O que você sentiu ao ler o título deste texto? A sensação te levou à vontade de ler ou de não ler? Atração ou repulsão? Curiosidade ou desinteresse? Aposto que a ideia do medo desperta as mais diversas emoções nas pessoas, seja em função de suas crenças, educação, ambiente, história de vida.
Excluindo-se aqueles que têm prazer ao sentir medo, como os aficionados por filmes de terror, o medo é, geralmente, uma emoção desagradável não só aos seres humanos como também aos animais. Trata-se de um gatilho para a fuga ou para o enfrentamento. Talvez, seja por isso que o medo carrega em si algo paradoxal: ele pode levar o indivíduo a desistir ou a superar.
Os maiores pensadores da humanidade se debruçam sobre esse tema desde sempre. A ciência tenta fazer seu diagnóstico por meio das diversas áreas do conhecimento, seja a Linguística, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, dentre tantas outras. Na verdade, tentamos compreender o medo para podermos dominá-lo. O medo desperta nossa empáfia em querer controlá-lo e nossa consciência da necessidade de respeitá-lo: eis sua natureza ubíqua.
O medo é intrínseco às criaturas viventes. Ele está tão incrustrado em nossa constituição que tentar extirpá-lo pode significar nossa própria destruição.
E, mesmo sendo parte de nós, é tão difícil chegarmos perto dele. Grande parte de nós tem medo do medo…
Refletir sobre essa emoção, que mais parece uma entidade, pode ser amedrontador. Mas suspeito de que, chegando mais perto, possamos ouvir com mais clareza a voz do medo. Quem sabe, interpretar melhor seu sussurro uivante.
Quando comecei a pesquisar sobre um embasamento para essa nossa reflexão, deparei-me com a obra de Zygmunt Bauman, Medo Líquido (Editora Zahar, 2008). O autor acumulou repertório de vida suficiente para falar de medo: viveu ativamente a 2ª. Guerra Mundial. Sua atuação como sociólogo foi brilhante até janeiro de 2017 quando a morte o levou.
Tenho de confessar que, na verdade, fiquei um tanto quanto pessimista ao ler os primeiros parágrafos apresentados na Introdução do livro. De qualquer forma, eu nunca descartaria as ideias de Bauman. Por isso, trago excertos de sua obra.
As considerações do filósofo polonês, frente ao medo da humanidade Pós-Moderna, resultam do que ele chama de Modernidade Líquida. Esse conceito refere-se a uma Era em que as relações humanas não são concretas. Nossas crenças, nossos valores e nossos comportamentos são escorregadios. Os mais idosos, como o próprio autor, tendem a demonstrar saudade em relação a uma época em que os contratos sociais (explícitos ou não) se davam pelo “fio do bigode” – os jovens não devem fazer ideia do que essa expressão significa. As relações eram mais sólidas, mais duradouras, mais confiáveis. É desse cenário “aquoso”, sem forma, incontrolável e impalpável da Modernidade Líquida, que surge o “medo líquido”.
Em comparação aos animais, o homem tem a desvantagem de poder pensar sobre o medo. Creio que apenas o ser humano consiga somar a insegurança e a vulnerabilidade aos seus medos. O potencial para enfrentar o medo é o mesmo para que nós criemos novos medos. Como se não nos bastasse o medo de ameaças reais, conseguimos criar “medos apêndices” (os “medos derivados” mencionados por Bauman). E, assim, penso eu, chegamos a uma estatística assustadora de Síndrome de Pânico em nossa sociedade.
O ‘medo derivado’ é uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita como o sentimento de ser suscetível ao perigo: uma sensação de insegurança (o mundo está cheio de perigos que podem se abater sobre nós a qualquer momento com algum ou nenhum aviso) e vulnerabilidade (no caso de o perigo se concretizar, haverá pouca ou nenhuma chance de fugir ou de se defender com sucesso; o pressuposto da vulnerabilidade aos perigos depende mais da falta de confiança nas defesas disponíveis do que do volume ou da natureza das ameaças reais). (BAUMAN, 2008, p.9)
Os medos humanos podem ter origem nas fontes mais concretas como as que estão associadas à nossa saúde física e também as mais subjetivas associadas à nossa psique ou à nossa vida social.
