Se alguém perguntar qual a figura política do passado remoto ou recente da História poderia salvar o Brasil da situação triste de crise ética em que nosso país se encontra, penso que pouquíssimos apontarão para o ex-governador e ex-prefeito Paulo Maluf. Aqueles que apontarem o ilustre político certamente não são portadores, ao mesmo tempo de
- Comportamento ético;
- Informação histórica;
- Sanidade mental.
Um desses três quesitos fatalmente estará em falta no indivíduo que tem o Maluf como solução para alguma coisa.
Ainda assim, o comportamento de muitos cidadãos que se propõem a analisar nosso status quo é afirmar algo plenamente equivalente à proclamação do comportamento de Maluf como o ideal para a solução dos problemas do país.
À imagem de Maluf incorporou-se extraoficialmente (óbvio) o bordão “rouba, mas faz”, pelo dinamismo com que realizava obras e também com que essas obras ultrapassavam os valores orçados inicialmente sem motivo aparente. Exemplo é o Túnel Jânio Quadros, que liga ambas as margens do Rio Pinheiros. À época, a obra custou US$178 milhões, enquanto a ponte Bernardo Goldfarb — que serve ao mesmo propósito — custou pouco mais US$40 milhões. Ou seja: para servir ao mesmo propósito — atravessar o Rio Pinheiros — foram gastos 4 vezes mais recursos. Tudo bem que um túnel sob um rio necessite de mais tecnologia e, portanto, custe mais caro. Mas a obra estava parada havia anos, e o dinheiro empregado em sua finalização teria dado de sobra para se construir uma ponte no local, deixando a empreitada subterrânea lacrada, como muitos à época afirmaram que era o que deveria ter ocorrido.
É importante notar que, apesar de Maluf ter sido o último a ter o bordão “rouba, mas faz” inapelavelmente incorporado à sua imagem, não foi por sua conta que o referido bordão foi criado. Essa “honra” cabe a Adhemar de Barros, cunhada por seu adversário político Paulo Duarte, como conta Carlos Laranjeira em seu livro A Verdadeira História do Rouba Mas Faz. Ainda assim, pela proximidade e pela “verve”, Maluf é o herdeiro de fato e de direito do bordão.
O espírito dessa expressão não é novo, sendo uma corruptela do pensamento de Maquiavel “Os fins justificam os meios”. Esta máxima da obra O Príncipe, por sua vez, é uma repaginação de uma frase da Medeia, de Sêneca: “Cui prodest scelus, is facet”, que pode ser traduzido por “ainda que tenha cometido um crime”. Nessa versão de Sêneca, o “ainda que” ou “embora” tem por espírito uma ação que embora seja crime, é justificada.
Trata-se de uma relativização bastante perigosa, porque o “faz”, a ação, é julgado como sendo justificativa para o crime, no caso o “rouba”.
O cara pode até roubar o recurso público, desde que faça alguma coisa para o público com algo desse recurso. Na cabeça de quem pensa que esse raciocínio está correto, a ação criminosa é preferível à inação responsável. Esse arrazoado é tão patentemente furado e tão brutalmente perigoso, que não merece nem meu tempo para rebatê-lo, nem o seu para ler essa replica. Basta dizer, para os que pensam que “tá certinho!”, o seguinte: larga a mão de ser imbecil. É por conta desse tipo de raciocínio que o país não sai da lama em que se encontra há 517 anos.
Tenho, infelizmente, ouvido esse tipo de justificativa, a torto e a direito na história recente. “Que que tem a privataria do FHC? Pelo menos ele acabou com a inflação!” “Que que tem os escândalos da merenda e do metrô? Olha tudo o que o Alckmin fez pelo estado!” “Que que tem o Doria vender dados privativos do cidadão para empresas estrangeiras? Pelo menos ele acabou com a fila da saúde”.
Mas até aí, o pessoal de centro ou de direita adotar esse tipo de discurso, não me espanta (e faça-me o favor de não me vir com aquele lero-lero de que o PSDB é de esquerda que isso não cola nem aqui nem na Cochinchina). É o esperado para quem tem uma “agenda de progresso”. “Progresso a qualquer custo”, entenda-se.
