Há um personagem interessante (há vários, aliás) no livro Snow Crash, escrito por Neal Stephenson em 1992. Ele se chama Raven, e o que o torna interessante é o fato de andar em uma moto com uma bomba de hidrogênio no carrinho do passageiro, o side car, como aqueles triciclos alemães da Segunda Guerra. O dispositivo tem um gatilho, convenientemente implantado na cabeça de Raven, e será disparado no momento em que o cérebro do rapaz parar de emitir sinais elétricos. A mensagem é clara: se eu morrer, muita gente morre também.
O ditador norte-coreano Kim Jong-Un, por meio do teste de um míssil balístico no dia 29 de agosto, se transformou em uma espécie de Raven da vida real. Doido como o personagem; inescrupuloso como o personagem; mortal como o personagem. Diferentemente do personagem, porém, Kim Jong-Un atestou que sua letalidade também é móvel, pois conseguiu demonstrar que pode atingir alvos para além do território japonês.
De maneira análoga ao Raven de Neal Stephenson, a mensagem é clara: se mexerem comigo, muita gente morre. Mais especificamente, 10 milhões de pessoas em Seul e mais 10 milhões em Tóquio, pelo menos.
Antes de me acusarem de estar criando uma aura de herói para o ditador Norte-Coreano, é bom eu deixar bem claro: Kim Jong-Un é doido. Um monstro. Submete a população da Coreia do Norte a agruras terríveis para se manter no poder, e merecia pagar por seus extensos crimes, sendo encarcerado pelo resto da vida em uma cela 2×3 de uma penitenciária de segurança máxima. Deveria ser julgado por crimes contra a Humanidade e removido permanentemente do convívio com seres humanos. E ainda que passasse seis ou sete décadas na cadeia, isso não seria suficiente para que pagasse pelas barbaridades que perpetrou e continua perpetrando no país onde dita as regras.
Apesar de doido de pedra, há muita esperteza em Kim Jong-Un e sua sanha atômica. O fim recente de alguns ditadores sangrentos costuma ser nada agradável, como já vimos nos casos do iraquiano Saddam Hussein, morto em 2006 e de Muammar Gaddafi, tirano da Líbia morto em 2011. É óbvio que Kim Jong-Un não quer esse destino para si. Os EUA e a Coreia do Sul já afirmaram aberta e repetidamente que o ideal é a remoção do regime. Os coreanos do sul porque querem se unir aos seus parentes do Norte. O país foi artificialmente dividido ao meio como resultado da Guerra da Coreia, de 1950 a 1953, e a exemplo da divisão da Alemanha durante a Guerra Fria, não faz sentido para os habitantes de qualquer uma das duas metades. Os norte-americanos porque é insaciável sua sede por novos mercados, ainda que esta venha disfarçada de “luta pela liberdade”.
Quaisquer que sejam os objetivos, declarados ou ocultos, de ambos os países, o alvo é um só: a remoção do regime de Kim Jong-Un da vizinha do Norte. Não admira, portanto, a atitude insana do investimento em armas atômicas por parte de uma nação que não consegue nem iluminar os lares de seus cidadãos.
Na foto, tirada em 2015, podemos ver o céu noturno mostrando a Coreia do sul (canto inferior direito, a Coreia do norte (grande região escura no centro) e a China (Canto superior esquerdo). O ponto iluminado no meio da região escura é a capital, Pyongiang.
A pergunta na mente de muita gente nesse momento vai na linha de: “até onde o ditador norte-coreano pretende ir com suas armas nucleares e mísseis balísticos?” Tendo desenvolvido um míssil capaz de atingir alvos a mais de 1000km de distância, poucos obstáculos se interpõem entre o momento atual e o momento em que Kim Jong-Un será capaz de atingir a costa ou mesmo o interior dos EUA. Será este seu plano?
Difícil dizer, seja que sim, seja que não. O discurso do ditador, repleto de bravatas e ódio dirigido aos EUA impede a negativa tácita. A certeza de que um ataque significaria a obliteração completa da Coreia do Norte impede o “sim”.
Talvez quem nos apresente um caminho interessante de análise seja um país bem distante da Coreia do Norte: Israel.
Apesar de a nação israelense nem admitir nem negar que tenha armas nucleares em seu arsenal, é amplamente divulgado por agências de espionagem que, de fato, Israel as tenha desenvolvido, criando suas próprias ogivas a partir de dezembro de 1966. Vinte anos depois, o ex-técnico do centro de pesquisas nucleares de Negev, em Israel, Mordechai Vanunu veio a público e afirmou categoricamente — inclusive apresentando documentos como evidência — que o país mantém um significativo arsenal de armas nucleares. Apesar de não dizer nem que sim nem que não, o governo dá uma pista quando afirma que não será o primeiro a introduzir armas nucleares em um potencial conflito envolvendo Israel.
