Puxa, eu estava me preparando para escrever um texto tão bacana sobre o que realmente nos motiva, com base em um estudo científico tão profundamente inspirador… Aí o chão sumiu debaixo de meus pés. Acordar de madrugada para trabalhar e trombar com a notícia de que todas as projeções estavam erradas, e que Donald Trump acabara de conquistar o posto mais importante do planeta não é nada fácil.
Um pouco antes, quando a vitória ainda não havia se concretizado, publiquei no Facebook (em português e em inglês, para que todos os meus amigos pudessem entender):
“Não se preocupem, amigos americanos: quando a Alemanha elegeu alguém com uma plataforma semelhante na década de 1930, tudo deu certo no final.”
Infelizmente, penso que a piada de humor negro não seja assim tão distante das possibilidades reais, e neste caso certamente o mundo inteiro vai concordar que constitui uma exceção à Lei de Godwin. Donald Trump é, de fato, um indivíduo perigoso demais para liderar o mundo.
Não só porque ele é racista. Não só porque ele é misógino. Não só porque ele tem em seu currículo uma vida de práticas empresariais para lá de antiéticas. Mas principalmente porque ele não tem o benefício de ninguém em mente a não ser o seu próprio, e nem qualquer tipo de escrúpulo para atingir o que considera ser “seu de direito”. É a mentalidade do con artist, o gatuno, o vigarista que sai com seu ajudante pela rua tentando encontrar algum desprevenido para vender um bilhete de loteria premiado, obviamente falso.
Ao mesmo tempo que isto preocupa, é um conforto, por mais contraditório que possa parecer. Trump, de fato, é um gatuno profissional que, durante toda sua idade adulta, foi bem-sucedido com base no dinheiro dos outros: um empréstimo milionário de seu pai permitiu que se lançasse aos negócios; inúmeros são os casos de abusar de seu poder econômico contra pessoas mais simples, como em vários dos casos de despejo de seus imóveis em Manhattan; há uma coleção de fornecedores que ficaram sem receber do magnata; sua “Trump University” nada mais era que um golpe em estudantes em busca de um diploma; ele tem laços com mafiosos; ele não paga impostos há duas décadas e se gaba disso. E essa é apenas uma lista parcial. Veredicto: gatuno, vigarista.
Ocorre que o vigarista geralmente usa de um subterfúgio — falso — para atingir seus objetivos. Sinceramente tenho esperança que este seja o caso no presente resultados das eleições presidenciais. Penso que Trump tenha usado do discurso patentemente falso de seu racismo explícito, de suas bravatas contra o sistema, de sua retórica inflamada exclusivamente para atingir a presidência. Tendo-a conseguido, espero sinceramente que ele mude o discurso, como já começou a fazer na manhã do dia 9 de novembro, quando se manifestou acerca da vitória que acabara de obter. “Buscaremos terreno comum, não hostilidade. Parceria, não conflito”, disse o presidente eleito, e sua retórica neste momento em nada lembra o celerado de poucas horas antes.
Imagino que ele vá se portar como um presidente conservador ao estilo de George W. Bush: belicoso, isolacionista, protecionista, arrogante, alinhado aos interesses do petróleo e do big business. Vai destruir vários dos ganhos feitos pela sociedade americana nesses últimos oito anos: vai destruir o sistema público de saúde criado por Obama e que garante saúde acessível e de qualidade para toda a população, não apenas para quem pode pagar; vai negar avanços obtidos pelas minorias (LGBTs, hispânicos, afrodescendentes, mulheres); vai acabar com acordos comerciais e pactos políticos internacionais (NAFTA, TPP e mesmo a OTAN estão em perigo). Mas não vai por fogo no planeta como muitos imaginam, e não vai se tornar um ditador vitalício. Puxa, diante de tantos cataclismos temos que nos consolar pelo fato de que ele não vai explodir tudo? Pois é, eu sei. É pouco, quase nada, mas ainda é alguma coisa.
A pior perda — e essa é gigante e brutalmente preocupante — será com o meio ambiente. Trump não vai fazer nada para barrar o aquecimento global, e penso que a situação vai ficar muito pior em seu governo. No caso dele, o “tudo pelo lucro” inclui destruir ainda mais a Natureza.
Não vai ser fácil para os americanos liberais, mas eles sobreviverão aos próximos quatro ou (Pé-de-pato, mangalô, três vezes!!!) oito anos. A democracia, enfim, não sucumbirá ao peso de Trump. Passado seu período constitucional, deixará a presidência, quem sabe para que alguém menos populista assuma o controle do país.
