deixa de ser perturbador. É algo infinito, como um livro a ser decifrado por toda a eternidade. Talvez o mais importante seja mesmo começar a ler. Estar sozinha pode facilitar a auto-observação, bem como a observação do mundo, da vida. Há tanta beleza e fala no silêncio. E há tanto silêncio na beleza e na não fala. O não dito pode ser encantador. A sincronicidade do não dito, do que se intui, sente, vive, vê e não se vê, pode enlouquecer a sabedoria mais soberana de ser, acredite. Mas é algo bem bonito de presenciar e degustar.
Alguns dias desse recolhimento traziam a sensação de se viver num mundo fake. A quarentena valia só para alguns, afinal? Mas e a solidão de saudade de quem não abraça, não beija, não está por aí? E a saudade de quem foi embora com o vírus e não volta mais, onde se guarda? Como faz? Fica guardadinha, como algumas pessoas estão em casa? Ou se grita por todos os meios possíveis, deixando a dor bater perna por aí, como muitas pessoas escolheram fazer? No momento certo, tudo será retomado. Qual é o momento certo, afinal? Isso existe? Para quem? Para todos? Isso realmente importa? Mais que vidas?
Sem pretensões de respostas, a escrita talvez traga um refúgio de perguntas expostas às frestas abençoadas de sol, daquelas possíveis em alguns momentos do dia para quem mora num apartamento, por exemplo. Talvez as certezas sejam a quarentena, que podem trazer a sensação de aprisionamento. As dúvidas podem ser representadas pela liberdade, que ainda não nos foi devolvida. Um dia será? Fomos livres de fato um dia? A liberdade não estaria dentro de cada um? Se está dentro, por qual motivo a quarentena aprisiona? Talvez o cerne da questão seja mesmo o medo, em especial o de se conhecer e o medo de ser. Tu és?
É isso. E é só?
Bom dia! Vc voltou!!! Ou eu que não percebi? :) Querida, seu texto flui com a leveza da borboleta que o inicia. Só por isso, gratidão! Apesar da leveza, deixa perguntas "pesadas", sinceras, que talvez, vc mesmo já as tenha feito, ou ainda as faz, afinal, quem somos e o que fazemos com esse nosso ser? Como não acho que esse ser seja imutável, de vez em quando o silêncio é importante e vale a pena checar. Quem sou? Ainda sou o que penso? Para onde quero ir? A pergunta, "O que realmente importa?", me dói porque existe a resposta que não, não são as vidas, pois todos vão morrer, e daí? Eu não entendo esse modo de pensar e isso, para mim, está errado e mais, é perverso, porém, tem essa outra frase do texto, de que nada está certo ou errado, só a verdade de cada um. É isso, como cada um enxerga o mundo, nessa vida (mesmo que seja somente essa), que experiências teve e por quais caminhos fluiu, para chegar a conclusão que não são, por exemplo, as vidas que importam, afinal, são só algumas mortes (chegando a 100 mil...). Não vou finalizar com uma tristeza que me invade pelo desprezo a tantas vidas, pois é bom, muito bom te ler de novo. É bom fluir no silêncio da leitura, pensar na clareza possível em silêncios e em quanta reflexão/ação pode advir deles. É isso. Obrigado pelas linhas e tenhas um ótimo dia, leve! :)
Olá, Jaylei! Como vai? Volteeei!rs É tão bom ler seus comentários maravilhosos de novo! Essa reflexão toda é sempre muito boa mesmo... Gratidão por sua contribuição sempre tão valiosa! Ótimo dia a você também! Beijo grande! :)