O fato é que, desde que a confirmação de Vanunu — que foi raptado pelo Mossad na Itália e condenado a 18 anos de prisão por espionagem — veio à tona, os países vizinhos de Israel amenizaram as animosidades, e o país já está em sua terceira década sem experimentar conflitos em seu território com nações vizinhas (os palestinos em conflito são residentes do país). Não é preciso ter grandes poderes de análise para entender o que fez com que os vizinhos de Israel — inimigos declarados — perdessem a verve de destruir aquela nação. Mas, para reforçar o ponto, podemos recorrer a uma antiga charada infantil: imagine que alguém solta um tiranossauro vivo no centro da cidade de São Paulo (ou de qualquer outra cidade grande que apeteça o leitor), onde o animal vai parar para dormir?
Você consegue imaginar? A resposta é simples: onde ele quiser.
Israel se tornou o tiranossauro da região, e ninguém mais vai ameaçar o país, pois as consequências seriam drásticas.
Quando observamos a Coreia do Norte, podemos estar vendo o surgimento de outro tiranossauro: nem mesmo o tiranossauro-mor do planeta, os EUA, irão atacá-los, pois, por mais que a vitória seja certa, o custo será alto demais. A aparente insanidade de Kim Jong-Un contribui ainda mais para esse efeito: quanto mais ele aparenta ser instável, menos estímulo EUA e China terão em tentar remover o regime. Assim, espera o ditador, seu fim será diferente do fim de Muammar Gaddafi e Saddam Hussein.
Quem sofre com isso? Bem, obviamente que o povo da Coreia do Norte, que passa necessidades e sofre com a falta de liberdade para que seu governante possa manter-se no poder. Outro que sofre também — e esta é potencialmente a única boa notícia desse imbróglio todo — é o presidente dos EUA, Donald Trump, que hoje tem menos confiança do público norte-americano do que sushi de posto de gasolina. Uma maneira antiga, testada e aprovada por presidentes americanos em apuros nas pesquisas é dispor do expediente de uma declaraçãozinha básica de guerra, ou de uma operaçãozinha militar singela. Funcionou com Reagan em Granada, na década de 1980; funcionou com Bush, no Iraque, em 2003. Aliás, no caso da Guerra do Iraque de 2003, funcionou tão bem, que Bush teve o apoio inclusive dos então senadores Hillary Clinton e Barack Obama, seus declarados oponentes políticos. É tido como certo que a opinião pública viraria rapidamente em favor de Trump diante de uma declaração de Guerra. Infelizmente (ou felizmente, se você também acredita que Trump é a maior ameaça que nosso planeta enfrenta nesse momento) Kim Jong-Un esvaziou essa possibilidade
Puxa, a que ponto chegamos. É isso que Trump nos provoca: achar alguma coisa de positivo em um ditador doido com armas nucleares.
Fala Ruy! Eita! Achar algo bom num ditador devido a outro louco? Sério? Vc vê algo bom em Hitler? Não é pegadinha. Eu fico pensando se todas essas pessoas, "loucas", psicopatas, déspotas, ditadores, não têm, no fundo, sempre algo a nos ensinar. Se elas não refletem tbm sombras que temos: vaidade, orgulho, desejo de poder, satisfação de oprimir, de conquistar...
A meu ver são duas coisas diferentes, Jaylei: em primeiro lugar, sim: acho positivo o fato de que o Ki Jong-Un impede a via da guerra para Donald Trump, que está "doidinho" de vontade de provocar um conflito para estender (e, segundo alguns) perpetuar) sua estadia no poder. Acho péssimo que tenhamos um doido com armas atômicas na mão na Coreia do Norte, claro, mas acho providencial que este doido esteja impedindo o doido-mor Donald Trumpde sair bem na foto, se estender no poder e, segundo alguns analistas sérios, criar um estado de exceção nos EUA e virar ditador. É bem diferente de perguntar se vejo algo bom e Hitler. Por favor, Não atribua a mim essa pecha, pois estou certo de que não a mereço. A situação de Kim Jong-Un e a de Hitler são bastante diferentes. Quer comparar Hitler com alguém? A pessoa certa é o Trump: qualquer coisa teria valido para impedir Hitler, e qualquer coisa vale para impedir Trump. Os dois são o mais visceral tipo de mal que a Humanidade pode produzir. Daí o comentário e o meu texto em si. Ademais, como o texto afirma (e desde que o publiquei, já vi pelo menos dois outros textos de gente bem mais competente do que eu, concordando com essa análise) Kim Jong-Un pode ser menos doido do que aparenta: ele quer garantir que não vai ser morto, e ao que parece está conseguindo. Mas quanto à sua análise, concordo: o ditador é alguém como qualquer outro, que assumiou uma parcela grande de poder, e exibe sua natureza. Não creio que todos sejamos assim, mas acredito, sim, que muita gente abusaria de tato poder, oprimindo seus semelhantes sem nem se preocupar a respeito. Obrigado pelo comentário, e bom fim de semana,