Vamos combinar: 2016 não foi um ano fácil.
Entramos no ano com uma economia falida, destruída por uma política econômica irresponsável e sem rumo.
Começamos o ano já sob a égide de um processo de impeachment presidencial, realizado dentro de preceitos constitucionais, mas ao mesmo tempo uma farsa jurídica criada para extirpar do poder um projeto calcado na incompetência e na corrupção, e ainda assim abalizado pelas urnas. Se o objetivo era corrigir um curso que nos levaria à ruína, à “venezuelização” do país, paramos a menos de 1/5 do caminho, deixando a maioria do “serviço” por fazer.
Batemos palma — os capazes de enxergar os malefícios de um governo que perdeu de bom grado o rumo — para a farsa jurídica (mas juridicamente constitucional), e ficamos estupefatos quando o golpe constitucional foi dado, uma vez que o Congresso, sob a égide do presidente do STF, descumpriu a Carta Magna e não aplicou a punição à ex-presidente, naquele momento já destituída do cargo.
Vimos a situação econômica se deteriorar ainda mais ao longo do ano, e percebemos que nem em 2017 e provavelmente nem em 2018 recuperaremos o crescimento. Herança, obviamente, do ex-governo, já destituído, mas também decorrência direta das ações de um atual governo ilegítimo, tão ineficaz e tão corrupto quanto o que veio a substituir.
Fomos testemunhas de como a corrupção se escancara quando acuada, vendo Câmara e Senado se armarem para oficializar que é permitido roubar, desde que se tenha votos. Nesse sentido, vimos um projeto de combate à corrupção ser transformado em uma piada de mau gosto por aqueles que deveriam representar o povo, mas deixam claro que só pensam em seus próprios bolsos.
Fomos obrigados a encarar uma investida contra a pouca tranquilidade que poderíamos ter na velhice, com a sanha do governo pulverizar as chances que teríamos de nos aposentar. Afinal de contas é bem mais fácil mexer na previdência do que acabar com o sorvedouro ininterrupto da corrupção, não é verdade?
No cenário internacional, assistimos estupefatos a Grã-Bretanha chafurdar em isolacionismo e nacionalismo, comprometendo tristemente o potencial de suas gerações futuras com a decisão de extirpar-se da Comunidade Europeia com a vitória do Brexit. Foi triste e patético testemunhar, no dia seguinte à votação, que as principais buscas no Google vindas daquela nação procuravam saber o que era Brexit, e quais as consequências do Brexit. Foi um caso clássico de “atire primeiro, pergunte depois”, em que o revólver estava apontado para a própria cabeça de quem tinha o dedo no gatilho e não hesitou em apertá-lo.
Observamos boquiabertos a ascensão do vigarista bilionário Donald Trump nas pesquisas, e nos tranquilizamos porque a sensatez dos norte-americanos apontava para uma vitória tranquila da opção menos danosa, Hillary Clinton. Acordamos para um mundo que combina o racismo com os delírios de grandeza de um povo que demonstra claramente que não se livrou de seus mais arraigados preconceitos, felizes por jogar no lixo conquistas sociais e históricas que demoraram séculos para serem adotadas. Nesse processo, jogamos de vez os conceitos de “realidade”, “fato”, “verdade” e “jornalismo” no mesmo lixo a que relegamos as conquistas sociais: deixamos que o preconceito, as opiniões enviesadas e parciais, a raiva contra o que não entendemos, tomar conta de um processo que pôs nas mãos de um escroque os códigos nucleares que podem iniciar o último conflito global (porque depois, como diria Einstein, vai ser na base dos paus e pedras).
Perdemos gente boa demais nesse ano, no campo das artes e do esporte, e não foram só as mortes “corriqueiras” devidas à idade ou às complicações de saúde, como nos casos do boxeador Muhammad Ali (74), do ator Gene Wilder (83), do compositor Leonard Cohen (81) e do nosso poeta Ferreira Gullar (86). Perdemos também alguns gênios de nossa geração, tais como David Bowie (69) e Prince (57), e agora, no apagar das luzes desse anos que não vai deixar lá muitas saudades, George Michael (53). Todos com décadas ainda pela frente, todos idos cedo demais. Mas também, todos casos individuais e sem responsabilidade alheia na causa. Um caso diferente foi o do time da Chapecoense e de vários jornalistas, arrancados da vida de maneira triste e criminosa pela negligência de alguém que considerou evitar uma multa mais importante que as vidas de um avião cheio de gente.
