Era uma raiva atormentada, cotidiana e forte pela moto, aquela moto. A outra, a infeliz. O rótulo para aquilo tudo era o medo. Essa sensação sem explicação que paralisa a gente e faz com que não tenhamos permissão de experimentar o novo, que é algo somente permitido, ou não, por nós mesmos. Uma constatação simples, óbvia e tão ignorada.
O mais maluco é que se dá tanto poder ao medo, que o bicho cresce se achando mesmo invencível. E como o danado é inteligente! Coloca culpas, arruma padrões, pessoas, atitudes, desconfianças, tudo para justificar, argumentar e oficializar sua estada naquela alma. É tão convincente e persuasivo, que a alma chega mesmo a pensar que é aquilo ali, entende? Bizarro.
O medo, entretanto, não contava com um poder inusitado de uma alma destemida: a coragem do autoconhecimento. Já no início desse caminho, a tal alma viu o bicho medo ficar tonto de tão perdido. Sem identidade, o medo se isolou num canto, fraco. É que o autoconhecimento sabe domar o medo e não o alimenta. Se não alimenta, não cresce, não é mesmo? Enquanto a alma caminha em se conhecer, com o medo ali quietinho, mas ainda existindo, muitas oportunidades se apresentam. Uma a uma, novidades surpreendentes, inusitadas, originais. E não é que a alma nem sabia da existência disso tudo, ali dentro dela mesma?
O primeiro passo é experimentar. Sim, o medo ainda está ali, mas agora é o medo do ridículo, de não dar conta, do julgamento que acarretará tal mudança, se acontecer e se não acontecer também. A vontade de mudar é tão descontrolada, insana, que a alma se joga em experimentar. Foi assim no relacionamento amoroso entre ela e a moto. Um ódio, que no fundo era esse medo bicho. Pequenas experiências, delicadas, sutis, carregadas ainda de tensão e exaustão. Mudar pode mesmo exaurir, mas passa. Só que o autoconhecimento, um tipo de bicho do bem, quando começa, não para mais. Ele busca muito, tudo, sempre. Como isso é incrível! Ao caminhar nisso, a alma decidiu fazer do medo uma lembrança apenas. Não é coisa que acontece. Veja bem, é coisa que se faz, que se busca, se trabalha muito e incessantemente. Acolher a própria sombra é mesmo para os fortes. Aconteceu para a relação entre ela e a moto, e foi lindo.
Não há muito que explicar racionalmente para essa superação de ódio transmutado em amor, mas há que se sentir algo parecido para poder compreender e sorrir com essa façanha da alma dela, assim por empatia. Uma vitória íntima sem igual!
Hoje ela entende tanta coisa do mundo de outra alma. A alma dele, do homem amado, que do jeito dele tanto soube esperar por ela nessa batalha de medos invisíveis, sem nem saber qual seria o desfecho. Do jeito dele, a alimentou com ternura, paciência e desafios amorosos. Ela decidiu se desafiar. O amor por ele e o prazer que sentia em ver o prazer dele naquilo foram fatores decisivos para ela se lançar nessa jornada. E como foi bom!
Como é bonito que ela, finalmente, possa provar, por empatia, do prazer dele. Melhor, desfrutam agora do mesmo prazer. O vento no rosto, o silêncio a dois numa velocidade tranquila e aventureira. As mãos na cintura aconchegante e a certeza de poder confiar naquele amor. As paisagens únicas, as sensações inesquecíveis que talvez se tenha apenas em cima de uma moto. É preciso muito amor para ser paciente com o bicho medo, com o seu e com o do outro. Muita paciência com as batalhas internas, as suas e as do próximo. Uma dose analgésica de entrega e confiança em demasia.
Confiança não se adquire, se conquista. Amor não se conquista, se sente, se é. E é só.
Belíssimo texto, Dani!
Gratidão, Carlinha! Um beijo!