Prefiro pensar assim, porque o contrário é perigoso demais para este planeta. Se ele não aplicou um golpe no país para obter a presidência, isto significa que ele é assim mesmo, que sua retórica reflete seus princípios, e aí estamos todos em maus lençóis. Evidência disso, como mencionei no início deste arquto, é o fato de que em 1933 um austríaco assumiu o poder na Alemanha com uma plataforma e uma retórica perigosamente semelhantes às propaladas por Trump. O resultado, digamos, ficou um tanto aquém do ideal (de novo: às favas com a Lei de Godwin).
Melhor não pensar nisso agora, até porque já acabou: ele já venceu.
Mas, afinal, por que Trump venceu?
Muitos falam em “eleitores tímidos” — que sempre tiveram intenção de votar no bilionário, mas que nunca se declararam explicitamente. Outros alegam supressão de votos, com notícias de gente pobre sendo impedida de votar e outras peripécias semelhantes. Isso sem contar que apenas 1/3 dos aptos a votar realmente votaram, e segundo as intrincadas regras eleitorais dos EUA, Clinton teve mais votos nominais reais que Trump. Infelizmente, em função dessas mesmas regras, Trump elegeu mais delegados. Houve várias alegações de assédio de eleitores, houve filas, e o dia de eleição ainda é o mesmo de 171 anos atrás, um sistema criado para fazendeiros brancos, homens e religiosos. Penso que seja possível atrelar todos esses elementos à vitória de Trump, mas se foi isto mesmo, esses foram os mecanismos, não a razão.
A maioria dos que acompanharam a eleição (eu incluso) ainda coça a cabeça sem entender como pudemos ter projeções, pesquisas de boca de urna e pesquisas de intenção de voto, todas convergindo para uma vitória tranquila de Hillary Rodham Clinton no dia 8 à noite, para que na madrugada do dia 9 descobríssemos que Trump havia ganhado. Um dos resultados a emergir deste processo eleitoral é um descarte completo dos processos de previsão de resultados. Pesquisas? Lixo. Modelos de projeção? Lixo. Estão no mesmo patamar das quiromantes de rua que encontramos pelas vilas e rodoviárias de fim-de-mundo.
A razão para a vitória de Trump ainda vai ser discutida por muitos anos, certamente, e vai ser um conjunto bastante complexo de fatores que um dia vai responder a esta pergunta. Porém há três fatores que, quando combinados, estou certo vão ocupar posição proeminente na resposta.
O primeiro deles é o populismo. Nós, latino-americanos, não nos damos conta mais, pois vivemos o populismo desde que o novo mundo é mundo. Aqui no Brasil, só em nossa história recente tivemos alguns poucos momentos em que vivemos um populismo menos arraigado no governo. Sarney, Collor, Lula e Dilma foram governantes explicitamente populistas, e Fernando Henrique apenas marginalmente inferior neste quesito. Mas, no primeiro mundo, o populismo era exceção, e não regra. Isto é, até recentemente. Vejamos, por exemplo, na Europa, os países com membros populistas no governo, marcados em azul claro. Os países em azul bem escuro têm os populistas no poder:
Trump é um populista de classe mundial. Nada de seu discurso é por acaso, tudo visa agradar seu eleitorado e chamar indecisos para seu lado da questão, qualquer que seja a questão. Independente do resultado a longo prazo, dos efeitos colaterais, de quem seja prejudicado: ele diz o que uma parcela da população quer ouvir. E eles respondem à altura, como pudemos ver no dia oito de novembro.
O segundo fator é a ignorância, e neste ponto, como educador, estou ciente de que deveria fazer parte da solução, mas estou inapelavelmente atrelado ao problema. Nosso sistema educacional é falho, e não propicia ao educando a oportunidade de se apaixonar pelo conhecimento, de querer aprender, de entender que não sabe tudo, e ao invés de trocar a ignorância por ideias preconcebidas, só crescerá verdadeiramente se a substituir por conhecimento. A ignorância facilita sobremaneira o populismo — servindo mesmo de combustível para a ação dos populistas.
