Quando as sondas Voyager 1 e Voyager 2 foram lançadas em 1977 contendo um disco de ouro com sons, imagens e mensagens acerca da Civilização Humana, o físico e astrônomo Carl Sagan chamou o esforço poeticamente de “a mensagem em uma garrafa lançada no oceano cósmico”.
Segundo o escritor chinês Cixin Liu relata em sua trilogia de ficção científica recém terminada “Lembranças do Passado da Terra” (Remembrance of Earth’s Past), que tem apenas o primeiro livro publicado em português, pela editora Objetiva), o ato equivale mais a um filhote indefeso berrando em uma floresta escura onde lobos e outros predadores são a única norma.
A trilogia é composta por três excelentes livros: O Problema dos Três Corpos (publicado na China em 2008, mas que ganhou o prestigioso prêmio Hugo apenas em 2015, após sua tradução para o inglês no ano anterior), A Floresta Escura (2008 em chinês, 2015 em inglês) e O Fim da Morte (2010 em chinês, setembro de 2016 em inglês).
É importante observar, antes de mais nada, que esta é a primeira obra de ficção científica chinesa a ganhar prestígio no ocidente. E a julgar pela qualidade, fico com vontade de explorar mais as produções daquele país, uma vez que esta trilogia é mais do que impressionante.
O leitor poderá estar pensando algo na linha de “ficção científica, por mais que o autor se esmere, não é lá um gênero que mereça atenção de fato, uma vez que historicamente muita baboseira tem sido produzida à guisa de ‘criatividade’”. Concordo em parte. Obviamente que o gênero está infestado de escritores que poderiam melhorar sua arte e sua técnica, mas preferem se esconder atrás do maravilhoso, das possibilidades científicas. Muitos deles, de fato, não se preocupam com o desenvolvimento dos personagens, com conflitos íntimos inerentes à natureza humana, com as influências do meio no íntimo de cada um e de como esse quesito deveria influenciar no desenvolvimento do enredo. Contudo, o mesmo pode ser dito sobre os autores de qualquer gênero literário: há os bons e há os que somente deixam a desejar.
No caso da trilogia de Cixin Liu, temos a primeira situação. É bastante visível que o autor se preocupou a não poder mais com as implicações não só tecnológicas, mas também psicológicas, sociológicas e filosóficas da história que nos conta.
Segundo o autor, a resposta ao paradoxo de Fermi — que, diante da enorme probabilidade de existirem milhões de civilizações no Universo, confronta a absoluta ausência de evidências destas civilizações com a questão direta “Onde está todo mundo?” — é simples: todo mundo está quietinho em seu canto, fazendo o possível para evitar que os demais os descubram, sob pena de serem imediatamente destruídos. O autor coloca este sentimento de forma brilhante e aterradora no último livro da trilogia:
“Quando a Humanidade finalmente aprendeu que o universo era uma floresta escura em que todos caçavam todos os demais, a criança que tinha suplicado pelo contato em volta da fogueira brilhante, apagou o fogo e tremeu na escuridão. Mesmo uma faísca a aterrorizava. […] Essa criança sentada em redor das cinzas da fogueira passou do otimismo ao isolamento e à paranoia.”
Cixin Liu alicerça seu pensamento solidamente na natureza humana, transportando-a para cenário cósmico. Não fomos nós mesmos que, ao longo da História, perpetramos nossas expansões, conquistas e genocídios, no “direito inalienável” que nossos interesses nos conferem? Não invadimos o Novo Mundo com uma sem-cerimônia torpe, dizimando populações e confinando os indígenas a “reservas”, roubando-lhes a terra e os recursos como se fossem nossos por direito? Não destruímos civilizações e escravizamos povos só porque nosso poderio era maior que o deles?
Quando, do outro lado, não silenciamos e nos escondemos enquanto éramos mais fracos nas invasões bárbaras, nas perseguições da Inquisição, na sanha assassina do nazismo e em tantos outros confrontos com forças inapelavelmente superiores às nossas?
E quando nossos “oponentes” não eram de nossa espécie, não avançamos sobre a natureza como se a destruição que perpetramos não significasse nada para nosso futuro? Não continuamos extinguindo centenas de espécies todos os anos sem nem ao menos nos darmos conta?
A diferença de nossa situação local para o cenário cósmico proposto por Cixin Liu é que passamos da condição de senhores absolutos de nossos arredores para a posição de uma jovem, ignorante, frágil e insignificante civilização em meio a inúmeras outras que olhariam para nós com o respeito que temos por um canto mofado no fundo de uma gaveta. Somos, aos olhos deles, uma inconveniência a ser removida sem a menor cerimônia. E por quê? Porque no futuro nosso desenvolvimento tecnológico pode nos colocar em uma posição de igualdade ou de superioridade, e não hesitaremos em exercitar nossas proclividades sanguinárias, como nunca hesitamos no passado.
