Puxa, Paulinha, você se foi.
Quando comecei a ler o aviso do Haroldo, que ele iniciou com “Infelizmente não tenho boas notícias”, pensei que ele estava, por alguma razão, cancelando nosso passeio à fazenda, pré-programado para o Carnaval.
Caí de costas quando li que era para anunciar sua partida.
Você tinha ido naquela manhã de 28 de dezembro, no apagar das luzes de um ano que não havia sido fácil, mas que até ali não havia sido catastrófico. Puxa, poucas coisas poderiam tornar esse ano mais catastrófico, Paulinha.
É como se tivéssemos naufragado lá em janeiro e tivéssemos navegado em um bote a remo por esse marzão de meu deus ao longo do ano, fugindo de um temporal aqui, passando fome ali, chegando a uma ilha de canibais acolá, e seguindo em frente como dava. Aí, no fim do ano, vislumbramos uma ilha desconhecida — dessas de filme do King Kong, manja? — uma promessa de terra firme, mas com perigos escondidos, sabe-se lá quais. A ilha se chama 2019, e estamos à beira dela, tentando remar até a praia.
Só que aí, ainda enquanto enfrentamos as últimas ondas antes de chegarmos à terra firme, um tubarão pula no barco e nos arranca um pedaço, voltando ao escuro do mar do mesmo jeito que chegou: sem explicação, sem mais nem porquê.
É assim que estamos agora, Paulinha, olhando para essa praia promissora e assustadora, com a perda de você, do teu pedaço em nós.
Sim, Paulinha, porque você é parte da gente, e mesmo que tenha sido arrancada de algum lugar muito importante do nosso íntimo, você paradoxalmente continua lá, e de lá nunca vais sair. Pacientes que têm membros amputados comumente relatam que sentem dor no braço ou na perna que já não mais possuem. Pois é assim que eu me sinto: doendo onde você estava, e de onde você nunca vai sair.
Você entrou na minha vida assim como outros 69 membros do que viria a se tornar parte da minha família: no dia 02 de março de 1987, no primeiro dia de aula da UNICAMP, ambos “bixos” do curso de Ciência da Computação.
Eu não diria que foi amor à primeira vista, porque apesar de muito bonitinha, você era fresca prá dedéu; cheia de não me toques, com medo de queijo (benzadeus), nojentinha a não poder mais. Mas mesmo assim, você — como pelo menos 50 dos 70 da turma, que não éramos nem da tribo de Campinas, nem da tribo de São Paulo — se juntou a nós e partiu para as choperias e noites de estudo das matérias que mais pareciam sânscrito. Você era uma de nós, e ria com nossas piadas, estudava com a gente, se sentava na sala dos micros para fazer os projetos em Logo e em Pascal.
A partir daí, Paulinha, éramos uma imensa família de irmãos, com pais e mães distantes, tendo um ao outro como arrimo, empurrando e sendo puxados uns pelos outros.
Nas provas, Paulinha, era quando você era mais engraçada. Terceiro lugar na turma na classificação do vestibular — a mulher mais bem classificada (porque a Vânia, naquela época, ainda era Paulo de Tarso) —, e era batata ouvir de você em qualquer dia de prova “Ah, tô desesperada!”. Parecia que você ia enfrentar uma guilhotina, e não uma prova. Eu olhava para o Pedro (que ganhou o apelido de Catatau, mas você rebatizou de “Cat’s “) e ambos ríamos, porque se você estava desesperada, como é que nós, meros mortais, deveríamos nos sentir?
Ainda lembro do resultado da primeira prova de Cálculo I. Eu, sempre acostumado com notões em Matemática, fiquei besta ao ver minha nota: 3,65 (de 10). Só fiquei um tiquinho menos inconformado quando vi que a média da turma tinha sido 3,45 (o trauma foi tão grande que, sim, lembro com clareza dos dois valores como se os estivesse vendo hoje, quase 32 anos depois). E você? Tinha uma das maiores notas da prova: 7,5, se não me engano.
E essa era você: fresca, meiga e brutalmente eficiente. Foi assim durante o curso todo. Saia para nossas bebedeiras; viajava com a gente para a praia, para a fazenda, para os churrascos; dançava até de madrugada na Apô; participava dos grupos de estudo e de trabalhos. Me carregou nas costas — você e a Viviane — no laboratório de Física I, e me garantiu nota em várias provas ao longo do curso. Sim, Paulinha, devo parte do meu diploma a você.
E não pude te devolver o apoio quando o Diner (Dainer? Eu nunca soube a grafia desse nome), seu namorado, faleceu de repente, vítima de uma leucemia galopante no EUA. A gente bem que tentou: o Osório, morando a apenas alguns andares de distância ia no seu apartamento com a gente, e você era só tristeza. Aí, um dia, a gente chegou lá e tinha um japonês sentado em um canto. “Quem é esse?” “O nome dele é Tomio”, você respondeu. “O que ele está fazendo aí?” “Sei lá. Ele só está aí”.
A gente não entendeu muito bem — e, a bem da verdade, bateu um ciuminho —, mas a gente não ia discordar de você naquele estado. E depois de um tempo, entendemos que a insistência do Tomio foi fundamental para que você reencontrasse sua alegria de viver. Somos muito gratos a ele, com certeza, porque também a bem da verdade, foi ele quem nos trouxe você de volta.
