Caminhava pela chuva com minhas galochas vermelhas, assim como quem caminha em seu reinado particular e soberano. A verdade é que não importava a ocasião, nem o clima, o lugar, a roupa, nada. Esse foi meu calçado predileto por um bom tempo. Eu tinha uma paixão toda especial pelas galochas por uma razão muito justa: era o mesmo calçado do gato de botas, mas com a cor da capa da Chapeuzinho Vermelho. Dá para entender porque eram tão únicas e incríveis? Eram mágicas e só eu sabia disso. Aliás, eu e meus pais, que respeitaram minha decisão tomada de forma tão divertida e feliz. Lembro de irmos a uma festa de casamento, em que eu usava um vestido lindo, com rendas, babados, um estampado delicado de flores, laço de fita na cabeça e, claro, galochas nos pés. E lembro também dos meus pais se justificarem, orgulhosos, aos chatos de plantão, dizendo que eram sapatos mágicos. Mencionei as galochas apenas para justificar o meu amor pela literatura desde muito cedo. Sempre muito criativa e questionadora, tive muito espaço emocional, psicológico, e afins, para expandir minha consciência nesse sentido. Cada novo livro era mais celebrado que brinquedo, tão celebrado quanto doce. Meu pai lia para mim todas as noites e, mais tarde, também para meus irmãos. Ali eu ainda não sabia sobre missão, propósito de vida, mas já tinha todos os indícios necessários para me achar, o que foi acontecendo aos poucos.
Ler e produzir textos sempre foram meus passatempos favoritos. Sabe aqueles teatros infantis que as crianças obrigam, generosamente, os pais a assistirem bem no horário do telejornal? Eu escrevia o roteiro e vibrava por atuar minha criação. Quando digo que sou escritora é porque realmente sempre escrevi, desde sempre. Na adolescência, comecei fissurada em poesia barroca, escrevia minhas dores de amores não correspondidos como quem vivera séculos escrevendo tais acontecimentos. Escrevia diários, cartas para amigas, roteiros diversos. Foi também na adolescência que encontrei minha maior inspiração para aprimorar o que sou, ou seja, foi o primeiro contato com Clarice Lispector, de quem sou fã incondicional e estudiosa devota. Escrever crônicas começou aí também, mas era sofrido. A baixa autoestima adolescente me dizia que eu era uma farsa, que ninguém gostaria do que escrevia e tampouco leria. Eu mostrava para meus pais, ótimos críticos e incentivadores. E fui lendo sempre, escrevendo muito, me aprimorando sem nem mesmo me dar conta. O mais engraçado é que, independente da época da vida, meu perfil de escrita sempre foi voltado a lógicas emocionais simples, para mim, e deliciosamente complexas de serem decifradas.
Desde sempre, soube que minha missão central de vida era mesmo escrever, mas não sabia ao certo o que fazer com isso, confesso. Entretanto, há pouco tempo comecei a ficar inquieta com um questionamento para o qual eu não via resposta nítida: qual o real propósito dessa missão?
Minha natureza é ser buscadora, o que estou aprendendo que é muito mais amplo, tranquilo e intenso do que parece. Para mim, buscar é algo que não tem fim. Enquanto se vive, se busca. Coisa que antes era motivo de uma ansiedade absurda e falta de fé naquilo que não vejo, hoje significa meu refúgio mais bonito de paz e serenidade. Identificar, acolher e aceitar minha natureza foi algo que me proporcionou uma liberdade bem doce e autêntica. O bacana foi entender que buscar não é mesmo para ter fim, pelo menos não para mim. O empoderamento que carrego, hoje, no olhar, vem muito dessa descoberta que considero fabulosa.
Mesmo com essa nova e audaciosa informação, eu ainda estava inquieta para entender a respeito do propósito de escrever. Para que? Para quem? Por quê? Seria realmente relevante para alguém? Foi quando percebi que essa inquietude, se bem tratada, pode ser muito saudável e uma aliada bem poderosa. O fato é que essas respostas vieram na mesma intensidade em que decidir não mais perguntar. Decidi sentir mais que pensar, mais que questionar, e apenas fazer o que precisava ser feito. O Universo, gentil e perspicaz como sempre, me trouxe muitas peças do quebra-cabeça da vida, talvez as mais essenciais até então. Trouxe das mais generosas formas, tempos, intensidades, por meio dos mais distintos mensageiros. E ainda traz todos os dias. Ou sempre trouxe e eu não sabia ler. Não sei. Só sei que foi a partir da leitura dessas peças que pude compreender o óbvio que não conseguia alcançar: eu escrevo porque sou escritora e isso me basta. A princípio isso pareceu tão ridículo quanto óbvio. Compreendi que não preciso saber para que, porque, para quem, nada disso importa. E sabe por quê? Simplesmente porque não sou eu quem decide sobre isso. Pelo menos não da forma como imaginava. Quem lê, decide se quer absorver o que tem ali ou não, se quer refletir ou não, gostar ou não, mergulhar ou não. Eu apenas faço o convite. Isso deixou tudo muito mais leve.
Cumpro minha missão, que é ser escritora, aliado ao meu propósito de tocar o coração das pessoas. Quando querem, se querem ou a forma como recebem, absolutamente nada disso é problema meu. Quando as palavras saem de mim, já não são só minhas, meus caros. Não me refiro à autoria, mas aos significados possíveis atribuídos ou não. Meu maior prazer é perceber que minha criação é recebida, não importa como. Entretanto, se eu não souber, ainda assim, sempre permanecerá o prazer de saber o quão abençoada sou por cumprir minha missão, dentro do meu propósito. O resto é consequência apenas, não me pertence.
Claro que tenho a intenção de viver daquilo que amo fazer, materialmente falando, trabalhei e continuarei trabalhando para que isso se torne real. Acontece que quando isso acontecerá, talvez seja algo que também não me pertença tanto assim. Como todo o progresso com relação ao amor às letras, desde as galochas vermelhas, sei que esse dia chegará quando eu estiver realmente pronta e apta a saborear toda a plenitude que me pertence, por direito e dever. De qualquer maneira, sigo sendo o que sou, escrevendo o que sinto, e amando ser essa grandiosidade de sensações em forma de textos, histórias, contos, crônicas. Sou intensidade à flor da pele da forma mais literal possível.
Amor ao que me destinei a cumprir, alegria por saber desse propósito, gratidão por poder seguir o caminho com serenidade. É isso e é só.
Comments: no replies