Recentemente venho observando mais de perto uma tendência já não tão nova no Facebook: os testes que nos comparam a bichos, locais, acontecimentos, celebridades, personalidades históricas, e por aí vai. São divertidos, rápidos e, por um pequeno quinhão de sua privacidade (falaremos mais sobre isso logo adiante), proporcionam alguns instantes de diversão e satisfação pessoal.
O mecanismo desses testes varia, mas há duas formas básicas: um questionário respondido na hora pelo usuário; ou — conveniência das conveniências — o teste nada pergunta, e faz uma varredura na linha do tempo do usuário. Nesse caso, por meio de um algoritmo que combina termos e expressões usados em posts e comentários, o teste gera os resultados automaticamente.
Os assuntos são os mais variados possíveis: qual canção de rock melhor te define? Qual raça de cachorro é mais compatível com seu jeito de ser? Qual a frase da sua vida? Qual personagem histórica seria seu melhor parceiro para um papo de boteco? Qual técnica de deduções atuariais é mais compatível com seu perfil tributário? Talvez essa última seja um exagero, mas você entende do que estou falando. Quando vejo no Facebook o resultado de algum desses testes publicados por algum amigo, minha primeira reação é de fascínio, claro, pois sempre (ou quase sempre) encontro a congruência entre a pessoa e o resultado. “Puxa, e não é que o Leovegildo faria mesmo uma dupla de truco imbatível com a Indira Gandhi?
Os algoritmos por trás destes testes são interessantes, e não todo desprovidos de lógica. Em sua forma mais simples, eles coletam substantivos, verbos, adjetivos e outros elementos gramaticais da miríade de posts do usuário (bem como dos comentários perpetrados por ele) e esses termos e expressões são comparados com tabelas que ligam vários destes termos às celebridades/animais/bandas de rock/receitas de veneno/etc. que são o assunto do teste. Mais recentemente, até os emojis usados pelo usuário, suas reações e seu estado de espírito (Fulano, sentindo-se grato/triste/com raiva/etc.) são levados em conta. O fato é que, se a tabela interna que liga a personalidade (ou o animal, ou o evento, etc.) em questão aos termos gramaticais for feita com um mínimo de coerência, o resultado vai ser recebido com um “faz sentido” por parte do usuário. Mais: os elementos escolhidos para representar o usuário são sempre elementos significativos, positivos, relevantes.
Por outro lado, em nenhum dos resultados publicados por meus amigos do Facebook vi alguém sendo comparado à lombriga, ao ministro nazista da propaganda Joseph Goebbels ou à música “Pare de Tomar a Pílula”, de Odair José. Não, os resultados serão sempre grandiosos, deixando-nos com uma sensação gostosa de importância. Atores? Seremos alguém do calibre de Brad Pitt ou Angelina Jolie. Cientistas? Seremos Marie Curie, ou Einstein. Personagens históricos? Seremos O rei Henrique VIII ou Joana D’Arc. Músicas? Seremos “Hey Jude”, dos Beatles ou “O Que Será?”, do Chico Buarque. Animais míticos? Pégaso, ou a Fênix. E por aí vai. Sempre alguém ou alguma coisa muito relevante.
Este tipo de teste é o novo horóscopo, o novo zodíaco. Um misto de teste de personalidade com a pseudológica da astrologia. Foi desenhado para ser uma pílula efêmera de bem-estar, uma micromasturbação mental; ou seja, foi gerado para atrair o usuário que vai sentir-se orgulhoso com o resultado e, assim, acabar viralizando o interesse pelo teste. Qualquer teste do tipo é um “imã de cliques”, atraindo usuários de todos os lados e gerando discussões em torno dos resultados: para o usuário, tem a função de divertir e satisfazer momentaneamente. O equivalente das “calorias vazias” da gastronomia. Já para a empresa, tem o objetivo de se espalhar o mais ampla e rapidamente possível.
Isso é o que vemos somente na superfície, porque se a gente levanta o capô desse tipo de teste, o que vê embaixo é uma história bem diferente.
Lembra do quinhão de privacidade que você sacrifica para o teste, mencionado en passant lá no começo deste texto? Então, não é lá tão pequeno assim. Para que o algoritmo consiga extrair as palavras-chave necessárias para fazer a comparação com as imagens e dados que o aplicativo que tem em sua própria base, é necessário ou perguntar para você, ou extrair as informações sem te incomodar. No primeiro caso, temos um questionário a ser respondido, o que já gera menos interesse — quem tem tempo, ainda mais por um motivo tão trivial? — e, mesmo entre os interessados iniciais, há muitas desistências — de novo: quem tem tempo?. A segunda opção é infinitamente mais cômoda, claro: você autoriza o aplicativo por trás do teste a ter acesso a todo o conteúdo produzido por você no Facebook, seus posts, seus comentários, seu perfil, suas fotos, tudo. Toda a sua história no Facebook será analisada pelo algoritmo. Sabe aquela foto menos discreta em que você foi marcado no churrasco com os amigos de faculdade? O aplicativo está vendo. Sabe aquela vez que você foi menos ponderada em uma discussão sobre política? O aplicativo está vendo. Sabe aquela impressão que você tenta passar ao vivo, digamos, em uma entrevista de emprego, mas que no Facebook é bem diferente? O aplicativo está vendo. E mais: sabe a sua vontade de colocar no Facebook as fotos das cervejas e dos vinhos legais que você toma? O aplicativo está vendo. Sabe todas as fotos da sua bike nova, junto com todas as fotos das trilhas que você faz com ela? O aplicativo está vendo.
