A “imagem” a seguir aconteceu no início de 2016, em um almoço na empresa em que eu trabalhava à época. O amigo de esquerda — literalmente um petista de carteirinha, filiado ao partido desde os tempos da faculdade, e que havia sido inclusive assessor de um deputado federal — sentava-se à minha frente e ambos discutíamos política.
Parêntese: nunca me livrei do hábito de discutir política. Desde que a argumentação se dê em parâmetros lógicos civilizados, sou afeito à troca de ideias, do intercâmbio de posicionamentos. Em alguns casos essa troca deteriora para um campo nada positivo, a partir do qual venho aprendendo a me despedir e a deixar a batalha. Mas na maioria dos casos, já é possível ouvir o antagonista e expor meus argumentos, de forma civilizada, o que me ensina muito sobre como o outro pensa. Creio que seja um processo válido, e — salvo as vezes em que não sou capaz de evitar a deterioração — é prazeroso. Prazer besta, né? Fazer o quê?
Então, de volta ao amigo petista em questão. (Aliás, para os que não me conhecem, friso: não sou petista, não sou de esquerda, aplaudi tanto o impeachment da ex-presidente Dilma, quanto a prisão do ex-presidente Lula). Eu tentava entender a mudança brutal de posicionamento que ocorrera no PT desde a passagem da oposição, nos tempos das greves, até a chegada e consolidação no poder, primeiramente com Lula e depois com Dilma. Eu tentava entender como um partido que havia sido o “guardião da moralidade” podia ter mudando tanto, em tão pouco tempo.
O exemplo que eu trouxe à baila foi o Mensalão, ou seja, o mecanismo criado pela cúpula do governo e gerenciado pelo então Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu, por meio do qual parlamentares eram pagos ilegalmente para votar a favor das pautas do governo. Minha pergunta ao amigo petista era, em suma, algo na linha de: “Como é que um partido que sempre apontou as falcatruas da política brasileira se entregou à corrupção do Mensalão?” Eu queria entender de um “insider” como uma mudança tão diametral podia ter acontecido. O que justificaria essa ocorrência, sob meu ponto-de-vista, absolutamente injustificável?
A resposta veio calma, fria, simples: “É necessário. No Brasil só dá para fazer política assim. Sem esse tipo de mecanismo, a gente não consegue aprovar as mudanças de que o povo precisa.” (as palavras não foram exatamente essas, mas foram próximas. O que não dá para esquecer é o olhar do amigo, desnudo, escancarado, enquanto proferia essas palavras).
Ali estava, a questão respondida de maneira mais que clara: o idealismo de discurso dando lugar ao pragmatismo gritante (e, como sempre no tocante à política brasileira, canalha).
E o pior: o amigo não se arrependia do caminho tomado. Para ele, era assim mesmo, e os fins justificavam os meios. Para ele, a atitude do partido (e do presidente Lula, que na época ainda jurava de “pé junto” que não sabia de nada) era correta, e não havia nada de errado com aquilo. Lembram da autocrítica que a gente suplica que os petistas façam? Pois é, naquela época não rolava, a exemplo de hoje.
A conversa terminou por ali: ele sem conseguir me convencer de que o pragmatismo canalha era o único caminho, e eu sem conseguir mostrar-lhe que o PT havia se transformado naquilo que mais combatera no passado.