O que me entristece é que de uns tempos para cá, venho ouvindo coisas do tipo “pelo menos o Lula fez muita coisa pelo Brasil, ao contrário dos demais.”
Que dó. É muito triste ver o pessoal de esquerda — que construiu seus partidos e seus mandatos sobre uma agenda que buscava a justiça, e nunca fugiu do bom combate contra o Maluf — se entregar tão gostosamente a um dos bordões mais calhordas, mais antiéticos, mais cínicos de todos os tempos. Diante das evidências gritantes de que Lula, Dilma & Cia. em nada diferem de seus adversários de outros partidos que também não hesitam em se locupletar em qualquer chance que consigam, o discurso (dos não acometidos de fundamentalismo religioso ou de afecções neurológicas) muda para algo nessa linha. “Não tem outro jeito. Se você souber de alguma alternativa, me avise.”
Como se o Petrolão fosse um preço justo a se pagar pela tão propalada “justiça social”.
Para quem gosta de números, vamos lá: a Odebrecht admite que tinha um departamento de propina com orçamento anual de R$10 bilhões (um orçamento invejável para 56 países de nosso planeta, nesse ano de 2017). Suponhamos que as demais empreiteiras envolvidas no escândalo tenham orçamentos conservadoramente menores, algo na linha da metade desse valor. OAS, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e OTC, cada uma com um propinoduto anual de R$5 bilhões. Conservadoramente teríamos mais 20 bilhões anuais de propina, que somados aos 10 da Odebrecht perfazem 30 bilhões de reais. Gastos anualmente com propina. 30 bilhões.
30 bilhões.
De onde sai esse dinheiro? Isso: do seu bolso. Dos seus impostos. Ah, e dos hospitais, universidades, estradas, hidrelétricas, portos e outros investimentos que não são feitos ou ficam precários no país. E isso sem falar que se eles gastam isso ilicitamente, imagina o que elas ganham ilicitamente por distribuir essa dinheirama. Imagina o quanto podem cobrar mais caro pelas obras; o quanto podem enfiar de gastos desnecessários à guisa de “ajustes” e/ou de “adequações” nos projetos; o quanto fica mais fácil encontrar justificativas para aumentar preços já acordados, engordando seus recebíveis.
Não, seu espertinho disfarçado de petista, peessedebista, peemedebista, psolista, demista: o “rouba” não justifica o “faz”. O progresso de São Paulo não justifica o roubo das merendas. A estabilidade inflacionária não justifica a privataria. A Olimpíada e a Copa do Mundo não justificam servidores públicos cariocas em estado de calamidade há mais de seis meses. O “nunca antes na história desse país” não justifica o Mensalão. O Bolsa Família não justifica o Petrolão. Nunca.
Se você não enxerga isso, você tem um problema sério: virou malufista.
Rapaz, bom dia. Não é que descobri que tenho um Malufinho dentro de mim? Realmente torna-se um pouco melhor, ou o menos pior, mas eu diria mais, quase aceitável (e aí mora o grande perigo) o quem errou, mas fez, roubou, mas cumpriu... Obrigado pelo alerta vermelho anti-maluf!
Pois é, Jaylei. Ontem li um disparate (aliás, vários): o Gilberto Dimenstein defendendo a eleição indireta do FHC para conduzir o Brasil depois da queda do Temer. Quase vomitei. Depois o Jabor falou na CBN que a gente tinha que tomar cuidado e pensar que a roubalheira pode ser preferível ao caos que corremos o risco de ver tomar conta de tudo. Malufismo puro. E isso sem falar que esse é o discurso de muitos lulistas defendendo sua volta mesmo diante das evidências e delações, sob o argumento de que "pelo menos ele fez alguma coisa pelo Brasil." O que vejo é que temos uma oportunidade ímpar de pelo menos começar a limpar esse país, e esse tipo de raciocínio é empecilho para a mudança para um país mais justo, mais ético. Bom fim de semana procê!
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