Há alguns meses decidi aceitar o desafio de um amigo de faculdade: estamos comemorando 30 anos de ingresso na Unicamp, e vários de nós — colegas de turma — se comprometeram a perder alguns quilinhos até o encontro no qual comemoraremos essas três décadas. No meu caso, o pedido é alto: dez quilos.
Quatro meses, oito quilos e muita fome mais tarde (e mais um mês até o evento, o que me dá tempo para tentar perder os dois que faltam e passar mais um bocado de fome), decidi que era um bom momento para meu check-up anual. Exames a sair pelo ladrão: hemograma completo, glicemia, colesterol, triglicérides e todo o resto.
Os resultados mostram tudo dentro da normalidade, mas dois dados me surpreenderam: do lado surpreendentemente negativo, apesar de uma estrita e balanceada dieta, continuo “limítrofe” no quesito colesterol; do lado surpreendentemente positivo, estou bem abaixo do limite de glicemia. Ao ver o primeiro resultado, minha primeira reação foi questionar, pensar na possibilidade do erro, pensar em refazer o exame. Ao ver o segundo, sorri por dentro e por fora. Comemorei comigo mesmo, como se tivesse ganhado um prêmio.
Depois de um tempinho, parei para pensar nessa situação, nessas duas reações tão díspares: fui rápido em questionar aquilo que me desagradou, relutei, remoí, disputei o resultado; fui rápido em aceitar aquilo que me agradou, e nem me passou pela cabeça que pudesse ser um erro, e muito menos cogitei em fazer o teste novamente.
Lembrei-me de um pequeno debate que tive com amigos no Facebook sobre uma notícia de O Globo da semana passada. (“Puxa, Ruy, mas logo aquele pelego da ditadura que se faz passar por jornal, sempre defendendo os interesses das elites?”, perguntarão meus amigos da esquerda). A notícia leva a manchete de Doria oferece dados de usuários do Bilhete Único à iniciativa privada, e pode ser encontrada aqui. (Silêncio total quanto à fonte, por parte dos meus amigos de esquerda, uma vez que se deram o trabalho de ler a manchete e, em seguida, e avidamente, o artigo).
Em meu comentário ao artigo — eu, que trabalhei mais de 15 anos na área de segurança da informação — levantei alguns pontos importantes: é antiético o governo disponibilizar dados sigilosos da população; é um atentado contra a privacidade — garantida na Constituição pelo inciso X do artigo 5 de nossa Carta Magna — do cidadão; põe o cidadão em risco, pois na base de dados há itinerários, horários, nomes e endereços de cidadãos, o que tornaria fácil, por exemplo, o trabalho de bandidos afeitos aos sequestros-relâmpago.
Não foi preciso esperar muito: meus amigos de esquerda comentaram, como era de se esperar, com o “isso mesmo” de costume quando o comentário é contra algum político de direita. Já meus amigos de direita foram rápidos em minimizar o problema e justificar a atitude (insana, imoral e anticonstitucional) do prefeito.
É bom observar, caso esse seja o primeiro artigo de minha autoria que você lê, que não sou de esquerda: lutei pela remoção da ex-presidente Dilma Rousseff do poder, e acho que já passou da hora de o ex-presidente Lula ser punido por seus crimes (que as evidências deixam claro que ele cometeu). Também não sou de direita: estou certo de que o Temer não tem a menor legitimidade para governar o país e deveria não só ser destituído de seu cargo, mas processado e punido pela Lava-Jato, assim como Renan, Aécio, Serra e quem mais estiver envolvido. Digo isso para afirmar o que venho afirmando há anos: são todos farinha do mesmo saco, e nenhum me representa. Quando acertam, não fazem mais que a obrigação, pois para isso são eleitos. Quando erram, devem perder seus mandatos e sofrer punições rigorosas, dentro dos estritos parâmetros da lei. Não tenho políticos de estimação e recomendo fortemente que ninguém os tenha.
Sobre o próprio Doria, já afirmei várias vezes (assim como afirmei o mesmo, também várias vezes, sobre o Haddad): é marqueteiro, joga para a torcida, e deve sofrer marcação cerrada em regime 24×7. No que faz de certo, não faz mais que a obrigação, pois foi eleito para isso. O que faz de certo não é desculpa para leniência.
Mas é exatamente isso que meus amigos de direita fazem: desculpam a atitude, pois “ele já fez tanta coisa boa por São Paulo”; minimizam o fato, pois “privacidade é um conceito ultrapassado, já que em qualquer banca de camelô da Santa Efigênia a gente consegue comprar os dados da Receita Federal de qualquer cidadão”; relativizam o absurdo, pois “fulano fez muito pior. Quer que ele volte?”. E por aí vai.