E com ele você construiu uma vida. Depois de formada e trabalhando, casada e com duas filhas, largou mão da Computação — que naquela época você já havia confessado que detestava. Você estava se dedicando a dois pequenos milagres, chamados Mariana e Larissa. Duas fresquinhas tão ternas e tão inteligentes, que mesmo que a gente não soubesse que eram suas filhas, não teríamos dúvida nenhuma.
Você é tão impressionante, Paulinha, que à beira dos 50 prestou e entrou em Medicina, que pretendia cursar e exercer. Imagino o orgulho do seu pai, e o tanto que ele teve que segurar o “puxa, não podia ter começado com essa decisão?” quando soube que você ia cursar Medicina. E você se dedicou ao curso com a mesma seriedade, o mesmo entusiasmo e a mesma frescurite aguda de 30 anos antes.
E de repente, me vem com essa. Vai embora, assim, pelo menos 40 anos antes da hora, deixando a gente órfão de uma irmã tão linda, tão importante, tão fundamental na nossa vida. Sim, Paulinha, porque você mudou nossa vida. Sua presença ao longo desses mais de 30 anos que estivemos juntos — 5 deles muuuuuuito próximos, os demais ao longo dos vários encontros e viagens da turma — nos transformou. Hoje eu sou mais por que convivi com você, e aposto que esse é o caso de muitos de nossos irmãos de mães diferentes que formam a Comp87 (não se repete!).
Eu me lembro, novamente, do fim do livro O Velho e o Mar, do Ernest Hemingway. O velho Santiago, pescador pobre, sai para pescar em seu barquinho, e fisga um peixe enorme. Ele luta com o peixe por horas e horas, até conseguir prendê-lo ao barco, só para perdê-lo para os tubarões no logo caminho de volta. O livro termina com o velho Santiago dormindo em sua miserável tapera, e sonhando com leões, como na manhã anterior quando acordara para sua pescaria. Minha professora de Português da época (que se foi aos 36, deixando milhares de órfãos) explicou que a repetição do sonho era a forma do Hemingway dizer que “a vida continua”. Santiago seguia em frente, mesmo diante da colossal derrota.
Tá difícil sonhar com leões de novo, Paulinha.
E aí eu olho para os nossos irmãos, os que foram e os que não foram à sua homenagem derradeira. E quando lembro de cada um deles, me vem a certeza de que o sonho dos leões precisa vir logo. Você se foi, mas eles todos — todos órfãos de você — estão aqui. E eu não os quero ver com os semblantes tristes de ontem, mas os quero ver.
Quero saber dos detalhes de suas vidas, quero beber com eles, quero reclamar d[O/A] [FULANO/A] ausente do churrasco, quero pedir conselho, quero ouvir as dores, quero cantar ao som do violão do Eldes, quero passar frio no terreirão da fazenda, quero perguntar “e o [rima com bom-de-bola], hein?” e ver vários deles balançando a cabeça devagar. Quero continuar ao lado deles, Paulinha, porque é só assim que você vai continuar do nosso lado: porque você é parte disso e sua partida te distancia, mas não te apaga. Nada vai te apagar, Paulinha.
Eu quero voltar a sonhar com leões porque você é uma das leoas, Paulinha, e eu tenho poucos como você em minha vida. Os leões são raros, e você gritou alto demais que eles estão em extinção. Eu quero conviver mais com a Comp87 — nossa manada de leões — porque não é uma turma: é minha tribo. A gente briga, se desdenha, se julga, se escarnece, mas se ama. Mesmo que a gente negue: amor é isso: família, mesmo que de mães diferentes. Família é se sentir sem um pedaço quando um se vai. Paulinha, e você é nossa família, mesmo que só tenhamos nossas memórias de você, e sua ausência daqui para frente.
Noves fora, o que eu quero te dizer é que sou grato. É claro que sua partida me deixa triste, desnorteado, sem energia sequer para me revoltar contra a aleatoriedade do universo. Mas nessa tristeza toda tem espaço — tem que ter! — para um pouco de felicidade. A felicidade de ter te conhecido, Paulinha. A felicidade de ter tido a oportunidade de ter minha vida transformada por você. Eu sou melhor hoje (tá bom: menos pior, segundo alguns) porque tive o incomensurável privilégio de conviver com você, Paulinha.
E, olhando para frente, para outras manadas/tribos que estão por vir, tenho a felicidade de saber que você continua em suas filhas, que são como você, e vão poder transformar a vida de outros sem-noção como eu, lá na frente. Sorte deles.
Por tudo isso, muito obrigado, Paulinha.
Tenho muito orgulho de ser, ainda que ovelha negra, desta família. Paula está e continuará presente em todos nós! Obrigado Ruy!
Estamos juntos, meu caro. Um beijão.
Quero ser incluída
Emocionante!❤️ Saudade, Paula! Te amo!!! Obrigada, Ruy!
Meu querido Confra, não sou dessa manada de leões, mas fiquei profundamente tocada com tamanha homenagem à Paulinha. Não a conheci, mas, diante de seu texto, pude vislumbrar a linda alma de Paulinha que, certamente, merece todas as reverências. A todos dessa manada, continuem em frente, carregando consigo a luz de Paulinha!