O terceiro fator é a facilidade com que hoje em dia qualquer um pode emitir sua opinião e disfarça-la como se fosse fato, sendo ouvido potencialmente por milhões de pessoas pela Internet afora. Blogueiros existem aos milhões, cada um com suas opiniões, cada um com suas parcialidades. E o fato é que, parafraseando Caetano, continuamos achando feio o que não é espelho. Navegamos com liberdade para onde quisermos, mas sempre paramos naqueles sites cuja mensagem casa com nossa visão de mundo. Procuramos — e, no mais das vezes, encontramos — ecos de nós mesmos, de nossas expectativas, de nossa visão de mundo, de nossos preconceitos e opiniões. E assim refestelamo-nos em opiniões que nos validam, e ignoramos o que discorda de nós. Assim, a taxa de desemprego mais baixa desde 2000 — quando Bill Clinton deixou a presidência — é ignorada em função da retórica vazia de que o país está na lona. Um servidor particular de e-mails que jamais gerou problemas de segurança ou revelou segredos de estado é mais grave que agressão sexual, sonegação fiscal e racismo. E por aí vai.
Não que seja fácil (pelo menos aqui no Brasil) encontrar meios de comunicação e noticiosos que possamos chamar de “isentos”. Costumo brincar que, isento no Brasil, somente o Sensacionalista, que já no slogan se revela um jornal “isento de verdade”. Ainda assim, quem quer se informar poderia faze-lo consultando pelos menos três ou quatro veículos menos parciais, cada um pendendo para um lado, e encontrar por si mesmo o equilíbrio no que está sendo noticiado, fazendo a média dos pontos de vista oferecidos. Vã esperança. Orbitamos sempre para o lado dos sites, blogs, revistas on-line, noticiários da TV que mais se aproximem de nossos próprios preconceitos, incapazes de olhar para o “outro lado” das questões.
Estes três fatores — populismo, ignorância, parcialidade na busca e oferta de notícias e opiniões — formam um cidadão que não só vota no Trump, mas no Brexit, no Le Pen, no Putin, e em tantos outros que quem tem um pouco mais de bom-senso enxerga como desastres monumentais.
O resultado é devastador. O clima nesses dias entre meus amigos expatriados e americanos nativos é de derrota, quase beirando o fim-do-mundo. Triste. Compartilho da opinião deles.
Ainda assim, é preciso seguir em frente. Ainda assim, o que nos resta é ser resilientes, levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, como diz a velha canção. Antes podemos ficar tristes? Claro. É um funeral: nada mais apropriado do que chorar. Merecemos este período de tristeza até para tirarmos este veneno do sistema. Até para podermos juntar forças para continuar.
Mas depois (sem demorar muito, porque a vida não para de passar só porque estamos de luto), o jeito é seguirmos em frente. Isso me lembra uma discussão em sala de aula, muito tempo atrás em uma aula de Português, com minha saudosa professora Adorama, que se foi aos 36, no distante ano de 1985, mas nunca me deixou.
Tínhamos lido O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway e estávamos discutindo o livro. Adorama chamou a atenção para duas passagens com o mesmo tema: na primeira, no início do livro, Santiago sonhava com leões na praia e acorda para mais uma vez se lançar ao mar, no dia fatídico relatado na obra. No segundo trecho, depois de deixar a carcaça do peixe amarrada em seu barco, no retorno da pesca, Santiago volta derrotado para casa. Nessa cena final do livro, ele dorme e mais uma vez sonha com leões. Quando a professora nos perguntou o que este segundo momento simbolizava, principalmente quando o relacionávamos com o primeiro, demos alguns palpites tímidos, mas não chegamos a nenhuma conclusão. Adorama, então nos ajudou, interpretando a passagem de forma para lá de linda: o sonhar com leões simboliza sequência, continuidade. Por maior que tivesse sido a derrota de Santiago, ele seguiu em frente, vivendo.
Sim, esta é uma boa imagem para este momento de derrota monumental: a vida continua.
Espero que todos, esta noite e nas que se seguem, possamos sonhar com leões.
Caríssimo, importantíssima reflexão! Enquanto isso: que sonhemos com leões!!!
Obrigado, Carla. Está difícil processar... Aí a gente lembra das raízes, de um tempo em que as coisas eram mais simples, e experimentávamos as dificuldades da vida pelas páginas da literatura. O périplo de Santiago é doloroso, a derrota amarga. Em seu âmbito ele sentiu o que o mundo sente, agora, com o Trump. E se ele conseguia sonhar com leões, a sugestão é mais do que bem-vinda para mim e para os que querem um jeito de seguir em frente. Que venham os leões!
