Não é de hoje que procuro soluções para minhas alergias e intolerâncias alimentares. Eu não conseguiria enumerar as tentativas de tratamentos a que me sujeitei desde a infância. De vacinas, bombinhas, inalações até simpatias, benzimentos e novenas. Na trajetória dessa procura por solução, acumulei os mais variados conhecimentos e interpretações a respeito do assunto. Creio que minha forma de encarar essa pretensa fragilidade física tenha sido alimentar minha curiosidade insaciável a respeito da saúde.
Qualidade de vida tornou-se um tema recorrente em minha vida. Comecei a devorar informações sobre vegetarianismo, fitoterapia, desintoxicação, meditação, acupuntura, medicina chinesa e outras. Cortei glúten e leite de minha dieta. Comecei a fazer pilates. Passei a desejar abraçar uma árvore e caminhar sobre a grama molhada pelo orvalho. Comecei a ter ideia fixa a respeito de como mudar de meu apartamento para uma casa com quintal. Ah, que delícia! O contato com a natureza. Ter minha própria horta. Colher alface para fazer minha salada orgânica. De volta à natureza! Esse é o lugar dos humanos. Por isso, estamos todos tão doentes, estressados, deprimidos, em crises de pânico. Abandonamos nossas origens.
Em minhas reflexões regadas a clorofila, pergunto-me: por que será que nos afastamos tanto da natureza? Ela é tão sábia! Analise o corpo humano: a máquina mais inteligente do mundo. Nossos órgãos estão interconectados por sistemas fantásticos que alimentam e oxigenam cada célula. Temos um sistema interno de comunicação que é capaz de mobilizar todo um exército de células de defesa dispostas a restabelecer nossa imunidade. O que nos leva a tantas doenças é nosso modo de vida. Se vivêssemos de forma mais natural, seríamos mais saudáveis e mais felizes. Nosso organismo já é perfeito. Não precisaríamos interferir em seu funcionamento.
Depois desse profundo mergulho “naturalizante”, retorno à superfície da minha realidade. Sei que todo esse discurso “natureba” é muito tocante. Como eu mesma confessei: sou bastante afetada por ele. Só que a natureza humana não é nada natural. Não! Não estou querendo fazer graça com esse trocadilho. Estou querendo propor uma reflexão bastante séria. A partir do momento que resolvemos transformar ossos, pedras e cipós em artefatos que nos facilitassem a vida, trouxemos à tona nossa natureza artificial.
É isso mesmo: o ser humano é naturalmente artificial. Preste atenção às palavras: artefatos, artificialidade, arte, artesanato. Sabemos que são palavras que nos remetem às atitudes humanas. Até podemos identificar alguns artifícios e artimanhas praticados por outras espécies, mas macacos continuam pulando de galho em galho; as aves continuam batendo as asas; os peixes continuam movimentando suas guelras. Adaptando a fala do Prof. Clóvis de Barros Filho, eu diria: na natureza, enquanto o vento venta; o sapo sapeia e a girafa girafeia, o ser humano fica inventando artefatos. A verdade é que não queremos fazer parte da natureza, queremos dominá-la!
E temos uma explicação para essa nossa natureza nada natural: Epimeteu desviou nossos presentes enviados pelos deuses! Explico. Em uma das muitas versões da mitologia grega, os irmãos Prometeu e Epimeteu, teriam ganhado de seu pai – um dos deuses do Olimpo – uma grande cesta com as mais variadas dádivas a serem distribuídas aos seres mortais viventes da terra.
Epimeteu, muito ansioso, adiantou-se, apoderando-se da cesta. Começou a atribuir as dádivas aos animais – sua predileta criação. O voo para as aves; o nado para os peixes; a velocidade para os felinos; a altura para as girafas; dentes afiados aos ursos; estômagos potentes às hienas; sobrevida em lugares extremos e assim por diante. Em sua empolgação, Epimeteu deu-se por si quando já não restava mais nada na cesta. Todas as dádivas haviam sido distribuídas somente aos animais, não sobrando nenhuma para os humanos.
Prometeu ficou furioso com seu irmão, pois como seria a vida dos humanos sem nenhum atributo divino? Dependem dos cuidados de sua mãe por anos a fio. Sua pele não é suficiente para protegê-lo. Não sabem voar. Não sobrevivem imersos na água. Seus dentes não são tão afiados e suas unhas não se parecem nada com garras. Sua audição e olfato são fracos. Sua visão é curta. Que criatura mais desprovida de condições para sobreviver! Assim, por sua preferência pelos humanos, Prometeu rouba o fogo do Olimpo para dar-lhes de presente.
