É do escritor de ficção científica Arthur C. Clarke (autor de 2001, Uma Odisseia no Espaço), a frase:
“Qualquer professor que possa ser substituído por uma máquina, deveria ser substituído.”
A princípio essa frase pode parecer dura, fria, uma substituição sem sentido e sem coração do homem pela máquina, e mesmo o prenúncio de uma daquelas distopias em que a Humanidade é dominada e destruída pela tecnologia.
Porém, não só há sentidos mais profundos e importantes à frase de Clarke, como ela vem se mostrando profética, tendo anunciado à época um futuro que hoje já começamos a viver. Essa materialização que já acontece a passos rápidos traz dificuldades, obviamente, mas traz também vantagens, descortinando um cenário em que o acesso ao conhecimento é mais amplo e efetivamente empodera o indivíduo.
Só para constar, quando afirmo os benefícios do raciocínio de Clarke não busco minar o processo de ensino, nem vejo por aí a substituição do MEC pela Skynet. Longe disso, aliás: até que se prove o contrário, sou um ser humano e atuo como professor desde que pela primeira vez estive à frente de uma sala de aula, lá no longínquo ano de 1985. Atualmente, participo dessa mudança de paradigma em minha atuação profissional e minha preocupação diária é melhorar a qualidade do ensino que oferecemos aos nossos alunos.
Para contextualizar o sentido da “profetização” de Clarke, devemos primeiramente observar a evolução do ensino ao longo da História no Ocidente. Da Paideia grega, onde alunos e seus professores filósofos trocavam ideias abertamente, passando pelos auditórios de Alexandria, pelas oficinas dos artesãos e pelos tutores da nobreza na Idade Média, chegamos à Revolução Industrial, quando o modelo atual teve seu berço. A mudança na ordem de grandeza nos processos produtivos demandou a formação de técnicos e operadores que pudessem trabalhar mais eficientemente com as novas máquinas e com os processos nascentes. O ensino massificado que conhecemos hoje é produto daquela época e, se os recursos melhoraram, a mecânica da aula expositiva pouco mudou desde então.
Entra em cena o século XX e, com ele, as transformações no ensino. Na virada do século os jornais anunciavam pacotes de ensino à distância, por meio de material escrito. O gramofone e, mais tarde um pouco, o rádio, adicionariam o componente auditivo ao processo de ensino à distância, complementando o material escrito. Aqui, um dado que pouca gente conhece: na era de ouro do rádio — as décadas que precederam a televisão, e mesmo no início desse novo meio de comunicação — o Brasil foi pioneiro e mesmo líder na área de ensino à distância. Nossas proporções continentais dificultavam a chegada de recursos humanos e materiais às regiões mais distantes, mas nada impede a difusão de ondas de rádio. Essa liderança só foi destruída por ocasião da ditadura militar e do pavoroso AI-5, empurrado goela abaixo da nação em 1969. Com medo de que o ensino à distância fosse usado como meio de levar a propaganda comunista, os militares ceifaram sem a menor cerimônia os programas.
Já na década de 1970, a televisão reiniciaria a seara do ensino à distância, mas timidamente, apesar da excelente qualidade dos programas. Tivemos, na década de 1970, o Projeto Minerva, financiado pelo governo militar e transmitido via TV e rádio. A partir do fim da década de 1970 iniciou-se o Telecurso, uma iniciativa conjunta da Rede Globo e da TV Cultura de São Paulo.
Em todos esses casos de ensino à distância — material escrito, falado, ou audiovisual gravado — algumas características prevalecem: a migração da exposição do material, que deixa de ser feita por um professor presencial e passa a residir no material em si, ainda que, no caso do áudio ou do vídeo, uma versão gravada do professor esteja presente. A ausência do professor presencial, por um lado, limita e, por outro, expande as possibilidades de interação: limita, porque não havendo um indivíduo presente no papel de professor, o aluno não tem a quem perguntar caso tenha dúvidas; expande, porque, de posse do material, o aluno pode consultá-lo quantas vezes achar necessário, sem se cansar, sem ficar mal-humorado, ou sem deixar para a próxima aula porque tocou o sinal. Mais: a falta de interatividade em tempo real pode ser compensada com a “presença à distância” de um tutor, que conduz as dúvidas dos alunos até sua resolução. Nos tempos do ensino por correspondência, isso era feito por carta; nos tempos do rádio, ocorria por correspondência ou pelo telefone. Hoje em dia, já ocorre nas salas de bate-papo, por e-mail ou pela própria interface do site, na Internet. Ah, sim, chegamos aos dias de hoje, o momento em que nos damos conta que a revolução do ensino não só já começou faz tempo, mas que está se acelerando.