Os perigos dos quais se tem medo (e também os medos derivados que estimulam) podem ser de três tipos. Alguns ameaçam o corpo e as propriedades. Outros são de natureza mais geral, ameaçando a durabilidade da ordem social e a confiabilidade nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego) ou mesmo da sobrevivência no caso de invalidez ou velhice. Depois vêm os perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo – a posição na hierarquia social, a identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais geral, a imunidade à degradação e exclusão sociais. (BAUMAN, 2008, p.10)
Nossos medos podem surgir, concretamente, de eventos como, por exemplo, uma doença; a perda de um ente querido; o desemprego etc. Segundo a visão de Bauman, por sua natureza líquida, os medos da Pós-Modernidade acabam “escorrendo” da fonte em que foram criados (o desemprego, por exemplo) para um setor de nossas vidas que não deveria ter qualquer relação (como o casamento, por exemplo).
Mas numerosos estudos mostram que, nas consciências dos sofredores, o ‘medo derivado’ é facilmente ‘desacoplado’ dos perigos que o causam. As pessoas às quais ele aflige com o sentimento de insegurança e vulnerabilidade podem interpretá-lo com base em qualquer dos três tipos de perigos – independentemente das (e frequentemente em desafio às) evidências de contribuição e responsabilidade relativas a cada um deles. As reações defensivas ou agressivas resultantes, destinadas a mitigar o medo, podem assim ser dirigidas para longe dos perigos realmente responsáveis pela suspeita de insegurança. (BAUMAN, 2008, p.10)
O resultado disso? Afastamento de nosso discernimento e consequente perda da lucidez em relação ao que teria originado determinado medo. Ao invés disso, criamos insegurança e vulnerabilidade em setores de nossas vidas que não teriam sido a origem das ameaças reais.
Independentemente da natureza líquida ou sólida do medo; de sua origem; do trânsito das emoções que ele pode gerar, creio que nunca devemos nos esquecer de seu caráter dual: ele pode nos estagnar ou nos impulsionar.
Estagnamos diante do medo quando nos deixamos sugar por problemas sobre os quais não temos controle. Por outro lado, creio que nos motivamos a enfrentar as causas do medo quando são geradas por fontes que nos sejam controláveis. Talvez, aprendamos a lidar com nossos medos quando conseguirmos discernir os fatores externos incontroláveis (em nosso próprio ambiente) e os fatores internos controláveis (em nossa psique).
Em seu vídeo intitulado Controle e Escolhas, o Prof. Pedro Calabrez (mencionado frequentemente em meus textos) discorre sobre Controle e Escolhas.
Creio que o pensamento estoico, apresentado pelo professor, possa nos inspirar a lidar com nossos medos:
A principal tarefa na vida é simplesmente esta: identificar e separar questões de modo que eu possa dizer claramente para mim mesmo quais são externas, fora do meu controle, e quais têm a ver com as escolhas sobre as quais eu, de fato, tenho controle.
Se eu pudesse listar algumas recomendações, ao concluir este texto, elencaria: (1ª.) avalie, lucidamente, qual é a real fonte de seus medos; (2ª.) tenha sensatez para não permitir que o medo crie ameaças falsas; (3ª.) seja capaz de identificar se as causas do medo são de fontes controláveis ou não; (4ª.) demonstre lisura suficiente para não culpar ninguém pelos medos que foram gerados por você mesmo; (5ª.) atue de forma contumaz sobre as causas controláveis de seus medos; (6ª.) desapegue-se rapidamente de ideias ameaçadoras cujas origens não estão sob seu controle.
Se eu tivesse que fazer um alerta final, eu usaria as palavras de meu grande amigo Ruy Flávio de Oliveira:
“Entenda que o medo é uma característica evolutiva (no sentido Darwiniano do termo) desejável. Prá lá de desejável, aliás, pois foram aqueles nossos ancestrais que, ao perceber um barulho na ravina alta, ao invés de dar vazão à curiosidade, deram velocidade aos pés e saíram correndo na direção contrária. Os curiosos foram comidos pelo leão, e os medrosos viveram para passar seus genes para frente. Respeite o medo, pois ele busca te preservar, é teu amigo, e um dos mais antigos e fiéis companheiros de jornada da Humanidade.”
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