Em meu texto da semana passada, eu falei sobre o medo; neste, falarei sobre a morte. Não. Não estou em depressão. Apesar de serem temas que, geralmente, tentamos evitar, serei ousada ao convidar você, meu leitor, minha leitora, para embarcar comigo em outra viagem para buscarmos mais perguntas.
A morte pode ser pensada sob diversos pontos de vista: daquele que perde um ente querido; daquele cujo ente perdido não era tão querido assim; daquele que não a encontrou quando a procurou; daquele que não a procurou e foi encontrado por ela, dentre outros.
Se você estiver me perguntando como poderíamos refletir sobre a morte do ponto de vista do morto, eu diria que prefiro me abster dessa discussão: além de não ter repertório suficiente para versar a respeito, não pretendo criar polêmicas (pelo menos, não aqui, nem agora).
Eu começaria confessando que sempre tive uma tendência a “me fazer de morta” diante da morte. Compartilho da mesma opinião de Woody Allen (cineasta norte-americano): “A minha relação com a morte é sempre a mesma: sou fortemente contra”. Eu antipatizo com a morte, seja por minha covardia ou porque fui contemplada (até o momento) pelos dizeres daquele mestre da fábula zen. Se você não a conhece, acho que vale a pena conhecer:
Um homem muito rico pediu a um mestre zen um texto que o fizesse sempre lembrar o quanto era feliz com a sua família.
O mestre zen pegou um pergaminho e, com uma linda caligrafia, escreveu: “o pai morre. O filho morre. O neto morre”.
“Como?”, disse furioso, o homem rico. “Eu lhe pedi alguma coisa que me inspirasse, um ensinamento que fosse sempre contemplado com respeito pelas minhas próximas gerações, e o senhor me dá algo tão depressivo e deprimente como estas palavras?”
“O senhor me pediu algo que sempre lhe fizesse lembrar a felicidade de viver junto à sua família. Se o seu filho morrer antes, todos serão devastados pela dor. Se o seu neto morrer, será uma experiência insuportável”.
“Entretanto, se sua família for desaparecendo na ordem em que coloquei no papel, isso trata-se do curso natural da vida. Assim, embora todos passem por momentos de dor, as gerações continuarão, e seu legado demorará muito”.
Pois é, a tal ordem natural pode sim ser fonte de felicidade, no entanto, não há mestre zen que possa nos dar essa garantia na vida real.
A morte nos põe “goela abaixo” uma rescisão de contrato sem qualquer aviso prévio, muitas vezes interrompendo-nos no ápice de nossas realizações.
Talvez, devêssemos fazer como os animais que, sendo irracionais, vivem na plenitude de sua própria existência. Creio que eles compreenderiam facilmente o pensamento do filósofo da Grécia Antiga: “A morte é uma quimera: porque enquanto eu existo, ela não existe; e quando ela existe, eu já não existo. (Epicuro, 341 a.C. – 270 a.C.)
Não é que é verdade? Se eu estou vivendo, para que pensar na morte? Quando ela chegar, eu nem estarei mais aqui! A não ser por um detalhe: a morte é a outra metade da vida e, por isso, estarão sempre juntas…
Se você acha que viajei demais, pense comigo: o que acontece com as folhas que caem no solo e apodrecem? Transformam-se em alimento para que toda uma nova vida possa surgir. A vegetação se renova assim: da morte, surge a vida, que, por sua vez, leva à morte.
E, se você conseguiu ler meu texto até aqui, acho que terá fôlego suficiente para irmos um pouco mais adiante: você considera a morte apenas em seu aspecto físico? Se a resposta for um belo “não”, as chances de continuar comigo serão grandes. Se a resposta for um lamentável “sim”, eu desafiaria você a irmos até o final: depois, escreva para contestar-me, está bem?
Como diria o filósofo da Grécia Antiga, Sócrates, “a morte é a musa da filosofia”. E eu diria: ao filosofarmos, acabamos aprendendo com os sinais da morte. Não me refiro especificamente à morte física, mas às nossas mortes em vida.
Você já reparou como a morte nos acompanha o tempo todo? Um ditado popular, diz: começamos a morrer assim que nascemos. Trágico? Pessimista? Dramático? Não, apenas o ciclo natural da vida. Calma! Eu também não vejo a morte assim com tanta naturalidade. Acho que é por isso que a morte nos acompanha durante a vida: para que nos acostumemos com a ideia.
Para não ser tão chocante, assim como em doses homeopáticas, a morte vai se apresentando sob diversas formas de perdas. Quando bebês, nossos primeiros dentinhos nascem e o peito materno é substituído por colherinhas plásticas. Quando crianças, nossos brinquedos se quebram. Quando adolescentes, nossos sonhos são frustrados. Quando jovens, nossos corações são partidos. Quando adultos, ficamos desempregados. Quando idosos, nossa agilidade se esvai.
Quando releio esse parágrafo anterior, tenho vontade de seguir a recomendação de Epicuro. No entanto, minha razão acaba dando ouvidos para Montaigne (filósofo, 1533-1592): “Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver”.
Se a vida e a morte são mesmo duas faces da mesma moeda, há uma grande chance de encontrarmos, atrás das perdas propostas pela morte, também grandes ganhos. Por que não?
Se a morte é o fim de um ciclo, que venha o próximo! Cada perda proposta pela morte à nossa vida é para nos ensinar o desapego. Afinal, como podemos partir para o novo se não soltarmos o que já se foi? Deixemos ir aquilo que já atuou em nossa vida. Não podemos levar conosco o degrau que nos apoiou para chegarmos ao degrau acima.
Puxa, se eu pudesse fazer alguma recomendação…
Sobre a morte??? Acho que não! Mas, quem sabe eu possa fazer sobre a vida?
Quando bebê, desapegue-se de seu leitinho materno e experimente frutas amassadas. A estranha textura, escorregando em sua língua trará sensações incríveis.
Quando criança, desapegue-se do brinquedo quebrado. Você perceberá que há brincadeiras deliciosas que podem ser experimentadas sem brinquedos.
Quando adolescente, desapegue-se dos sonhos que não se realizaram. A vida real é tão cheia de surpresas que você nem sentirá falta deles.
Quando jovem, desapegue-se dos amores que se foram. Eles são como sorvetes em casquinha murcha: fique apenas com o doce sabor da massa.
Quando adulto, desapegue-se do emprego que perdeu. Para ser capaz de montar um alazão que passa selado a duzentos por hora, você deverá estar a pé.
Quando idoso, desapegue-se de sua agilidade. Você já percebeu o que os filmes fazem para valorizar as cenas? Colocam-nas em câmera lenta. Valorize cada momento de sua vida.
Se essas recomendações não lhe fizerem sentido, leia sobre o “eterno retorno”. Talvez, você precisará de mais vidas para aprender sobre a morte.
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