Qualquer um que tenha acesso à Internet hoje em dia já pode aprender praticamente tudo o que quiser. Os cursos on-line, os tutoriais, as aulas avulsas estão presentes aos milhões em sites de vídeo, tais como o YouTube, onde se pode aprender qualquer assunto acadêmico (Matemática, Física, Química, e por aí vai), além de uma variedade de técnicas e ferramentas, como por exemplo a construção de telescópios caseiros, origami, computação gráfica 3D e muito, muito mais. Ah, e antes que você reclame que muitos desses recursos estão em inglês, observe que há uma infinidade de cursos de inglês, além de outras línguas muito em voga, disponíveis também.
Um indivíduo personifica como ninguém essa revolução no ensino, o americano Salman Khan que, em 2006, abriu uma conta no YouTube onde colocava vídeos ensinando noções básicas de ciências para sua sobrinha. Três anos depois, ele deixou seu emprego bem remunerado como analista financeiro e passou a se dedicar exclusivamente a Khan Academy, uma instituição virtual cujo objetivo é disponibilizar conhecimento de graça, e que já tem versão até em português. Hoje já são dezenas de milhares de vídeos explicativos de todas as disciplinas dos ciclos fundamental e médio, bem como de várias disciplinas de nível superior. O esforço de Khan, iniciado há mais de uma década, inspira milhões de educadores nos dias de hoje a produzirem e divulgarem seus materiais de ensino.
Nesse novo paradigma, quem é o professor? Essa é uma questão interessante e que tem uma resposta sutil: o professor é o material didático? De certa forma é, pois dali vêm conteúdo sendo absorvido pelo aluno. O professor é o aluno? De certa forma, também é, pois ele impõe a si mesmo o ritmo de aprendizado, a rotina de estudos, a disciplina para cumprir as tarefas demandadas. Funciona bem para quem está disposto a assumir a responsabilidade por seu próprio aprendizado e não faz questão de depender de um indivíduo ao vivo, explicando conteúdos, criando tarefas, estabelecendo datas e aplicando provas. Em outras palavras, o autoestudo funciona para quem não precisa de uma babá no processo de ensino.
Um parêntese mais que necessário: não estou aqui afirmando que o professor cumpre o papel de babá no processo de ensino. O professor é um recurso valioso, insubstituível, quando cumpre seu papel de verdade. Infelizmente, no modelo atual de ensino, o professor, no mais das vezes, só se diferencia de seus pares cibernéticos (os vídeos e materiais de estudo presentes aos montes na Internet) porque cumpre esse papel de babá do aluno no que concerne seu aprendizado. E, quando é esse o caso, nada mais fácil do que substituí-lo, como demanda Clarke.
O indiano Sugata Mitra levou esse conceito a alguns extremos interessantes em seu país natal, a Índia. Um desses experimentos é chamado de “O computador do buraco na parede”, em uma tradução livre, no qual ele disponibilizou computadores com acesso rápido à Internet por meio de buracos em estruturas de concreto. Esses computadores, instalados em regiões pobres despertavam a curiosidade das crianças que, em pouco tempo, ensinavam umas às outras sobre como usá-los. Em outros experimentos semelhantes, Mitra pôde observar crianças aprendendo desde a composição musical até o aperfeiçoamento do idioma inglês sem qualquer direcionamento ou supervisão. Em vários outros experimentos em que crianças são deixadas sem supervisão com computadores, o processo de aprendizado se repete. Como resposta a um cético que perguntou se de fato o que ocorria era o processo de aprendizado, Mitra decidiu aplicar o teste escrito dois meses depois de um grupo de crianças ter aprendido determinado assunto. O nível de absorção aferido no momento de aprendizagem havia sido de 76%; o nível de aprendizado aferido por prova escrita dois meses depois? 76%.
Em visita a Arthur C. Clarke, quando o autor ainda era vivo, Sugata Mitra apresentou os resultados que vinha obtendo, e ouviu do autor outra frase fundamental sobre o assunto: “Onde há interesse, há educação”.
Veja o fantástico TED Talk de Sugata Mitra (tem legendas em português disponíveis).
