Não é segredo, para quem já leu outros textos meus, que não tolero o ditado “A natureza é sábia”. Ao ouvi-lo, costumo rebater de imediato: “Ela não é sábia; ela é interesseira, pois só pensa em si mesma”. Alguns ficam chocados com minha empáfia. Então, tento desbancar a tal sabedoria demonstrando como o fluxo da vida sempre acaba convergindo para a preservação das espécies, desprezando completamente nossas prioridades pessoais. Assim como uma genuína “racionoide” (criatura equivocada que se acha imbatível em função do poder da razão), vou esperneando contra o curso natural a que somos submetidos. Essa resistência é inútil: a natureza nos arrebata, queiramos ou não.
Minha mais recente reflexão tem se concentrado na vertiginosa decadência da minha acuidade visual. Em meu histórico de vida, sempre enxerguei perfeitamente, a qualquer distância, fosse de dia ou de noite. Até que, depois dos 40 anos, como é de se esperar para a maioria das pessoas, ela chega: a presbiopia! Nome bonito para o envelhecimento do cristalino. Pois é, coisas da natureza, certo? (Você já pode imaginar-me espumando de raiva por essa constatação tão passiva).
Está bem! Se a natureza é assim tão sábia, por que leva nosso corpo à decadência exatamente no momento em que nossas mentes estão mais sofisticadas? É como sucatear o avião em pleno auge do piloto!
Sem parar de esbravejar, comecei a analisar a questão. A presbiopia dos “olhos maduros” obriga o indivíduo a afastar tudo aquilo que ele quer ver melhor. Quando eu preciso ler, tenho que deixar o texto longe de meus olhos. Ou, usar meus óculos, claro! Só que não está fácil mantê-lo perto de mim, pois nunca tinha precisado deles antes.
Então, continuo como minha “ranzinzice”: qual é a sábia intenção da natureza? Que serventia há em ser forçada a afastar-me daquilo que eu quero ver melhor?
Por outro lado, sei que ao tentarmos enxergar algo muito de perto, acabamos vendo tudo distorcido. Você já deve ter feito a experiência de encostar a página de um livro em seu nariz (ou, se você for da geração millennial, tente encostar a testa em seu iPad e veja o que acontece).
Estar perto demais pode nos impedir de ver melhor. Precisamos de uma distância ideal. O que acontece, na verdade, é que o passar dos anos nos exige um distanciamento cada vez maior de nosso foco de análise. Talvez seja por isso que o arquétipo do velho sábio seja aquele que, ao olhar um problema de longe, consegue prever as mais efetivas soluções. E, faz isso impassível, como se ele fosse inalcançável por qualquer ameaça: o benefício da distância!
Pode ser que afastar-se do foco garanta uma posição neutra para analisá-lo. Quando estamos perto demais, o envolvimento é maior e a imparcialidade das decisões torna-se mais difícil.
Voltando ao arquétipo do “Mestre Ancião”: quando tem de instruir seu discípulo, ele não pode chegar tão junto! Imagine que o aprendiz seja um verdadeiro texto com letras vibrantes demais (a vibração da juventude!). Se chegar perto demais, o mestre enxergaria as letras embaralhando-se. Então, ele afasta-se o suficiente para poder ler melhor o seu pupilo.
Você já passou por algo parecido? Já precisou se afastar de alguma situação para compreendê-la melhor? Não é fácil, né? Só que a sabedoria da maturidade acaba nos dando um maior domínio sobre esse mecanismo.
Será que a natureza lança mão da presbiopia para nos treinar nessa empreitada? Será que essa é a maneira que ela tem para nos passar um pouco de sua sabedoria? Será que a perda da minha acuidade visual pode me prover acuidade perceptiva?
É, acho que vou parar de resistir às forças da natureza e simplesmente lançar mão de meus óculos.
Talvez o passar do tempo por nossas vidas nos traga mais ganhos do que perdas. Pense nisso!
Carla, você transforma limões em limonada com maestria! Achei o texto excelente!
Caríssimo, é sempre um privilégio ter a sua leitura em meus textos! Fico lisonjeada!!