Isso sem contar com as derrotas pessoais pelas quais muitos de nós passamos (o que ocorre todos os anos, não só nesse, a bem da verdade): perdas de familiares queridos, doenças, desemprego, e por aí vai. Passar por um perrengue desses não é como vivenciar um dos listados acima: dói mais porque entra pela pele e vai direto na alma.
O ano me deixa com uma sensação semelhante — ainda que algumas ordens de grandeza mais intensa — à do fatídico 7×1 da Copa do Mundo de 2014. O “1”, nesse contexto, fica a cargo de cada um de nós. Para alguns terá sido a Lava Jato, que ainda insiste em cobrar a conta dos corruptos, colocando alguns deles onde deveriam estar: atrás das grades; para outros, pode ser o fato de que em meio a tanta ruína econômica, terminamos o ano ainda empregados, ainda solventes (mesmo que só minimamente); para outros ainda, pode ser uma conquista pessoal: um diploma, um nascimento na família, uma reconciliação, ou algo que o valha. Pode ter sido algo simples e prosaico como ser capaz de ficar 5 minutos em paz, ao apreciar um entardecer na companhia de amigos “ao som” de uma cerveja gelada. Sim, é pouco: é o “1” do 7×1. E pensar “mas pelo menos não tomamos de zero” não ajuda em absolutamente nada: a goleada foi grande demais.
O problema maior do 7×1, na época, lá na Copa de 2014, foi a sensação de perder o chão. “E agora, como vai ser?”, a contemplação de um futuro incerto, em que outras goleadas (talvez maiores) seriam (e são) possíveis. A sensação de impotência, de derrocada, de fim do mundo. A certeza de que à nossa frente só tínhamos incertezas.
Transpondo para o 7×1 que foi o ano de 2016, o resultado é que vislumbramos um 2017 potencialmente pior. Variações de afirmações jocosas do tipo “se você acha que 2016 foi ruim, é porque você ainda não viu o que te espera em 2017” correm soltas por aí, e provocam risos nervosos em quem as escuta. Risos de quem gostaria de ser anestesiado hoje e só acordar em 2018 ou talvez em 2025.
Mas talvez não seja para tanto. Talvez.
Se olharmos para os resultados de 2014, temos que no contexto do futebol, a bola continuou correndo, a vergonha passou, a sensação de falta de rumo deu lugar às novas partidas, novos campeonatos, novas vitórias e derrotas. Não apagamos o resultado, mas trouxemos a medalha de ouro nas Olimpíadas de 2016 contra a própria Alemanha, e descobrimos que ainda somos apaixonados por futebol.
Em suma: deu para sobreviver àquele 7×1.
É claro que este 7×1 nacional e global que estamos vivenciando é mais sério, e terá consequências mais profundas (aliás, já está tendo). Mas ainda assim, há esperança.
Um irmão americano (do time dos sensatos, que fez campanha pela Hillary) comentou que 2016 foi o pior ano de todos os tempos, mas que rapidamente perderia o posto para 2017. Posso até concordar com a segunda parte da afirmação, mas jamais com a primeira: 2016 não foi nem de longe o pior ano de todos os tempos. Os últimos anos da Segunda Guerra foram inimaginavelmente piores, assim como a Depressão de 1929. Isso sem falar nos anos da Peste Negra — que assolou o mundo entre 1349 e 1352 — matou 1/3 da população da Europa; na Inquisição levou terror ao mundo Cristão por séculos, nem nas inúmeras regiões Africanas são assoladas por fome, doença e miséria há mais tempo que podemos lembrar.
Não, 2016 não foi o pior ano de todos os tempos. Nem de longe. Foi ruim, claro — foi um 7×1! — mas não foi o pior.
E é isso que deveria nos encher de esperança pelo futuro: já saímos de situações muito piores do que a que enfrentamos nesse momento de nossa História. Já resolvemos problemas mais graves, e nada impede que resolvamos mais esses à nossa frente.
É pouco? Quase não ajuda? Pode ser. Mas é o que temos.
A verdade é que ficarmos estupefatos, catatônicos como um animal silvestre paralisado diante dos faróis do caminhão que rapidamente se aproxima, vai ajudar menos ainda.
Um feliz 2017 a todos.
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