O fogo simboliza a racionalidade, inerente ao ser humano. Dotado de razão, essa criatura consegue criar, artificialmente, todos os recursos que lhes faltaram por terem sido distribuídos aos animais. O homem inventou o avião, o submarino e o metrô – sobrevive no ar, nas profundezas da água e no interior da terra. Não precisa de dentes afiados nem de garras: ele criou o moedor de carne. Não precisa de um estômago potente: ele criou o antiácido. Não precisa de pelos espessos: ele criou a moda. É, parece que a natureza ficou para os animais e a artificialidade ficou para os humanos – donos das maiores artimanhas já praticadas!
Com ou sem a ajuda da mitologia, parece-me inevitável ao ser humano a vontade infinda de controlar a vida. Ele adora brincar de Deus. Na verdade, muitas vezes, dá a impressão de que realmente se julga Deus. E, quando não toma o seu lugar, identifica-se como seu próprio filho, só que um filho que não herdou exatamente toda a sabedoria do pai (eu diria). As criações humanas têm desequilibrado bastante o planeta…
Mas até que ponto posso recriminar a espécie da qual faço parte? Eu usufruo de cada artificialidade desde que levanto, até a hora de dormir e, dormindo também! De que estaria eu disposta a abrir mão para me reconectar à “naturalidade da natureza”? Já ouvi várias histórias sobre eu superar minhas alergias seguindo uma dieta rigorosa, com produtos 100% orgânicos, morando em ambiente sem poluição e isentos de qualquer produto químico, vestindo-me de roupas 100% algodão, bebendo água diretamente escoada da fonte alcalina, meditando por 20 minutos duas vezes por dia, dormindo pelo menos oito horas sem interrupção, no completo escuro e completo silêncio. Está bem! Só peço algum artefato que me ajude a adaptar-me a esse estilo de vida tão natural.
Com essas ideias todas circuitando minhas sinapses, fui pega pela fala do Prof. Pondé no YouTube. Eu recomendo! (XQtQRWEHfm4&t=2604s). Durante esse bate-papo no Café Filosófico da TV Cultura, transportei-me com ele em uma viagem para o futuro (talvez, mais próximo do que imaginamos). Ele nos propõe a seguinte realidade: ápice da biociência. Época em que a manipulação genética seja tão corriqueira que fazer filhos sexualmente será algo incompreensível. Haverá planos de saúde prevendo a técnica; governo apoiando com programas de incentivo – afinal de contas, a eugenia pode diminuir os gastos públicos com saúde, não é mesmo?
Então, dentro desse cenário imaginário (e, não foi imaginado do nada), um casal se coloca como defensor do método natural de fertilização. Talvez, quem sabe, teriam argumentado: afinal de contas, a natureza é sábia! Não podemos contrariá-la. A fecundação natural é um milagre. A combinação genética deve ser manipulada por Deus e não pelo homem!
Dessa crença “naturalística”, a mãe concebe uma criança de rosto harmônico. Só que uma das perninhas apresenta má-formação – problemas congênitos. Mas, o que importa? Ela será amada do mesmo jeito! Ela já é especial por ter nascido (só que não)!
Inserida em uma sociedade de cultura eugênica, a criança passará não só pela discriminação que outras como ela já passam em nossa atualidade. Nesse futuro cenário imaginário, a criança, já menino, poderá culpar declaradamente seus pais por não poder praticar esportes como os amigos. Ele os culpará por não poder contar com todos os recursos que a excelência genética poderia lhe proporcionar. Os pais, na tentativa de argumentar, dizem que o sofrimento pode levar o ser humano à evolução interior. O filho então responde: Puxa, mas isso é o que vocês acham. Só que passaram a bola pra mim! (Esse contexto imaginário foi uma adaptação que fiz das palavras do Prof. Pondé. Depois, eu soube que há muito em comum com a narrativa do filme Gattaca https://www.youtube.com/watch?v=qwG0gjn21OM).
O que dizer…? O que pensar…? Como seria…? Como será…?
Não quero atacar qualquer tipo de crença – principalmente as religiosas. Quero apenas propor uma reflexão sobre vivermos em uma cultura artificial. Até porque, existiria uma cultura natural? A própria arte é pura manifestação cultural.
De qualquer forma, uma das minhas réplicas ao dilema proposto seria: numa sociedade tão cibernética, o corpo físico ganharia potencial “Lego”. Ou seja: qualquer parte poderia ser substituída por uma prótese materializada em uma impressora 3D mantida no escritório de casa. Assim, discriminação pelo biotipo não deveria existir, pois encontraríamos pessoas com uma das pernas em modelo 2.0 e a outra em 3.0. Um abdômen com touch screen e um diafragma original. Talvez, os dilemas mais sérios pudessem ser outros. Mas, sob os mesmos ditames da natureza artificial do ser humano: poder, controle e vaidade.
E então? Eu viraria uma ermitã para curar-me de minhas alergias? Não, obrigada! Ficarei no aguardo de um chip que será implantado em meu sistema imunológico.
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Foto: Pedro Lalli
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