A disponibilidade dessa vastidão de material de ensino leva à questão óbvio qual é o papel do professor nesse cenário? Não penso que a resposta seja “em outro ramo de atuação”, como os exemplos de Sugata Mitra podem sugerir aos menos atentos. Quem ajuda a responder essa questão são os professores de Química Aaron Sams e Jonathan Bergmann, do estado do Colorado, nos EUA, que na década passada desenvolveram a metodologia Flipped Classroom, ou “sala de aula invertida”. Como alguns conteúdos de Química são considerados complexos pelos alunos, Sams e Bergmann começaram a gravar suas aulas, disponibilizando-as no YouTube. Assim, quem tivesse dúvidas já teria como assistir novamente a mesma aula. A evolução veio no ano seguinte, quando já de posse de todas as aulas em vídeo, os dois professores propuseram uma inversão no processo de ensino. Tradicionalmente, o aluno vai à sala de aula para absorver o conteúdo, enquanto em casa trabalha na prática (por meio de exercícios, por exemplo) os conceitos aprendidos. Nas aulas de Sams e Bergmann, o mecanismo foi invertido: os alunos passaram a assistir àaulas gravadas em casa, enquanto na sala de aula os assuntos eram desenvolvidos na prática, por meio de exercícios, trabalhos, experimentos e outras atividades. O tempo do aluno, no conforto de seu lar, é usado para absorver o conhecimento, o que pode ser feito da maneira que o aluno achar mais adequada. Já o tempo de aula — valioso demais para ser empregado em uma atividade que pode ser feita com o mesmo proveito usando o recurso da gravação — é usado para tirar dúvidas e para o que realmente importa: para que o aluno ponha em prática os assuntos, sob as diretrizes seguras do professor. Quanto maior o aproveitamento em casa do material gravado, mais ricas podem ser as experiências em sala de aula.
Mas e para quem não se deu ao trabalho de assistir o material em casa? Simples, Sams deixa um vídeo em sua sala de aula, e põe esses alunos (cada vez mais raros, segundo ele) para assistir, enquanto o resto da sala está fazendo coisas mais interessantes. Em pouco tempo todo mundo entra na linha, segundo ele.
Os resultados, segundo Sams conta em seu livro Sala de Aula Invertida – Uma Metodologia Ativa de Aprendizagem, foram surpreendentes: os alunos passaram a ter melhor aproveitamento do material lecionado, e em pouco tempo a escola toda adotara a metodologia. Hoje o movimento Flipped Classroom se expande pelos EUA, e já chegou ao Brasil. Aqui por essas bandas tenho a oportunidade diária de constatar a validade do método no ensino superior.
Combinando a conclusão de Clarke para Mitra, de que o interesse promove a educação, com o método Flipped Classroom, de Sams e Bergmann, penso que temos um excelente direcionamento para o papel do professor nessa revolução que vivemos na Educação. Com mais eficiência, um vídeo do YouTube pode ser exibido em qualquer lugar, quantas vezes for necessário, enquanto o professor não tem nem perto dessa onipresença e dessa energia. Ao invés disso, o professor deve assumir o papel de incentivador do aprendizado. Sendo por natureza um apaixonado pela área que leciona, ele se encontra em uma posição totalmente favorável a realizar esse papel. É sua a tarefa de despertar o interesse do aluno pelo conteúdo, e essa tarefa não é realizada pela máquina.
Um vídeo no YouTube pode até sugerir um experimento, mas só o professor pode contextualizar o experimento com a situação específica da sala, adicionando elementos de sua experiência pessoal e profissional com o assunto e sugerindo cursos de ação com base no que depreende do desempenho de cada um. Apenas ao se desincumbir do papel de máquina dispensadora de informação é que o professor pode assumir verdadeiramente seu papel de condutor do processo de aprendizado, tão necessário ao aluno.
É assim, por meio da tecnologia e de uma reinvenção do papel do professor, que vamos nos livrar da tal “educação bancária” a que estamos atrelados desde a Revolução Industrial.
Já não era sem tempo.
Amei o artigo Ruy. A criança aprende o que gosta, o que é interessante. Como professora da educação infantil, vejo na rede que trabalho a falta desse professor mediador....que instiga e oferece meios para a descoberta da aprendizagem.
Obrigado pelo carinho, Paula! Infelizmente não podemos contar com o apoio do governo para as melhorias necessárias ao processo de educação. Ainda assim, estamos vivendo uma época em que também está ao nosso alcance promover as mudanças que queremos ver. A tecnologia ajuda um pouco, claro, mas de fato é a atitude do professor que conta mais profundamente. Bom fim de semana!