Ao revisitar o clima da década de 1980, a série da Netflix “Stranger Things” alcança imenso sucesso – nada casual, por sinal.
AVISO: Vou falar de Stranger Things, com alguns spoilers. Mas antes, uma introdução:
O papel e o acesso à narrativa atualmente – a quem tem condições de fazê-lo, diga-se – estão em mudança. Plataformas online de conteúdo nos possibilitam entrar em contato com um vasto repertório de conceitos, enredos, tipos e personagens e tramas que, até pouco tempo atrás, era-nos vedado conhecer. Um mapa de referências – da literatura, da história, do cinema, da televisão, da internet, passa a ser cada vez mais conhecido do grande público. Aquilo que ficava restrito a poucos se torna cada vez mais disseminado, por meio do consumo de conteúdo que a internet nos tem proporcionado.
O Netflix pode ser considerado um estudo de caso exemplar dessas plataformas, pois não é somente um intermediador entre os usuários e os produtores, já que passou também a produzir seus próprios filmes e minisséries. Disso advém algo interessante: na web, passa-se a cuidar do conteúdo que se disponibiliza a partir dos dados que se armazena. Lembre-se de que cada usuário tem seu próprio registro de itens visualizados, acessíveis tanto ao espectador como também aos gerenciadores da plataforma.
Tendo-se isso em mente, a nova série Stranger Things, lançada no início do verão nos EUA, tornou-se uma febre entre os apreciadores de histórias sobrenaturais, ficção científica, narrativas de infância e de formação, além das teorias da conspiração. Seguindo a mesma trilha de séries de sucesso, como Arquivo X, Sense 8, Twin Peaks, a história, que se passa em 1982, em uma pequena cidade no estado de Indiana.
Vamos ao enredo, brevemente: fatos peculiares passam a ocorrer simultaneamente na cidadezinha de Hawkins, aparentemente sem conexão entre si: o desaparecimento de um garoto e a busca desesperada de sua mãe e seu irmão mais velho – cada qual a sua maneira – por respostas; a investigação do sumiço pelo delegado de polícia da cidade, cujo passado atormentado é insinuado; o grupo de amigos do garoto – jogadores de RPG e fãs de Star Wars – que decidem procurar o membro da gangue sumido; o aparecimento de uma menina, que nada fala em princípio; a presença de uma instalação governamental, em que tudo é considerado confidencial, entre outras surpresas.
A história que se reveza em takes em cada núcleo da história, cada qual bem interessante e bem desenvolvido. A mãe, desesperada, passa a desenvolver maneiras peculiares de procurar seu filho. Baseado em um lugar-comum (do tipo “Toda a mãe sabe tudo sobre seus rebentos”), ela persiste em sua busca pelo filho desaparecido – dado como morto logo no início da temporada – intuindo que ele ainda vive. O irmão mais velho, como todo adolescente, busca à sua maneira proteger a família e ainda lidar com os dilemas da vida adulta que precocemente se inicia. O delegado da cidade passa a acreditar na história de ambos, baseado em sua experiência anterior como detetive da polícia em uma cidade grande, depois de perceber evidências, aparentemente improváveis, de que o menino ainda está vivo. Além disso, o quarteto de amigos da escola do qual faz parte o desaparecido – uma turma de garotos geeks, para ninguém botar defeito – também decide participar das buscas e topa com uma misteriosa menina de cabelos curtos e com avental de hospital que, apesar de não falar, tem poderes fantásticos como mover objetos e se comunicar com outras pessoas por meio do pensamento. Outro aspecto peculiar é a família disfuncional de outro membro da gangue, cujos conflitos (ou não-conflitos) entre si são um capítulo a parte. É o caso da irmã mais velha, mesmo intuindo se reconhecer na mãe problemática, não quer repetir os mesmos erros.
Além disso, temos outros dois aspectos bem interessantes que corroboram para se manter o suspense. Um deles é a presença de uma organização secreta do governo americano que, no esteio da Guerra Fria, utiliza uma instalação localizada na cidade para promover seus experimentos e objetivos questionáveis. Botar a culpa no governo é sempre uma saída bem fácil para dar asas as teorias da conspiração e cativar os fãs de outras histórias que se mostraram eficientes em fazer isso, como o Arquivo X. Outro aspecto é a Realidade Invertida, uma dimensão que, a partir de uma leitura da física quântica, é “descoberta” de maneira não intencional pelos experimentos, o que subverte a ordem e o entendimento da realidade.
Como é caro ao gênero das narrativas desse tipo, em todos os casos, isso revela um aspecto construído com esmero pelos roteiristas: todos os protagonistas são desajustados. Seu ponto de vista pode ser sempre questionado, pois nada é o que parece. Todos os eventos poderiam ser atribuídos ao desajuste das personagens. Sua inadequação ao mundo cotidiano os torna excluídos. A exclusão e a busca por constituir seu lugar no mundo é uma força motriz dos personagens. Todos lutam para encontrar seu lugar no mundo. Então, no mundo em que todos são desajustados, uma possibilidade de saída é a fantasia.