Nos primeiros exemplos, é evidente que o aplicativo do teste tem material suficiente para montar um perfil seu, com seus posicionamentos políticos, esportivos, com suas indiscrições e suas preferências. Muito pelo contrário: nada impede que os donos deste aplicativo compartilhem estas informações com quem esteja disposto a pagar. E há muitas empresas que pagam por essas informações. Qualquer profissional de RH vai te dizer com clareza: cuidado com o que você publica no Facebook, porque as empresas cada vez mais utilizam esta e outras redes sociais para avaliar candidatos antes de chamá-los para uma entrevista.
Os últimos exemplos demonstram que o alvo está em seus hábitos de consumo. Veja você, é como no caso do Google, que usa suas buscas, suas rotas no Google Maps, o conteúdo das mensagens que você envia e recebe no Gmail e outros elementos que o Google sabe a seu respeito, com o objetivo de refinar as publicidades que serão direcionadas a você. Da mesma forma, ao varrer sua linha do tempo seu histórico de posts e comentários, além de seus dados de perfil, esses testes coletam um enorme conjunto de dados a seu respeito, inclusive seus hábitos de consumo. Certamente que estas informações são úteis para outras empresas que queiram vender algo para você. Perceba que os primeiros clientes destas informações de consumo coletadas pelos inocentes testes do Facebook você consegue enxergar agora mesmo, se quiser: são as empresas por trás dos posts patrocinados que são cada vez mais comuns em sua linha do tempo. As empresas compram a inteligência produzida a seu respeito (e a respeito de milhões de outros usuários do Facebook) e a utilizam para “mirar” suas publicações e ofertas em usuários potencialmente mais interessados. Se isso te incomoda, relaxe: o próprio Facebook é o primeiro a vender os seus dados para estas empresas (como você acha que o Mark Zuckerberg ficou bilionário?). Isto é, relaxe ou saia do Facebook, porque do contrário suas informações serão comercializadas. Neste quesito a diferença entre o Facebook e as empresas por trás dos testes que fazem varredura em seu perfil é pequena, mas existe. O Facebook é bem explícito sobre o assunto, e como a empresa tem uma enorme visibilidade e preza você como usuário (leia-se: matéria-prima para seus negócios), eles têm critério na hora de explorar sua privacidade. Já as empresas de teste não têm nenhuma destas preocupações. Não dizem o que vão fazer com seus dados, nem para que terceiros irão vendê-los.
Ainda há outra questão interessante sobre os resultados desses algoritmos no Facebook: as expectativas que os resultados criam a seu respeito. Recentemente fiz um teste destes que prometia me dizer que duas personagens históricas combinadas geram a minha pessoa. Em outras palavras, sou a somatória de que ilustres personalidades da História da Humanidade? Fiquei sabendo do teste pelo resultado postado por uma amiga: ela é a combinação da rainha Elizabeth I de Tudor (aquela do fim do século XVI) e de Marie Curie, cientista francesa e vencedora do Prêmio Nobel de Física em 1903 e de Química em 1911. Uma estadista de primeira linha e um dos maiores nomes da ciência de todos os tempos. Não é para menos: a Isabel é absolutamente fabulosa, mesmo. Obviamente que não hesitei em clicar no teste, curioso em saber quais seriam meus “componentes intelectuais”.
Esses testes, de caso pensado, não nos comparam a qualquer Zé Ruela. Fiquei na expectativa enquanto o aplicativo chafurdava em minha linha do tempo e dela destilava as características que definem os “bam-bam-bans” da História. À medida que os segundos se esticavam, não pude deixar de perceber uma expectativa em mim não diferente da espera pelo resultado do vestibular, misturada com a ansiedade de uma disputa de pênaltis e um leve toque de resultado de entrevista de emprego. Tudo, obviamente, diluído pelo assunto em questão, uma trivialidade, um passatempo — o que dá uma pontinha de angústia, ainda que minúscula, ah, dá — mas só por alguns segundos, porque uma coisa é possível de se dizer acerca desses algoritmos: são rápidos.
