No último dia 04 de dezembro desse ano, morreu José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar. O papel exercido no cenário literário brasileiro pelo poeta foi exposto de alguma forma nesse período. Percebemos, pelo menos em alguns dias a que se seguiram sua morte, o resgate de seus depoimentos e participações em colóquios, seminários, entrevistas, apresentações. Também foi possível assistir a momentos curiosos como leituras dramatizadas de versos de sua autoria, sua participação em importantes movimentos artísticos (como o Concretismo, o Neoconcretismo, e sua influência posterior – por exemplo – para os poetas e escritores da geração marginal, entre outros), além de sua biografia de militância. Seu ingresso na Academia Brasileira de Letras foi, para ele mesmo, um marco maior, pois passou a ser reconhecido na rua como o poeta imortal. Ele, que havia sido até certo ponto avesso ao reconhecimento que a ABL intencionava lhe proporcionar, nota o papel que a instituição e o consequente louro tinham sobre a população, tanto como público-leitor potencial como efetivo.
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5b/Gullar.2013.jpg. Acesso em: 14 dez. 2016.
Como consequência desse cenário em que nos encontramos atualmente, ficou nítido o papel do artista multifuncional que Gullar representava no contexto cultural e literário brasileiro. Pela conduta e pelos padrões do jornalismo cultural em vigência nos principais meios de comunicação e de produção de conteúdo, sabemos que ele foi poeta, escritor, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista, cronista, ensaísta. Durante os dias que se seguiram à sua morte, houve uma expectativa dos demais colegas confrades de que houvesse um texto em nosso portal sobre o devido reconhecimento de Ferreira Gullar como grande poeta brasileiro ainda vivo, explicitamente reconhecido como o poeta maior inclusive entre seus pares. No entanto, não acessamos sua obra por meio desse resgate, o que pode ser considerado um problema sob alguns aspectos, que pretendo explicitar aqui.
Um dos impasses nesse caso é o fato de que o tipo de cobertura que a imprensa dá ao falecido nos dá a entender sua importância, mas esvaziada de seu sentido maior, pois não essas notas informacionais não trazem o efeito que seus poemas nos proporcionam. Mantém-nos em suspense sobre como é importante esse poeta, quando a obra, na notícia, é negligenciada. Supõe-se, em um cenário assim, que falar do autor é falar da obra, quando na verdade não o é. Então, muito de mística é tecido, e inverdades podem surgir, no afã de capitalizar audiência ou saída de tiragens.
O que mostra esse oportunismo evidente é a queda significativa de menções e de acesso a conteúdo e palavras relacionadas a ele, dez dias após seu falecimento. O fenômeno não se restringe ao Ferreira Gullar: é algo nítido nos tempos atuais, em que a palavra, como elemento informacional, é regida como dado. Como tal, é armazenada, arquivada, mas não lembrada. Esse esvaziamento da palavra, portanto, em suas expressões literárias – a poesia, o romance, o drama, para ficarmos em uma classificação de gêneros literários tradicionais – acomete-nos a todos. Em um tempo regido pelo consumismo voraz e inconsequente, perdemos a oportunidade para a assimilação e para o devido usufruto do que consumimos, como se nossa experiência primeira fosse quebrada por uma leitura já proposta do autor. Evidentemente que os meios de comunicação a que me refiro aqui não se mostram como a plataforma reconhecida para acessar a matéria de que trato, mas ainda assim são também a única forma disponível de acesso à cultura, direta ou indiretamente.
Ferreira Gullar, como muitos de seu tempo, vincula os caminhos de sua vida ao seu fazer literário. É evidente que notamos elementos de matiz autobiográfico em vários de seus textos. Afinal, assim como ocorre com as tendências estéticas, o biografismo – o estudo da obra a partir de sua biografia – ainda persiste, a despeito de mais de um século de seu auge. Isso não impede que ressaltemos a importância do acesso à obra, para de fato sabermos os motivos de considerarmos “um monstro” na literatura.
