Tinha um paladar estragado pelos doces em exagero, mas uma forma toda autêntica de saborear os acontecimentos da vida. A alegria foi a opção escolhida para ultrapassar toda e qualquer situação inusitada de um cotidiano assustadoramente insano, mas protegido e abençoado.
Um dia bonito de tão quente, céu azul sem qualquer vestígio de nuvem. Brisa compensadora, que se tornava única especialmente por se misturar ao som da agitação divertida das maritacas. Um lago suficientemente grande para tornar a brisa gélida e constante. Uma volta a mais, correndo, e nada mais sobrou de qualquer pensamento sufocante de ansiedade. Descobriu, na prática, o quanto os exercícios físicos podem ser relaxantes para a mente, confortáveis para o corpo. Esse vício bom trazia algo que compensava a necessidade avassaladora por doces, além de trazer uma linha toda harmônica e anatômica às curvas generosas de seu corpo e de sua alma. A adrenalina de se fazer bem, de optar por uma vida mais saudável, era seu mais novo trunfo de liberdade.
Viajar uns dias fez com que ela tivesse tempo para reconhecer e absorver os novos hábitos, a nova vida. O novo de novo pode ser delicadamente prazeroso, acolhedor e, sensualmente, desafiador. Nesses dias, além do lago, aproveitou também a natureza, as cachoeiras e o mar. Sempre teve uma relação de profunda intimidade com as águas, mas em especial com o mar. Toda vez que pisava na beira do mar era como se, finalmente, chegasse em casa. E hoje entende como isso é real, como não só se sente bem na água, mas é a própria água. Aprender mais de si mesmo, sempre, talvez seja a beleza natural da alma em se conectar com o Universo em si.
A volta para casa aconteceu num feriado. Enquanto todos iam, ela voltava. Sempre se divertiu em nadar contra a correnteza, das mais simples às mais complexas situações. A cidade estava vazia de uma forma peculiar. Era como se o tempo tivesse resolvido passar em câmera lenta, como uma forma de caridade à raça humana, tão constantemente distraída com o que de fato é essencial. Era como se estivéssemos tendo uma chance de realmente observar e vivenciar cada olhar, sorriso, cada cena, cada gesto, cada minuto precioso. Entretanto, talvez só ela tivesse mesmo entendido que aquilo tudo era um privilégio. Enquanto desfrutava de seu açaí, teve tempo de observar o desperdício alheio de tempo nas outras mesas. O presente, trazido pelo tempo, estava levianamente sendo ignorado por tantos. Era assustador, talvez triste. As telas dos celulares todas acesas, à mesa, e o tempo ali gritando, tentado se fazer presente. O presente, o agora. A única coisa realmente palpável e talvez o fator menos percebido, contemplado e admirado. Ela sentia aquilo tudo e não entendia como podia estar tão só nisso. Eram como zumbis, iluminados por suas telas hipnóticas e por vezes hipócritas. Talvez acordassem, talvez não. Estranha era mesmo ela sentindo tudo, cada detalhe.
Após a última colher de açaí, pediu a conta. Pagou, ganhou um sorriso e algumas palavras:
– É realmente uma pena que cada vez menos pessoas aproveitem a oportunidade de vivenciar os detalhes do tempo, de forma crua e sem amarras. Entendo o que sente, você não está só.
Ela não teve resposta. Sorriu de volta, abraçou apertado o novo amigo de jornada, pegou sua bolsa e caminhou de volta para casa.
A certeza mais gostosa de ser sozinho é saber que nunca estamos, de fato, sós. Entrou em casa como quem vive numa realidade paralela. E talvez viva mesmo. Brincou os cachorros, tomou banho e foi deitar. Chegou a pensar que a viagem poderia ter mexido com sua cabeça, tanta natureza, o reencontro com o mar, os banhos de cachoeira. Quem sabe ela estivesse, de tanta busca interna, perdida no tempo e espaço e vendo coisas que ninguém mais vê, ou que poucos enxergam. Não era normal sentir tudo e tanto dessa forma, receber recados por meio da fala de estranhos, perceber o tempo mais lento como um presente, ter a intuição por bússola para a vida. Sentiu-se realmente muito estranha…
Gargalhou no escuro misterioso de seu quarto e sentiu uma felicidade imensa invadir o peito. A constatação de não ser normal trouxe uma mistura de sensações maravilhosas. Primeiro um êxtase. Depois uma comoção; em seguida, a alegria; e, finalmente, gratidão. Sentia-se plena!
Dormiu o sono dos justos de alegria e foi passear nos campos floridos da serenidade. Afinal, é preciso se recuperar em outras dimensões para acordar nessa realidade nada plausível e totalmente contraditória, não é mesmo?
É isso e é só.
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