Os amigos de esquerda agem como eu agi para com meu exame de glicemia: concordam com o que leem, dizem “é isso mesmo”, e seguem em frente, ainda mais convictos de que o Doria é um crápula. Os amigos de direita agem como eu agi para com meu exame de colesterol: brigam com o resultado, tentam deslegitimá-lo, relativizam as coisas, como se fosse apenas “café pequeno”.
Nenhum dos dois lados percebe que, se o personagem em questão fosse do outro lado do espectro político, as atitudes seriam exatamente as inversas. Se fosse, digamos, o ex-prefeito Haddad, o pessoal de esquerda estaria negando, disputando, relativizando, e o pessoal de direita estaria aceitando rapidamente o fato e reforçando a própria opinião.
Acha que não é bem assim? Então veja: recentemente os jornais e revistas on-line vêm mostrando um pequeno vídeo do prefeito Doria sem cinto de segurança em um automóvel em movimento, alardeando que está indo trabalhar às 5:30 da manhã. A falta de cinto é uma infração prevista em lei, com multa e um risco à segurança do indivíduo. Café pequeno, dirão os amigos de direita, enquanto os de esquerda gritarão que é crime. Agora olhemos para alguns anos atrás, quando o ex-prefeito Haddad foi levado às manchetes pela mesma mídia, por ter passado um trote. O trote é infração prevista em lei, com pena de reclusão e risco à vítima (que poderia estar em uma emergência, precisando do telefone, mas foi impedida pelo trote). Café pequeno, dirão amigos de esquerda, enquanto os de direita gritarão que é crime. Viu como funciona? Há exemplos “pareados” como esses às centenas, aos milhares, mas nossa reação depende de que lado o perpetrador se encontra.
O que essa situação de ambiguidade mostra é aquilo que os pesquisadores da psicologia comportamental já sabem de velho: não importam os fatos, mas sim nossas posições pessoais. Os fatos não nos convencem, mas fazem recrudescer nossos posicionamentos. Preferimos nossas opiniões, nossas conclusões prévias, nossos “pré-conceitos” a evidências reais que descredenciem essas opiniões. Em suma, tratamos os fatos de acordo nossas posições: se estão de acordo com elas, nós os adotamos; se são contrários a elas, nós os rejeitamos. Simples assim.
A conclusão é triste, mas inescapável: tomamos posição favorável ou desfavorável ao mesmo fato dependendo de como esse fato se encaixa em nossa visão de mundo, o que nos coloca em situação de gritante hipocrisia. Se acredito que o Doria está certo, mas condenaria o Haddad pela mesma atitude, estou sendo hipócrita. Se condeno o Doria, mas aceitaria a mesma atitude no Haddad, também estou sendo hipócrita.
Enquanto continuarmos com essa atitude, não estaremos lutando pelo que é certo, não estaremos lutando contra a corrupção, não teremos o interesse do país em mente. Estaremos, sim, lutando pelo direito de permanecermos hipócritas. Podemos até nos convencer de que esse não é o caso, de que temos razão em relativizar, que no caso (idêntico) de nosso adversário “foi muito pior, muito diferente”. Mas se tivéssemos coragem de nos encarar com honestidade, perceberíamos que estamos nos enganando: estamos agindo, sim, na mais pura hipocrisia.
Assim fazendo, estaremos colaborando para que a situação lamentável em que nosso país se encontra atualmente se perpetue.
Concordo em gênero número e grau!
Obrigado pelo carinho, Silvia!
Ruy, parabéns. Como sempre, para quem o conhece, sua retórica é brilhante.
Obrigado pelo carinho, Cyrillo. Muito bom reencontrar-lo por essas paragens. Um abração!
Excelente texto! Nosso comportamento opinativo é reflexo de convicções opacas e desprovidas de fundamentos. Opinamos de acordo com a brisa da tarde calorenta: refresca por alguns momentos, mas não altera a paisagem. Parabéns!!(pelo texto, pela perda de peso e glicemia).
Verdade, Marcia, nossas opiniões, no mais das vezes, são reflexos de convicções desprovidas de fundamentos. Entendo que seja algo difícil de mudar, mas é muito necessário que percebamos o quanto somos "enviesados", pois só com essa consciência poderemos fazer algo a respeito. Afinal de contas, fatos não são sugestões, nem opiniões: são fatos. Como tais, deveriam ser respeitados. Do contrário, continuaremos agindo sobre nossos constructos mentais, que nem sempre espelham a realidade. O resultado disso é o que vemos hoje: "penso" que Fulano seja boa gente, e o aceito sem questionar; penso que Sicrano seja um crápula e o rejeito sem questionar. Aceito as mazelas e canalhices de Fulano porque "afinal de contas, ninguém é perfeito", e rejeito aquilo de bom que Sicrano pudesse estar fazendo. O país está nessa situação triste por conta desse comportamento de todos nós na hora de votar. Boa semana procê!