Na semana passada, um artigo na revista digital The Verge chamou minha atenção. O artigo afirma — já em seu título — que o filme de Steven Spielberg Jogador número 1 é melhor que o livro em que é baseado. Bom, li o livro em 2012 (e o reli no ano passado), e vi o filme na estreia. Minha conclusão? Sim e não, dependendo de quem você era na década de 1980.
Tanto o livro quanto o filme contam a história de Wade Watts, um jovem pobre residindo no equivalente de uma favela no ano de 2045, que se lança em uma aventura, em busca de um “easter egg” deixado em um gigantesco jogo online. O jogo foi projetado pelo gênio falecido James Halliday, e quem encontrar o tal “easter egg” leva como prêmio o controle da empresa, a mais valiosa do planeta.
A aventura, tanto no livro quanto no filme, tem a mesma estrutura: pistas deixadas por Halliday levam a chaves, que levam a outras pistas, e assim por diante. Quem encontrar as três chaves terá a oportunidade de encontrar o “easter egg”. Em ambos os casos, o bando de heróis adolescentes que coalesce em torno de Wade tem como oponente uma megacorporação de nome IOI, Innovative Online Industries, pulando de cabeça no clichê de Davi e Golias.
Ah, e em ambos os casos, o jovem Wade se apaixona, se decepciona, vence algumas, é derrotado em outras, fica deprimido, se supera, e por aí vai.
Para quem gosta de aventuras, de caças ao tesouro, e não está em busca de Umberto Eco (no caso do livro) ou de Ingmar Bergman (no caso do filme), é um prato cheio. Uma aventura daquelas que nos dá vontade de ser adolescente novamente.
O filme “melhora” o livro, penso eu, para aqueles espectadores que acharam Blade Runner 2049 (que já resenheiaqui no Confrariando) um filme lento, longo, com pouca ação. Jogador número 1, o filme, é rápido e abarrotado de cenas de ação, todas magistralmente arquitetadas e conduzidas pelo mágico Steven Spielberg, o que obviamente é desejável para boa parte de quem se interessa em ir ao cinema nos dias de hoje. O filme também muda a relação do expectador com as referências. No livro, a miríade de referências apresentadas por Ernest Cline, o autor, é composta por longas e detalhadas descrições de filmes, videogames e músicas da década de 1980, e os menos aficionados se veem, em alguns casos, lendo longas listas de coisas com as quais têm pouca (ou nenhuma) conexão. No filme, as referências devem ser pescadas nos poucos milissegundos em que aparecem na tela, e criam um jogo diferente: parar cena a cena na tela do computador (alguma das versões pirata disponíveis, nesse momento inicial do lançamento) e ir à caça. O site IGN publicou um artigoem que um pequeno vídeo lista nada menos do que 138 referências encontradas no filme. Na seção de comentários desse artigo, os leitores mostram que, por mais abrangente que seja a lista, nela faltam dezenas de outras referências visíveis no filme.
Em que pese eu ter gostado muito da produção cinematográfica, a vibeé bem diferente do livro, e se eu tivesse que escolher, ficaria com o livro, mesmo em detrimento da magia visual de Spielberg.
Ocorre que eu tinha 12 anos em 1980, e passei toda a minha adolescência e o comecinho de minha vida adulta naquela década. Tive a oportunidade de ver no cinema a maioria dos filmes referenciados no livro, e joguei vários dos games que Wade joga. E as músicas? Puxa, as músicas… Em suma, minha relação com as referências apresentadas no livro é pessoal e íntima e, em muitos casos, fiquei com vontade de sentar em um bar com alguns amigos e o autor Ernest Cline, só para jogar conversa fora sobre aqueles tempos. O cara certamente entende a gente, os nerds de óculos de fundo de garrafa da década de 80 (até porque, segundo o próprio, ele era um de nós).
O filme de Spielberg mantém a mecânica do livro, mas comete o grave erro (em minha humilde e provavelmente solitária opinião) de trocar todas as pistas, todas as referências da década de 1980, todos os filmes, todas as músicas, todos os videogames. Ainda que “Jump” do Van Halen e “We’re Not Gonna Take It” do Twisted Sister nos remetam à década de 80, o filme obviamente não se prende àquela década, e chove sobre o expectador referências das décadas de 1990, 2000 e 2010 (se bem que apresenta também algumas belas e assustadoras referências à década de 1970). Minha relação pessoal com a cultura pop dessas décadas mais recentes nem de longe é tão próxima, e os quarentões e cinquentões que forem ver o filme provavelmente vão ter a mesma sensação. Bem, não somos nem de longe a faixa etária a que o filme se destina.
Um motivo pessoal a mais torna o livro mais significativo para mim, em particular: o momento em que Wade encontra a segunda chave. Ao olhar para o que deveria ser a chave de jade, ele momentaneamente entra em pânico ao perceber que ela era, na verdade, prateada. Ele rapidamente percebe que não é o caso, a chave apenas está embrulhada em um papel alumínio, desses que envolvem doces e chocolates dentro da embalagem. Um simples pedaço quadrado de papel alumínio de um lado, e papel branco do outro, que deixa o jovem sem entender do que se tratava. Pois, naquele exato momento me veio um sorriso ao rosto: o herói da história podia até não saber, mas eu sabia. Eu havia desvendado a pista logo em sua primeira apresentação. Umas 30 páginas depois viria a confirmação de que eu havia acertado, e a sensação de desvendar uma pista tão importante em um livro tão bacana não tem preço. Tenho certeza de que inúmeros leitores no mundo todo, todos bem mais competentes do que eu, desvendaram esta e outras pistas apresentadas por Ernest Cline ao longo do livro. Eles e eu perdemos muito com a adaptação para o cinema, pois, apesar do banquete visual, nenhuma das pistas é realisticamente desvendável pelo expectador. No filme, deixamos de ser Indiana Jones encontrando a estátua e fugindo da pedra. Ao invés disso, nos tornamos passageiros em uma montanha russa com o tema dos filmes de Indiana Jones.