Corta para o presente, quando testemunhei o “reflexo” do relato acima. Tenho conversado com muitos amigos e recém-conhecidos (via redes sociais) acerca do atual governo. Em algumas dessas conversas — bastante civilizadas, por sinal, em que ideias são trocadas sem degringolar para xingamentos, com argumentos polidos sendo apresentados por ambos os lados — apontei para algumas idiossincrasias que, creio, são gritantes no atual governo:
- O ataque ao ensino público superior, mesmo diante do fato de que mais 85% da pesquisa nacional venha dali, e que inúmeras empresas de tecnologia surjam das incubadoras das universidades, gerando emprego e riqueza para o país;
- A censura a um comercial que visa atrair jovens para o sistema bancário, feito por uma instituição financeira que só visa uma coisa: lucro, representando jovens de maneira não ofensiva (como pude constatar junto a muitos de meus alunos nessa faixa etária);
- A insistência em ideias estapafúrdias e francamente errôneas, como a arenga de que o nazismo era um movimento de esquerda, o que nos torna ridículos perante o mundo;
- O foco em uma suposta “moralização”, enquanto o que o país precisa é de medidas sérias e sólidas para voltar a crescer e a gerar riqueza, que é o mais necessário nesse momento, e não essa guerra ideológica contra inimigos que existem mais na cabeça de quem guerreia do que na realidade;
- A lavagem de propina perpetrada pelo então candidato Jair Bolsonaro, que recebeu R$200 mil da JBS, entregou o dinheiro sujo ao partido, para só depois recebê-lo de volta, lavadinho, lavadinho;
- A prática espúria de Flavio Bolsonaro, de pagar assessores e recolher de volta o dinheiro por meio do “negociante” Queiroz;
- A criação de um mecanismo fisiológico por meio do qual a pauta do governo será aprovada, mediante concessão de 40 milhões em verbas de emenda para cada deputado que votar com o governo
Como teria sido possível uma mudança tão grande, um abismo tão monumental entre o discurso eleitoral de “Vamos acabar com essa bagunça! Vamos acabar com essa velha política!” e a prática de um eventual “Mensalão Versão 2.0”?
Um dos interlocutores me falou de reconstrução nacional, de demolição do que foi criado por quem não tinha compromisso (à sua vista) com os valores nacionais, da rejeição e da substituição das ideias do regime antigo. Ele se referia, obviamente, aos governos de esquerda. Ouvi (na verdade, li) com a mentalidade de quem quer entender, de quem quer aprender como o outro pensa. Discordo de seus pontos de vista (todos, aliás), com a mesma convicção que discordei dos argumentos de meu amigo petista, e algo na conversa me fez lembrar daquele momento, já vários anos no passado.
Relendo um dos textos trocados nesses embates de ideias, o cerne da questão me saltou aos olhos:
“Atuar de forma isenta e crítica, sem tomar um ‘partido’, do alto da soberba da sabedoria, também não vai ajudar. É preciso um posicionamento claro e combativo, ciente de que haverão [sic] perdas e que alguns princípios e ética serão afetados.”
Ali estava, mais uma vez, a questão respondida de maneira mais que clara: o idealismo de discurso dando lugar ao pragmatismo gritante (e, como sempre no tocante à política brasileira, canalha).
E mais ainda: o interlocutor, cordial, civilizado, disposto à troca de ideias de maneira digna, não se furta em rotular minha postura — de não compactuar com essas concessões e de crer que seja dever cívico apontar quando o governo erra — como sendo “soberba sabedoria”. O que ajuda, segundo esse interlocutor e segundo o amigo petista da primeira parte desse texto, é prender a respiração diante da fedentina, tomar “partido” (da direita ou da esquerda, dependendo de quem propõe) e seguir em frente no lamaçal, com a promessa de que sairemos “limpinhos” do outro lado, uma vez que estamos do lado “certo” (de novo: independente de ser esse lado à direita ou à esquerda). Ora, tenham dó ambos os lados se acham que cola essa história de “a minha corrupção é do bem”.
Em suma, o discurso eleitoral usado por ambos os lados a seu turno para ascender ao poder é só isso mesmo: um discurso. Do mesmo modo que a esquerda troca a imagem de “guardiã da moralidade” pelo pragmatismo de resultados, assim também o faz a direita. Uma se torna o reflexo da outra, em um espelho espúrio e hipócrita.
Me vem à mente a famosa frase do economista John Kenneth Galbraith (em tradução livre):
“O Capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O Comunismo é o contrário.”
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P.S.: Já posso antever os questionamentos de ambos os lados, que certamente se recusarão a ver a simetria em suas posições e, mais importante, me lançarão de volta o “Tá, mas então qual é a solução?”
Não tenho respostas absolutas, obviamente, mas podemos explorar, juntos, a questão na semana que vem. Até lá.
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