Caro Ruy, compartilho o artigo do filósofo Slavoj Zizek sobre a eleição presidencial nos EUA, publicado antes da vitória de Trump. É uma posição que discordo, nem por isso deixa de ser instigante. https://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/slavoj-zizek/
Temos vários artigos nesta página. Emiliano. Qual deles? De qualquer forma, entendo (pelos dois artigos dele que li) que Hillary se configura na continuidade de um modelo nocivo, e que nem ela nem Trump deveriam sequer sonhar em galgar o maior posto do planeta. Em uma metáfora interessante, ambos são doenças graves. Contudo, vejo Trump como um carcinoma metastático super agressivo e inoperável, e vejo Hillary como um infecção múltipla, beirando uma septicemia. A escolha entre algo que certamente mata e algo que tem uma probabilidade grande de matar, a segunda opção me parece mais sensata. Sem contar que o voto no Trump foi um voto no preconceito, no racismo, na misoginia, no ódio. Por mais problemática que seja Hillary, um voto nela seria um voto na diversidade. E quando não há a opção de uma terceira via, quando a certeza é de que apenas um dos dois era viável, a escolha não poderia ser mais clara, a meu ver. Obrigado pela participação!
Nunca li tanta asneira escrita num só texto.
Puxa, Carlos, é mesmo? E você poderia, por favor, me esclarecer por que pensa assim? Desta forma, quem sabe, eu posso tentar melhorar para o próximo. Apresente seus argumentos de forma coerente que prometo lê-los e mesmo corrigir quaisquer erros que tenha cometido em meu texto. De qualquer forma, obrigado pela participação.
A Clinton, no comando do Obama, injetou 4,6 trilhões em guerras no mundo, orquestrando mortes, insuflando brigas e destituindo diversos governos legais. Arruinou a economia mundial para com os 70 trilhões que o país devia e que não consegue repor. Os EUA mereciam qualquer um dos dois candidatos. O mundo não. Mas conto com a esperança do Trump se ater a melhorar o seu país, também não sei como. E esquecer-se um pouco de nós. Para que possamos passar por cima desses bandidos que hoje nos governam.
Obrigado pela participação, Otto. Concordo com você que a Clinton não é flor que se cheire, que é mais pro-establishment impossível. É belicosa e autoritária (como qualquer governante americano desde o Teddy Roosevelt), é "mais do mesmo. O Trump será, neste quesito, mais do mesmo também. Evidências: depois de pregar "drenar o pântano" da política de Washington, está apontando lobistas e membros da indústria ao seu gabinete de transição; está se cercando de generais e militares intervencionistas para a defesa, nada diferentes do que a Clinton faria; já está em conversas com o pessoal da "energia suja" (petróleo e carvão) para voltem a ter folga em sua atuação. Em suma: mais pro-establishment impossível em suas ações, ao contrário do que disse em seu discurso. A Clinton Não é flor que se cheire, mas o Trump é igual em ser pro-establishment, e pior e ser racista, misógino e preconceituoso. Achar que ele vai dirigir seu racismo, misoginia e preconceito só para dentro dos EUA é ingenuidade. Os 70 trilhões da dívida externa americana não podem ser pendurados exclusivamente no Obama: não se esqueça que o Bush levou o país à bancarrota com a crise de 2008. O Obama herdou e, sim, expandiu a dívida. Por último, achar que o Trump vai deixar o mundo em paz é ilusão: a própria sinalização de que quer sair o mais rápido possível do acordo de Paris indica que ele não está nem aí para o clima, e isso nem de longe vai afetar só os EUA. Uma excelente semana para você.
Fui ler esse texto, escrito antes de eu começar a ler o Confrariando. Fiquei surpreso por alguém ler o seu texto e deixar um comentário de que nunca leu tanta asneira junta. Por mais que eu goste do modo como o Ruy escreve, das suas ideias e argumentos, mesmo que eu esteja achando "belo o que é espelho", eu não posso dizer que é tudo maravilhoso. Mas, asneira, e tanta? Sabe, a não ser que eu venha com um outro texto explicando, detalhando e mostrando que o Ruy é um asno e só escreve asneira, ao menos no meu ponto de vista (que eu deveria saber que não é o único e não contém a verdade das verdades), como poderia xingar alguém, por discordar de alguns pontos? Hmmmm, mas fazemos isso, não? :) Enfim, assim seguimos, na "Era da Comunicação", fazendo link com o texto da Carla. Um abraço.