Um monstro. Foi essa a expressão que notei de alguns amigos. Chamo a atenção de um em especial, que é o Pedro Marques, poeta e ensaísta (http://www.poesiaamao.com.br/). Sabia que o mano tinha usado essa expressão propositalmente, pois essa definição contém em si esse duplo que é a maravilha de sua existência e o espanto pela consciência da extensão de sua influência – para o melhor e para o pior.
A palavra poética não é compatível com o uso que se faz dela nesses tempos digitais. Antigamente era música e palavra, apreendida, recitada, seguida como reza. Depois, sofisticou-se, apartou-se da música, com a qual nunca deixou de estar de braços dados. Não poderia falar de um poeta sem efetivamente ler seus versos demoradamente. Defendo aqui que poesia é feita para muitas horas, e nem sempre é fácil. A poesia é para aquilo que nossa memória consegue assimilar. Poesia é para aquilo que nossa consciência consegue suportar.
Então, quando leio os versos a seguir:
Numa coisa que apodrece
– tomemos um exemplo velho:
uma pera –
o tempo
não escorre nem grita,
antes
se afunda em seu próprio abismo,
se perde
em sua própria vertigem,
mas tão sem velocidade
que em lugar de virar luz vira
escuridão;
o apodrecer de uma coisa
de fato é a fabricação
de uma noite:
seja essa coisa
uma pera num prato seja
um rio num bairro operário[1]
… percebo que a definição da noite já é para mim – para nós – algo maior, que fala para nosso tempo e, ao mesmo tempo, diz algo também ao tempo futuro, de tal maneira que não conseguiremos revisitar a noite sem nos lembrar de Gullar e de seu Poema Sujo, inclusive quando tomamos sua palavra como nossa.
Ou ainda quando o que nos impressiona é sua alusão ao amor passado, que me cala tão fundo no presente:
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e riso mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta[2]
Somente poderia falar algo da obra de Ferreira Gullar a partir de minha impressão de fato, ao encontrar-me com seus versos. Mesmo que seja esses registros sejam como se mostram aqui, ainda a tatear as nuanças que essas palavras contêm, permitimos assim que a memória e o tempo depurem aquilo de que é mais valioso. A cada visita a esses versos, mesmo que em intervalos de tempo maiores, também permitem revisitar elementos e rever certezas, quando for o caso. Esse texto é um desafio a você, leitora/leitor, a visitar por si mesmo os mesmos versos, afastada/o de minhas próprias impressões.
A cristalização de Ferreira Gullar no imaginário e no senso comum o alça a um pedestal quase inalcançável – por vezes, intransponível – quando, na verdade, precisamos de sua presença imediata. Em outras palavras: é somente o fato de assumirmos os versos de Gullar como a nossa palavra, assim como deveríamos fazê-lo com a escrita dos demais poetas e escritores que tanto homenageamos, permitiremos assim seu real e devido reconhecimento.
Poema sujo foi composto sob a ameaça de uma morte quase iminente, no exílio. Seus versos tratam de infância, de amor e do tempo. São expressões de resistência e de livre pensamento. É disso que precisamos nos tempos atuais, quando percebemos que começa mais uma noite dentro da noite.
O resto é pó.
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[1] In: GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. Toda Poesia. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015, p. 308.
[2] Idem, p. 284.
De fato, mano Guilherme! A poesia de Gullar, e não raro apenas um naco dela, fala mais fundo que todas as fotos e depoimentos pilulados por ocasião de sua morte. É incrível como nem o desaparecimento dele consegue, dentro da enorme ânsia por cliques, fazer aparecer ainda mais forte seu legado: a poesia. Sua crônica, me parece, vem nos trazer de volta para esse lugar estético e vivo que, por esses dias, também é luto. Abraço fraterno do Pedro.
Caro Pedro, é isso mesmo. Obrigado pela leitura! Abraço!