O universo proposto por Cixin Liu é um espelho de proporções cósmicas, que nos oprime e nos condena inapelavelmente à destruição. Nos raros momentos em que conseguimos um equilíbrio com estes oponentes, este equilíbrio se baseia na certeza da destruição mútua, como vimos ocorrer por décadas durante a Guerra Fria.
O interessante é que a possibilidade do contato com estes seres é precedida de um aviso claro de que isto significaria nossa destruição. Contudo, o indivíduo que inicia este contato tem em sua experiência todo o peso da opressão de que nós somos capazes. Tendo visto seu pai ser assassinado em praça pública porque teimava em não renunciar à ciência “burguesa e decadente” representada pela Teoria da Relatividade; tendo sido oprimida pelo regime totalitário da Revolução Cultural chinesa por mais de 20 anos; tendo sido esquecida em uma estação de comunicação remota na China, acossada por seus superiores e subestimada por todos ao seu redor, a cientista Ye Wenjie não hesita em fazer contato com uma civilização alienígena, mesmo tendo sido avisada das consequências. É como se observasse o histórico de nossa espécie e, tendo-lhe sido atribuído o poder de juíza, escolhesse sentenciar-nos à destruição. “Chega”, quase a ouvimos dizer, “não há porque continuar se é este o máximo que podemos oferecer ao universo”. Assim começa “O Problema dos Três Corpos”, o primeiro dos livros da trilogia. Nesse instante, passamos de opressores de nossos domínios a oprimidos cósmicos. As três obras analisam as consequências deste primeiro contato, e seus desdobramentos são detalhadamente analisados pelo autor. Obviamente vou me abster de comentar.
É importante observar que nossa natureza nos municia de ferramentas que permitem até que equilibremos este jogo, mesmo quando somos tão obviamente inferiores a nossos oponentes. Nesses momentos, somos lembrados dos versos enérgicos de Dylan Thomas (aqui apresentados na tradução de Rodrigo Suzuki Cintra):
Não vás tão gentilmente nessa boa-noite escura,
Os velhos deveriam arder e bradar ao fim do dia;
Raiva, raiva contra a morte da luz que fulgura.
Somos capazes de nos superar, e esta capacidade se apresenta sobretudo nas situações em que somos ameaçados.
Nossa natureza, no entanto, também se mostra em outros momentos. Na indolência que invariavelmente retorna quando a ameaça é afastada, ainda que precariamente; na arrogância de nos acharmos mais fortes ou inteligentes do que realmente somos; na inocência de acreditarmos que os demais habitantes do Universo são tão fracos quanto nós mesmos.
Como sobreviver quando carregamos tantas oportunidades de ruína dentro de nós mesmos?
Se a trilogia de Cixin Liu pode ser criticada em um ponto é o fato de assumir que civilizações que atingem em intelecto e tecnologia o suficiente para que todos os avanços da Humanidade sejam comparáveis ao insight primordial de 2001, Uma Odisseia no Espaço, ainda vão reter o primitivismo psicológico e sociológico que nos acorrentam. O autor não considera que tenhamos evoluído em absolutamente nada sob os pontos de vista psicossocial ou ético desde que saímos das cavernas. A trilogia tem por base essa premissa taxativa: nenhuma civilização com potencial para sobreviver a longo prazo pode se dar o luxo de evoluir eticamente. O próprio fato de termos evoluído — ainda que apenas milimetricamente — nesta questão ao longo da História é suficiente para perceber que esta evolução não só é possível, mas desejável.
Concordo que essa crítica é tênue e pode bem ser desmerecida: há muitos que concordam com o escritor chinês, e talvez até sejam maioria. Contudo, pessoalmente gosto de enxergar progresso nesses quesitos em nossa espécie, ainda que sejam bem mais sutis e insuficientes do que no caso de nosso avanço tecnológico. Admitidamente há um quê de religiosidade e de filosofias ultrapassadas neste meu ponto de vista, e provavelmente estes elementos me impeçam de enxergar a realidade que o autor tenta nos passar. Prefiro assim.
Existe alguma previsão para lançamento do próximo livro em português? Acabo de terminar "O Problema dos Três Corpos", só para descobrir que não vou continuar a leitura.
Oi, Trindade. Procurei muito e não achei nada. A edição brasileira é da Companhia das Letras, e no site não tem informação nenhuma sobre quando saem os dois livros finais. Eu li em inglês, mas sei que essa não é uma opção para todos. Só posso recomendar que você espere, porque realmente vale muito a pena. Obrigado pela presença aqui no Confrariando!