O resultado me causou primeiramente muito espanto, depois uma enorme alegria: segundo o teste eu sou uma combinação de Isaac Newton com Leonardo Da Vinci. Quem não ficaria contente com um pedigree desses? Puxa, é de dar orgulho em qualquer caboclo, não? Então vamos cumprir o desejo de viralização do teste, publicando o resultado na linha do tempo do Facebook, pavoneando adoidado, todo prosa. Sem brincadeira: quase me deu vontade de colocar um par de óculos escuros.
Aí, na hora de escrever o post, bateu a dolorosa realidade. Como assim, Isaac Newton? Como assim, Leonardo Da Vinci? Como assim os dois ao mesmo tempo? Cê tá louco? A angústia bateu em cheio. Newton inventou praticamente sozinho o estudo da Óptica, revolucionou a Mecânica, e de quebra inventou o Cálculo Diferencial Integral. Ah, e tudo isso antes de completar 25 anos de idade. Leonardo Da Vinci foi inventor, engenheiro, astrônomo, escritor, cientista, músico, matemático, geólogo, cartógrafo, historiador, estudioso da anatomia humana; um dos grandes mestres universais da escultura e da pintura, é considerado o pai da Arquitetura, inventou o paraquedas e o helicóptero, ambos 500 anos antes da invenção do avião. Entendeu o calibre desses caras? Então, agora faça a soma: Newton + Da Vinci. Ah, tá bom que o resultado sou eu. Claro! O branco dos olhos é exatamente o mesmo, aposto.
Como é que eu posso encarar minha imagem no espelho com essa expectativa toda para o meu lado? Beirando meio século de existência, e até hoje o que fiz de útil em prol da Humanidade não é suficiente para se comparar a uma vírgula do que qualquer desses dois cidadãos fez. Entende minha angústia? Como é que eu posso sequer começar a pensar em pagar uma dívida dessas? Seria necessário um time inteiro de físicos renomados, e outro de matemáticos para chegar aos pés das contribuições de Newton. Analogamente precisaríamos de vários times de profissionais e estudiosos para chegar (não muito) perto do que fez Da Vinci.
Quando passamos do microrgasmo de orgulho pelo resultado de um teste desses, o que fica é a realidade de que, bem, somos humanos e que poderíamos chegar mais longe do que chegamos até o momento. É uma reflexão difícil, mas útil. Não, não sou a somatória de Newton com Da Vinci. Nem de longe. Obviamente, está tudo certo: em um planeta que já viu passar mais de 100 bilhões de exemplares de nossa espécie desde a aurora da Humanidade, talvez encontremos 100 criaturas da estirpe de Newton ou de Da Vinci. Baseando-se nisso, a conta fica real: não é nada difícil não ser um em um bilhão. Este sou eu: um dos outros 999.999.999. E só.
Mas talvez, quando confrontados com a possibilidade de estarmos de alguma forma próximos desses colossos, possamos adotar outra métrica: as imperfeições. Ah, agora estamos chegando a algum lugar: Newton era vaidoso que só ele, e o próprio orgulho de, em algum universo paralelo, eu ser a soma de Newton e Da Vinci é evidência de uma monumental vaidade. Pronto, algo que Newton e eu temos em comum. Por outro lado, Da Vinci inventou muita coisa no papel, e pouco valor dava à praticidade de várias de suas ideias. Pronto, esta falta de senso prático eu compartilho com o gênio italiano. Só assim. Só em meus defeitos, nos traços menores de minha natureza para que eu me permita comparar com estes heróis. Do contrário, a dívida a mim imputada é grande demais.
Bem, podia ser pior. Meu amigo Reinaldo, tadinho, descobriu que é a combinação de Albert Einstein com Ludwig Van Beethoven…
Pois é, Ruy... Seria pela surdez do Beethoven? De qualquer forma, adoro o músico nascido na região que seria unificada como Alemanha, mas à sua frente, pra mim, está Mozart, que nasceu poucos anos antes, na Áustria. Aliás, do que conheço, recomendo duas de suas melhores peças: Sinfonia 1 de Salzburg, da qual pode se ouvir um trecho aqui: https://www.youtube.com/watch?v=eA8vQBReELM Ou a flauta mágica, cujo trecho pode ser ouvido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=r37l5eNJOR0 Se quiser uma versão mais recente, ousada e tão brilhante quanto, recomendo Edson Cordeiro e Cássia Eller, nesta junção magnífica com Rolling Stones, que pode ser ouvido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=AR649Y55BmI Parabéns pelo artigo.
Obrigado, Reinaldo! Mozart foi um prodígio, um gênio indisputável da música, com uma produção mais compatível com nações do que com compositores, de tão volumosa de de qualidade tão impressionante. Mas aí eu paro para escutar a Sonata ao Luar, a Eroica, ou a 9a, e não tem jeito. Beethoven, para mim, é o pináculo da música. Concordo, porém, que A Flauta Mágica é paradisíaca de linda.
Ótimo artigo, caro amigo; saudades daquele abraço forte e sincero.
Obrigado pelo incentivo, Helder! Um abração!