(A presente resenha não contém spoilers).
A série The Sinner (“A Pecadora”), recém lançada pela Netflix quebra — já em seu trailer — um mecanismo canônico dos mistérios de detetive. Enquanto a praxe é apresentar um corpo assassinado e passar a série toda buscando responder quem perpetrou o crime, em The Sinner esta resposta é entregue de bandeja. No trailer da série, vemos Cora Tannetti (representada pela deslumbrante Jessica Biel) levantar-se de sua esteira na praia, e brutalmente assassinar um jovem que se divertia a poucos metros de distância com a namorada e os amigos. Simples assim: não há dúvida sobre quem cometeu o assassinato, e essa inversão no mecanismo da série é brilhante, porque deixa no ar a pergunta que será perseguida por toda a temporada (já inteiramente disponível na Netflix): por quê? Por que uma dona de casa, mãe de um garoto de 3 anos, levando uma vida pacata, simplesmente “surta” e comete um crime impensável?
Naqueles momentos em que observamos Cora levantar-se, caminhar brevemente pela areia e plantar a faca no jovem, podemos conectar a ação a um momento semelhante, esse ocorrido na literatura. Vemos Mersault, o estoico estrangeiro de Albert Camus, caminhar pela praia e assassinar a tiros o árabe desconhecido de quem se aproximara.
“E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça”, nos diz Mersault, na narrativa de Camus. A mesma certeza temos acerca de Cora, em especial porque diferentemente de Mersault, seu crime não fora cometido em uma praia deserta, mas sim em meio a uma multidão de testemunhas.
The Sinner foi criada por Derek Simonds, que também é roteirista da minissérie sobre o movimento pelos direitos dos homossexuais When We Rise (“Quando nos Levantamos”). A série explora de forma bem diferente o gênero, e os efeitos são excelentes. Em outras produções, quando é preso, “o mocinho” luta com todas as suas forças contra os policiais que querem demonstrar sua culpabilidade. Em The Sinner, logo de largada, essa é uma possibilidade que não existe, e o policial da vez, Harry Ambrose (interpretado pelo excelente Bill Pullman) não age como o clichê de sempre. Enquanto Cora se vê impotente, disposta a aceitar seu futuro trancafiada em uma cela, Harry — triste, perdido, depressivo — não se conforma com a falta de lógica do ocorrido, e sai em busca de respostas. Outra inversão: a mocinha que tenta correr em busca de sua condenação, encontrando um obstáculo no policial que tenta entender o que ocorreu, ao invés de aceitar de bom grado um caso de solução trivial.
O passo das ações é lento, tortuoso, imprevisível. O sofrimento de todos os envolvidos é visível, e sentimos como se todos estivessem sendo torturados pelos acontecimentos. Nesse sentido, The Sinner se assemelha às séries escandinavas de mistério, até porque o enredo — baseado no livro homônimo da escritora alemã Petra Hammesfahr — é de excelente qualidade com dramas pessoais se entrelaçando com a trama principal e ótimas atuações de todos os envolvidos.
O clima sombrio só se aprofunda com o desenrolar da história, e este fato aproxima The Sinner de outra série de sucesso: True Detective (a primeira temporada, obviamente). Nessa outra excelente história, a cada pista encontrada por Marty (Woody Harrelson) e Rust (Matthew McConaughey) ficamos com mais certeza de que algo muito tenebroso aconteceu. O mesmo sentimento se constrói — praticamente no mesmo ritmo — em The Sinner. A cada cena de cada episódio, apesar de pouco descobrirmos sobre o que de fato aconteceu, vamos nos convencendo cada vez mais que a resposta será terrível, dolorosa, horrenda. Ficamos meio que hipnotizados, tal qual um animal silvestre paralisado pelas fortes luzes dos faróis que rapidamente se aproximam pela estrada escura, sem conseguir (ou querer) nos mexer, ao mesmo tempo ávidos e temerosos pelo desfecho.
A série é curta: tem apenas 8 episódios de 45 minutos cada. E, no fim, temos o fechamento completo do arco narrativo, o que inverte outro mecanismo certeiro das séries de mistério: a resolução apenas após várias temporadas. Não vou dizer como acaba, obviamente, mas é importante saber que a história acaba no fim do oitavo episódio. Se os produtores optarem por uma segunda temporada, teremos um enredo novo, diferente deste que assistimos.
Nesse sentido, se de fato houver uma segunda temporada de The Sinner, tomara que os produtores invertam mais essa também, e que as semelhanças com True Detective terminem por aí. A segunda (e última) temporada de True Detective foi um fracasso monumental, apesar da cuidadosa produção e do elenco estelar.
Até agora as inversões de The Sinner funcionaram muito bem, e espero que a série mantenha essa toada, caso os produtores optem por uma segunda temporada.
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[…] o assassino”. A exemplo de The Sinner, outra série fantástica desses últimos tempos, e que já resenhei aqui no Confrariando, Seven Secondsresponde logo na primeira cena quem é o assassino. Ou seja, Veena Sud remove o […]