Na narrativa escrita e dirigida pelos irmãos Duffer, os produtores da série, pululam referências às narrativas comuns àquela década: as obras sobrenaturais e de formação de Stephen King; Spielberg e alguns de seus filmes mais famosos, como E.T – o Extraterrestre e Contatos Imediatos do 3º Grau. Os thrillers de ficção, como Alien, 8º passageiro, Enigma do Outro Mundo, além de Carrie, a Estranha, também estão ali. Há também a alusão indireta a outros filmes, algumas veladas, outras ainda não percebidas por este que vos fala. Ou seja, estão presentes as grandes narrativas fantásticas do fim do século XX, que se manifestaram pelo cinema e pela literatura, principalmente.
O fato é: nada há de novo nesse projeto. É aí que as coisas começam a ficar de fato estranhas…
Além de resgatar os antigos adeptos da estética e das referências dos anos 1980 – e convidar novos fãs (e a produção de páginas de fãs e fanfics, entre outros), há um subproduto não muito perceptível que surge desse fenômeno: nossas preferências moldaram essa narrativa. Como? Por meio de nosso histórico de visualizações dentro da plataforma do Netflix. Retomo o que disse acima: os dados dos perfis dos usuários são confidenciais a um público externo, mas não à própria plataforma. Como grande parte dos acessos diz respeito a certos segmentos, como os filmes e séries da década de 1980, é evidente que o setor de produções da plataforma percebesse ali um filão a ser explorado.
Há problema nisso? Nenhum, mesmo. No entanto, é questionável o modo como essas referências foram explicitamente utilizadas. Enquadramentos inteiros, diálogos, constituição de personagens, cenários, fundamentação e argumento da história, tudo está diluído e nitidamente perceptível aos olhos de um espectador dos anos 1980, que, tanto naquela época como hoje, perceberia nitidamente as referências.
Assim como ocorreu com o lançamento recente de ciclos de histórias bem conhecidas, como Star Wars e Star Trek – dominadas até, em seus mínimos detalhes pelos fãs mais aficionados – o que vemos nas novas continuações dessas narrativas é a tentativa dos produtores de revitalizar mitos perante seus fãs e, além disso, conquistar novos. Para tanto, os roteiros apresentados por ambos os projetos – coincidentemente, dirigidos e produzidos pelo mesmo diretor – evocam as mesmas imagens subjacentes nas tramas originais dessas sagas. Essa é um tipo de resposta à crise de criação a que passa o setor de produções televisivas e cinematográficas na atualidade, seja nos EUA ou em outros países, incluindo-se o Brasil.
Se promovemos o acesso à cultura como nunca antes, também nossa produção deveria responder à altura, inclusive abrindo mais espaço para o livre pensamento e à independência. Estes dois fatores não estão presentes na concepção de Stranger Things e de outras produções mais recentes. Em um contexto de cultura em que somos induzidos a (re)visitar elementos em comum, nós os reforçamos, mas não permitimos sua renovação por meio de novas referências, mesmo que seja destinada a uma cultura de massas.
A grande vantagem dessas obras do passado é o fato de que elas, por sua vez, também revisitaram narrativas também anteriores aos anos 1980, mas com o cuidado de que os temas fossem somente devidamente trabalhados, segundo o olhar inerente àquela década. Em outras palavras, o tema é revisto segundo uma perspectiva contemporânea a seu tempo, seguindo seus ajustes e desajustes. O que falta a essas narrativas – aparentemente feitas sob encomenda de nós próprios, os fãs – é que também queremos revistar aquele tempo, sem considerar o que ocorre no presente. Por isso é que as histórias de Spielberg, King, George Lucas, John Carpenter, entre outros, têm sobrevivido ao tempo: elas também conversavam com o seu tempo.
Se posso dar nome a estranheza que essas narrativas me dão é uma profunda falta de verossimilhança, mesmo com a lógica de nosso tempo. Não falo daquela falta de sentido lógico a que histórias desse tipo engendram, mas do tipo de desarranjo que se percebe nas entrelinhas. Isso não significa que Stranger Things não tenha seu valor (e o tem, bastante). Entretanto, revelo que fiquei com o gosto de arroz com feijão, de ter visto a mesma coisa, de que nada novo me foi acrescentado, ainda que estejamos falando de cultura de entretenimento. E, parece que, depois de bem conhecidas a fontes dessas referências, a coisa se esgota e perde bastante de sua vivacidade inicial.
Adoro reprises, bem como adoro reler livros e poemas, mas pelo que eles podem ainda me revelar de novo. Não para me mostrar sempre a mesma coisa.
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