Mas isso não equivale, de maneira alguma, a dizer que Jogador número 1, o filme, é ruim. É, como já disse, um filme bacana, que nos coloca no meio da ação, e nos apresenta uma história imersiva e excitante. Recomendo muito a quem gosta de boas aventuras, bons efeitos, e reconhece os méritos de Spielberg.
Talvez minha pueril reclamação de que o filme remove tudo aquilo que me atraiu ao livro seja apenas mais uma inútil evidência do óbvio: estou ficando velho.
Excelente resumo, Ruy! Queria que você comentasse sobre um assunto que está fazendo as rondas no anglosfero. Comenta-se por aí que um dos problemas do filme é que agora é outro momento político em que a cultura nerd, pós-Gamer Gate e pós-Trump, não parece tão inocente e fofo quanto no momento em que Cline escreveu o livro. Tem gente dizendo que Wade, agora, é o tipo de personagem que faz o espectador não só lembrar da nerdice dos anos ‘80, mas também de 4chan e os assassinos em massa que andam atirando na criançada nas escolas americanas. O que você acha?
Este é um excelente ponto, Thadd, e confesso que me incomodou um pouco no filme, mas acabei não comentando. Não acho que a personagem do Wade/Parzival, por si, gera esse tipo de impressão, mas o tratamento da personagem Art3mis certamente gera. No livro ela é tão conhecedora da trívia do Halliday e dos anos 80 quanto o Wade ou o Aech. Na verdade, como você lembrará, no livro ela chega na frente do Wade em mais de uma oportunidade, justamente por conta de seu conhecimento e empenho. Já no filme, tem algumas situações em que o roteiro a coloca abaixo do Wade na obsessão pelo jogo em si, e em alguns outros momentos ela fica totalmente admirada com o conhecimento dele, Wade, em um exemplo típico da trope da “starstruck damsel”, impressionada com o conhecimento de nosso herói. Isso certamente diminui a personagem (e, com certeza, o gênero), deixando um gosto de 4chan na boca do expectador. Outra: no filme ela é obcecada pelo jogo como ferramenta para derrotar os “sixers”, e não pelo jogo em si, como no caso do Wade. A mensagem subliminar é que o cara tem motivos puros, e só ele é um verdadeiro gamer; já ela é gamer por conta de sua agenda oculta, e nada mais. O jogo, para ela, é apenas um meio para atingir um fim, e tem toda uma estrutura por trás (gente, equipamento, organização) para dar apoio a essa agenda oculta. O Wade, não: ele é todo jogo, todo obsessão pelo prazer da obsessão e pela necessidade da obsessão, uma vez que encontrar o easter-egg é a única saída para ele da vida medíocre que leva. Essa é, na minha avaliação, uma postura bem chauvinista do filme, ainda que disfarçando atribuir ares de nobreza para Art3mis. E isso sem mencionar que ela é a única que faz as conexões “sentimentais” ou “românticas” das pistas, em uma alusão besta de que “precisa da delicadeza de uma mulher” para fazer esse tipo de conexão. Chauvinismo disfarçado, mais uma vez.
Bom, acabei de assistir hoje. Todo mundo vainter sua lista de “Easter Eggs” (Ovos de Pascoa? Ovos de Colombo...?), mas aqui são meus três favoritos. 1) Em primeiro lugar, me pergunto quantas pessoas sacaram o avatar de Sorrento? Do filme “Heavy Metal”, de 1981, Hannover Fist. https://m.youtube.com/watch?v=4D13KjR_Xvc 2) A lista de livros de Sorrento? “Kegels for men”? Kkkkkkkkkkkkkkk... https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Exerc%C3%ADcios_Kegel Reza-se a lenda que aumenta o tamanho do pau. 3) Só uma pessoa tremendamente não-nerd precisaria de um pedaço de papel para lembrar de sua log in.
Nossa! Hannover Fist! Eu jamais teria feito essa conexão! Demais! Excelente pegada do Kegel for Men, não tinha visto. E a primeira coisa que eu pensei quando vi o papel foi "lame!".
Olha, antes tivesse ido ver o filme sem grandes expectativas. Já ia concordar com o seu final "estou ficando velho" que resumiria porque eu não curti tanto o filme, mas, ontem, vi o "Pantera Negra" e foi muito bom! Quando um amigo me indicou o livro, ele disse que um filme seria dificílimo de ser feito porque eram vários mundos conectados. Seria muita tecnologia... O filme saiu, trouxe algumas coisas bacanas, mas deixou de lado aquele algo (mágico, bobo, saudoso?) que ficou por lá, nos anos 80. Como vc disse, estavam no livro, mas não vieram para a telona. Abs.
O que me dói é justamente isso, Jaylei: perder as "minhas" referências, que foram a parte mais legal do livro. Afinal de contas, joguei aqueles videogames, vi aqueles filmes no cinema, tinha as bolachas de quase todos aqueles discos, e por aí vai. Fazer o quê? Se tivessem feito o filme com as referências dos anos 80, acho que perderiam 90% do público/faturamento, e por mais que o Spielberg seja mágico, o objetivo do estúdio é ganhar dinheiro... Pena.