Ser funcionário público tem uma conotação diametralmente oposta no Brasil e nos EUA. Enquanto no Brasil o indivíduo (na vasta maioria dos casos) ingressa na carreira pública por conta da possibilidade de altos salários, estabilidade no emprego, segurança para o resto da vida e uma certa, digamos, “flexibilidade” para com a produtividade, na terra de Tio Sam a coisa é bem diferente. Por lá, o setor público paga notoriamente menos que o setor privado, as horas são longas, não existe estabilidade no emprego e a expectativa de produtividade é, no mínimo, tão grande quanto nas empresas. Em alguns casos, como nas agências de inteligência e nas forças armadas, a expectativa de produtividade é ainda maior, aliás.
Ah, outra diferença: por lá, nos cargos públicos de maior responsabilidade, há a expectativa expressa de apartidarismo, o que seria risível aqui no Brasil. Muito pelo contrário: por aqui, são justamente os partidos que indicam os ocupantes desses postos. Em suma, são posturas tão diferentes quanto água e óleo.
Essa compreensão é fundamental quando se lê o novo livro de James Comey, A Higher Loyalty (“Uma Lealdade Maior”, em tradução livre),o ex-diretor do FBI, despedido pública e histrionicamente pelo presidente Donald Trump.
Comey já havia protagonizado as eleições presidenciais de 2016 quando um anúncio de última hora sobre a reabertura do inquérito acerca dos e-mails de Hillary Clinton ainda é apontado por muitos como o evento que deu a presidência a Trump.
Após a exoneração pública, o ex-diretor do FBI, ex-procurador federal, pai de cinco filhos e casado há mais de trinta anos, se dedicou a escrever sobre o que pensa ser as características de um verdadeiro líder, e o resultado chegou às mãos do público no dia 17 de abril.
Na obra, Comey fala acerca de sua experiência profissional e de vida, trazendo à tona vários momentos em que foi submetido a características da natureza humana que denotam liderança ou, em muitos casos, a tirania, a covardia, o personalismo que tanto prejudicam os liderados por qualquer um que as exiba.
Mesmo que não soubéssemos qual o propósito do livro e a quem especificamente ele fala, seriam necessários apenas alguns poucos capítulos para entender: o livro é uma resposta direta e sincera a Donald Trump. Seria uma cartilha (caso o presidente se dedicasse a ler qualquer coisa em sua vida) que deixa absolutamente claro que Trump é o extremo oposto do que um líder deve ser.
Os pontos especificamente tocados por Comey em A Higher Loyalty, são:
- Mentira – segundo o autor, todos mentimos, mas um líder deveria tomar a necessidade da mentira com a maior gravidade, jamais sendo leviano com essa ferramenta. Quem mente adoidado, sem o menor cuidado para com a precisão dos fatos, inclusive chamando de fake newsquando suas mentiras são expostas? Trump.
- Bullying – mesmo tendo 2,03m de altura, Comey sofreu bullyingna juventude, e deve sua falta de empatia com suspeitos ricos e poderosos, enquanto promotor público, à ojeriza que sente por quem pratica bullyingem qualquer nível. Quem é o maior adepto do bullyingno Sistema Solar? Trump.
- Humildade – ao longo da carreira, Comey teve a oportunidade de ser liderado por gestores que incentivavam o crescimento de seus subordinados, deixando-os brilhar quando acertavam, e discretamente admoestando-os quando erravam. Em suas palavras, o líder tem de ser visto por suas ações, e não pelo culto pessoal à própria personalidade. Quem é o mais histriônico narcisista do planeta? Trump.
- “Honra” e “Respeito” – para falar acerca desses dois aspectos, Comey recorre aos casos que enfrentou contra a Máfia. Em todos eles, os mafiosos se conduziam por um código de “honra” próprio e torto: tudo pelos demais mafiosos, nada para o resto. A atitude de acolhimento para aqueles que abraçam a causa da Máfia se traduz em conivência e compactuação, ao que chamam de “respeito”. Ah, e os “negócios” se imiscuem com a família. A cosa nostraé “nostra”, justamente porque envolve quem dela se aproxima. Quem mistura o público e o privado, tem um senso absolutamente torto de honra, exige respeito por meio da truculência e, ao longo da vida de homem de negócios, usou mais de uma vez táticas da Máfia? Trump.
- Lealdade – aqui Comey não difere de inúmeros patriotas em qualquer país do mundo (ainda que os que mereçam esse título são raríssimos). Ao ingressar no serviço público, ele pôs o país em primeiro lugar. Seu senso de dever — segundo o relato — sempre veio à frente de qualquer interesse pessoal crença ou ideologia partidária. Sua lealdade, ainda segundo ele, é para com os EUA, e não para com qualquer ocupante de qualquer posto. Em determinado momento no início de 2017, ele foi convidado a jantar com o presidente, na Casa Branca, uma atitude no mínimo eticamente questionável, uma vez que o FBI deve manter total independência da presidência. O próprio Obama, que havia promovido Comey a diretor do FBI sabia disso e mantinha rigorosamente a distância que o cargo e a hierarquia demandam. No jantar — a dois, em uma sala reservada da Casa Branca — Trump foi ao ponto: solicitou explicitamente a lealdade de Comey não ao país, mas a ele, Donald Trump. Comey se comprometeu como sempre lhe dizer a verdade, e só. Em outras instâncias, Trump insistiu no assunto, e Comey sempre repetiu a resposta: seu compromisso seria com a verdade.
O resultado dessa negação à lealdade a Trump foi que, como vários outros ex-funcionário da Casa Branca, Comey descobriu que havia perdido o emprego por terceiros, no caso, por uma notícia na televisão. Trump não teve nem o cuidado de informar o então diretor do FBI de sua decisão, vazando a notícia para a imprensa.
Em A Higher Loyalty, Comey deixa claro o que todos os que conseguem analisar racionalmente o assunto já sabem de velho: Trump não tem condições de exercer a presidência da maior potência planetária com o respeito que o cargo exige.
O livro, deve-se ressaltar, está longe de ser isento. Comey é autolaudatório em todo o texto, mostrando vários bons exemplos de liderança e ética de sua própria “lavra”, nos momentos em que foi promotor assistente e mesmo à frente do FBI. Ele inclusive justifica sob o ponto de vista ético a decisão de reabrir o inquérito nos e-mails de Hillary Clinton a poucos dias da eleição. Mesmo que alguns não concordem com essa explicação, uma coisa fica clara: a atitude foi coerente com sua filosofia e com seu direcionamento ético. O objetivo não era atrapalhar Hillary (se bem que esse foi o resultado mais óbvio), mas sim preservar a isenção do FBI.
O livro é curto, sem grandes ginásticas mentais e nenhum requinte literário. Mas cumpre seu papel: demonstra com fatos e dados que Donald Trump está no diâmetro oposto de que deveria ser um líder.
Pena que vai ter o mesmo efeito de um livro escrito para mostrar a um porco como se vestir e se portar em um baile de gala.
Nesse quesito o "o monge fez o hábito" e supostamente, sempre fará, munido de um código de ética e moral que o fazem lutar pelos seus ideias, sejam eles agradáveis ou desagradáveis para outrem, porém uma coisa é bos de pensar, que é considerar o imperativo categórico de Immanuel Kant, que em muitas possibilidades nos fará mais felizes pela boa interação que podemos usufruir com o outro ser e o meio.
VErdade, Julino. Mas se tem uma coisa que está longe da cabeça de Trump, é Kant.