Em 2012, nas cidades da região do Vale Histórico do Rio Paraíba do Sul (São Paulo), deparei-me com inúmeras manifestações da cultura popular, tais como as procissões religiosas, as Folias de Reis e outras de caráter satírico como o Calango.
O objetivo da pesquisa era compreender a educação no sistema escolar, mas também fora dele, pensando na produção de saberes e na educação que ocorria na própria comunidade. A cidade de Bananal/SP foi escolhida como um “laboratório a céu aberto”. É uma das pequenas cidades do Vale Histórico do rio Paraíba do Sul, com pouco mais de 11 mil habitantes, consagrada – por seu histórico no século XIX – como a Terra dos Barões do Café.
O Calango é uma manifestação popular ritmado pela sanfona, além do violão e do pandeiro, e pode ser comparado ao repente da região Nordeste do Brasil. O calangueiro, assim chamado o cantor de Calango, tem como objetivo responder ao verso de seu desafiador, rimando-os em terminações semelhantes. Por exemplo, “a”, “ar”, “e”, “or”, “ão”, “ei”, “ou”, o que torna mais difícil a disputa, dependendo da habilidade e sagacidade dos calangueiros concorrentes no desafio das rimas.
Na entrevista com Jorge da Silva Rodrigues, com 74 anos na época (nascido em 06 de outubro de 1939 em Bananal-SP), há dados sobre os contos e lendas aprendidos através de geração a geração, e que foram e são mantidos pela história oral na localidade. Como bem lembra Sr. Jorge, o Calango é um ritmo musical bastante preservado na região, pois são muitos os calangueiros ali encontrados. Após se recordar do primeiro verso, Sr. Jorge na sequência canta outro:
[cantando]
No caminho do mata porco me juraram de matar
Com a garrucha de dois canos, duas balas de metá
Menina, casa comigo, eu sou bom trabalhador
Com chuva não vou na roça, nem com sol também não vou
[cantando]
Totonha não quer que eu bebo
Chiquinhá não quer que eu bebo
Totonha compra e me dá
Chiquinhá do riachão
Totonha do lago Ama
Chiquinhá por querer bem
Totonha por me amar
A primeira vez que ouvi o Calango em Bananal-SP foi no dia 01.04.2012, um Domingo, no qual se iniciavam os festejos religiosos da semana Santa. Abaixo um registro realizado em meu Caderno de Campo:
Estava na Praça da Matriz, tomando açaí bem em frente ao chafariz. Neste mesmo instante dois senhores. Um negro com um chapéu de pano, uma fita que o adornava, uma bolsa nas costas, botinas, cinto de couro de peão, calça jeans, camisa preta, um colar de sementes e um crucifixo no pescoço. O outro, visivelmente embriagado, shorts cor jeans e camiseta bege. O primeiro antes de vir pra praça da matriz estava na Praça do Rosário andando com sua bicicleta. Uma bicicleta vermelha que tinha uma garupa onde ele carregava um saco e umas folhas que pareciam Boldo. Os dois calangueiros então começaram o desafio. O segundo inicia a disputa improvisando seu verso, o refrão ficava por parte do senhor negro, que o repetia como num coro. Ali na praça, passaram uns vinte minutos presos no desafio empreendido por eles. Ali mesmo um observador mais velho que acompanhava a disputa ritmava o duelo com palmas, os mais jovens assistiam aquilo como se fosse uma brincadeira. Outros três interessados no desafio fizeram o mesmo que eu, utilizando seus celulares para gravar o duelo que se deu em praça pública, num Domingo de Ramos. Tudo aconteceu horas antes da Procissão de Nossa Sra. da Boa Morte até a Igreja de Bom Jesus do Livramento. Ouvia-se:
[cantando]
Sou mineiro do sertão,
Tomo pinga com limão
Tudo isso pra alegrar o coração.A procissão se iniciou as 17h15 e desceu a ladeira em frente à Praça de Nossa Sra. da Glória e seguiu em cortejo até a Praça da Matriz. Muitos fiéis acompanhavam o cortejo, eram quase umas 300 pessoas, que traziam nas mãos seus ramos até a Igreja de Bom Jesus do Livramento. A missa terminou um pouco antes das 19h00, momento em que os fiéis seguiram para o bingo que ocorreria na Igreja Nossa Sra. da Boa Morte.
O duelo de Domingo de Ramos revela a riqueza dos festejos religiosos e satíricos da cultura paulista. A programação da Semana Santa em Bananal demonstra como a tradição católica, ainda hoje, é mantida através da manifestação da fé da população na comunidade. O Calango, em contrapartida, é uma manifestação satírica da cultura popular, bastante difundida entre os moradores (homens e mulheres) da região.
A fotografia, que ilustra este artigo, é a visão que se tem da porteira para a casa de um outro calangueiro entrevistado em Bananal, o Tião. A propriedade fica próxima ao quilômetro 12 da estrada que liga o centro da cidade aos sertões da Serra da Bocaina, por isso a paisagem verde dos “mares de morros”. Além do Calango, o entrevistado conhece muito bem a biodiversidade da região e os hábitos de muitas espécies da fauna local.
