O ano se encerrou com chuvas de verão e ventania praticamente todos os dias em quase todos os cantos do país. Seria um verão típico em meio a dias nada comuns, mas mesmo isso não está muito claro. Assim, entramos no Natal sob água, o que prosseguiu no Ano Novo, quase todos os dias. Para uns, essa água é refrigério, um lenitivo: corre por veios, abastece os lençóis, lava as ruas, carrega consigo na corrente o que não tem mais valia, ajuda o calor a passar, tempera no tempo certo as culturas da estação. Para outros, ela é veneno, golpe mortal: arrasa, arrastando tudo o que estiver pela frente – pau, pedra, carro, casa, árvores, flores – abafa sonhos e aspirações. Ou ficamos extáticos – como testemunhas, mudas ou em histeria – ou como parte da composição da cena – figurantes ou objetos – levados pela correnteza.
As previsões do tempo foram todas desencontradas. Temerosos de uma nova versão da seca que assolou (desde quando mesmo?), os ditos especialistas, meteorologistas e analistas de toda a ordem foram por demais prudentes, vaticinando não tanta água. Já outras análises falavam de um tempo de aguaceiros, bom para a agricultura. Poucos foram os que até agora rotularam esse momento como a chegada do Menino. Sinto, o dito El Niño. Isso ainda não está muito certo. Aliás, estando em meio ao correr dos dias e da pena, como diria Alencar, fica difícil dizer o que é realmente contemporâneo. Há também os leigos, isto é, nós mesmos, que damos os nossos pitacos e compartilhamos: são anúncios de tragédias e comédias a cada clique, a cada entrada de notícia, a cada tuíte ou zapp. Ânsia de confirmar ignorâncias.
Em conversas de fim de ano, apertados entre praias, ranchos, varandas, lajes e escoras, na esperança de que o tempo nos una em uma experiência comum, todos comentam: “ – Que calor!”. Isso e a chuva e o aperto no abrigo, seja qual for, nessas festas. Uma chuva pede guarida, mesmo que provisória. Esse tempo chuvoso ainda continua e, enquanto durar, tentamos ficar abrigados. Ela exige que aguardemos, em observância.
Em meio a esses eventos de fim de ano, estando juntos nesses muitos intervalos entre refeições e outras coisas comezinhas, sobra-nos tempo para acurarmos o ouvido e o senso para capturamos frases a esmo, em nossa estupefação diante de fatos, obviedades, xingos, rapapés e salamaleques:
“- Eu vi. Eu sei. Tá lá. Já foi.”
“- Algumas coisas são incríveis, não é mesmo?”
“- Me desculpe, não imaginava, sinto muito…”
“- Ah, é? E desde quando está rolando?”
“- Vai ser um menino!!!”
“- Calma! Dói agora, mas vai passar…”
“- Passa ela. Passa logo!
– Seu fiadamãe! Agora é que não passo.”
Ou, numa ordem inversa, são os exemplos de sofismas que ouvimos, à tona normalmente em momentos de vapores etílicos e semelhantes:
“- A gente veio pra ficar, certo? Então, agora aguenta! ”
“- Cada cor tem seu uso certo, conforme…”
“- Quero isso e aquilo, mesmo não podendo ter as duas coisas ao mesmo tempo.”
“- Esse aí não falava nada, agora fala muito. Tem coisa errada…”
“- Dessa balburdia não sei. Só dou conta da minha.”
Terminou-se um ano, começa outro. Realizamos revisões e planos para não errar (tanto e tão miseravelmente) e acertar (mais e melhor). Se sabemos reconhecer o que é acerto ou erro, eis outra questão. O que era o certo a se fazer ontem já é o contrário hoje. A certeza da chuva que se avizinhava foi-se embora com o vento. O sol veio e nós, com o anacrônico guarda-chuva na mão. O frio passou, e a gente rendido de bermuda, sunga e chinelo. Sinto muito aos amigos letrados. Bem sei que Machado já tratou disso com muito mais propriedade.
A frase, no entanto, que marcou foi um aforismo, tomado da escritora portuguesa Andreia Pelagagi em um livro para pequenos, sobre guarda-chuvas e seus humores:
“Os acontecimentos são poucos, mas são fundamentais”.
Essa afirmação nos ajuda a definir bem uma boa aspiração para o ano em vigência: olhar acurado para reconhecer a cena, tirocínio para agir na hora certa. Uma habilidade quase perdida que os antigos mantinham ao olhar com cuidado ao reconhecer as marcas do tempo. Os ventos, como o noto, o bóreas, o euro, o zéfiro. As nuvens: cúmulos, nimbos, estratos, cirros. O firmamento e suas paletas de cores: o Céu azul das manhãs, o Sol vermelho das chuvas de fim de tarde, a Lua em prata das noites quentes, a Aurora de róseos dedos, como na Odisseia de Homero, o impávido Arco-Íris. O que faremos com todas essas cores? Aceitemos ou não, elas estarão aí, como rotunda. Resta saber que estranho papel exerceremos em frente a esse cenário, que mistério é esse de saber aceitar esse tempo, presente sobre todos nós.
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