Depois de uma conversa boa no dia 20 de Maio de 2012, quase no final, eu perguntei ao Sebastião Fernandes dos Santos, nascido em 1953 também em Bananal/SP e com 59 anos no momento da entrevista (a 33ª de 35 entrevistas realizadas na cidade): “-Tião, você tem mais um verso aí?”. E Sebastião responde: “Eu tenho que lembrar, rapaz. Porque o bom é que nem eu falo pra você, quando você tá no embalo”.
A resposta à minha pergunta acontece minutos depois dele acabar de criar um verso de Calango numa linha de rima mais difícil, como ele me explicou, ao afirmar: “Original! Calango é uma coisa original! Você cria, é uma coisa que você faz na hora e tem que ter ritmo e tem que ter linha”. Ele continua: “É improviso e quanto mais o calangueiro é bom, melhor pra gente, porque do verso que ele cantar, você emenda outro em cima. É verso que você faz na hora”.
Segundo o calangueiro Tião, a disputa vai “até um miá, até um não aguentar, até um repetir o verso…se ele canta o verso que ele cantou no começo, [ou seja] se ele torna a repetir de novo, aí pode sair fora! Você não pode repetir”. Cantando, Tião torna-se um autor neste gênero musical. No embalo desse ritmo Tião fez no improviso este verso que revela a riqueza incomensurável da cultura imaterial paulista:
[cantando]
Na linha do barangão
eu canto a bicharada
boto tudo em coleção
O gambá embriagado
lá em cima do fogão
comendo ovo cozido
guarda a casca na mão
O macaco entusiasmado
foi logo para leilão
gritava, pulava e ria
com suas prenda na mão
tatu sentou no banco
foi tocar só pro leão
Lagarto tirou a dama
o coelho não acho bom
porque era lagartixa
mulher do camaleão
Conversando no escuro
com falta de educação
e o rato toca pandeiro
Sapo toca violão
Cachinguera era bonita
gosta de cantar canção
A coruja deu risada
sentada no moerão
O gato deu um miado
desse jeito não tá bom
deu um tapa na coruja
coruja caiu no chão.
Qual a importância do Calango? O Calango é praticado nas pousadas de Folia de Festa do Divino, quer dizer que é um dos ritmos tocados nesta festa típica do catolicismo popular e também alegra as festas de casamento e bailes na roça. Mas não só isso! O ritmo musical se configura como uma importante manifestação do nosso patrimônio imaterial.
Segundo Amarildo Pereira de Lagoinha-SP (aos 6´58´´ do documentário Etnodoc “Calangos e Calangueiros”): “O Calango é uma forma de divertir as pessoas na festa, porque é um verso improvisado e a composição musical combina perfeitamente com o forró arrasta pé”.
Hoje no país contamos com o ETNODOC, um projeto que possibilita a produção de audiovisuais de grande relevância para muitos pesquisadores e curiosos. O documentário etnográfico Calangos e Calangueiros, selecionado na edição de 2007 do ETNODOC, revela como o ritmo foi disseminado pela região do Vale do Rio Paraíba do Sul paulista: [youtube id=”iR0vJqmh_xw” align=”right” mode=”normal” autoplay=”no” grow=”no”]
Os “óculos” que mais uso para enxergar cientificamente o mundo é o etnográfico. A pesquisa etnográfica é aquela que ocorre a partir da observação direta e pelo contato próximo com os sujeitos da pesquisa, sendo sua principal ferramenta de trabalho o diário ou o caderno de campo. A etnografia tem como premissa fazer a ponte entre o pesquisador e o grupo lócus da pesquisa a fim de que o primeiro enxergue a cultura estudada a partir da perspectiva ou da visão do mundo do próprio “nativo”.
No caso de Bananal, o método utilizado não serviu apenas para romper com a barreira da língua ou a fronteira do eu (pesquisador) e o outro (pesquisado), situação comum na pesquisa etnográfica. Ele foi fundamental para compreender que a comunidade produzia algumas de suas riquezas culturais a partir de uma modalidade de educação que não é oferecida pela escola, mas que emerge da própria socialização estabelecida entre os atores sociais na localidade.
Adorei o artigo... Para Amantes de Cultura popular e regional é encantador e esclarecedor. Seu texto nos t eletransporta para o local. Parabéns!
Obrigado Lilian, minha amiga querida. Que gostoso saber que posso levá-los para viajar comigo por esses aspectos da cultura popular!
Olá Diego, que fabuloso ler isso. Fico imaginando a cena, desses dois senhores. É belo e às vezes nós que vivemos por aqui não valorizamos. Abraços.
Olá Ivonete! Que bom que gostou. O artigo era mesmo para dar o valor devido a manifestação. Divulgue o material por aí. Grande abraço minha amiga! Sdds