Era um céu bonito, azul e gélido de uma primavera bem-vinda. As mãos trêmulas buscavam as luvas quentinhas nos bolsos confusos do casaco elegante. Um sentimento todo caloroso tomou conta de sua alma no momento em que vestiu as luvas benditas. Um sorriso trouxe tanta emoção, que mal pode conter tamanha alegria e satisfação. Era algo tão simples, mas acompanhado de um sentimento tão gostoso, acolhedor, amplo, magnífico. Despediram-se dos amigos e voltaram para casa, caminhando. As ruas de Londres são belíssimas, tudo tem um tom tão nostálgico, impactante e suave, quase um êxtase poder desfrutar desse cenário, mesmo em meio ao frio.
A casa majestosa, rica em detalhes perturbadores de tão belos, escondia uma alegria simples de uma família que, muito além de posses, dinheiro e fama, tinha mesmo a alegria por viverem juntos. Sentada numa escrivaninha de um modelo muito antigo e requintado, ela escrevia a última parte de um roteiro para um filme a ser rodado logo mais. Um chá quente e a vista de um enorme, lindo e florido jardim a acompanhava naquela jornada deliciosamente solitária. Faltava uma última inspiração para fechar mais um trabalho repleto de perfeições delicadas de amorosidade. O gole do chá frutal, marcante e aconchegante se misturou aos pensamentos mais profundos e sentimentos mais sorridentes. Levantou os olhos e viu o marido correndo com os filhos no jardim, numa alegria rica, em meio a uma diversão escandalosamente triunfante. Sorriu com a alma toda. Sentiu o mesmo aconchego de quando colocou as mãos gélidas e trêmulas nas luvas quentes. O que seria aquilo?
Há muito tempo, em momentos distintos, nas mais variadas situações, sentia subir aquela sensação deliciosa e deixava que tomasse conta até que explodisse tudo num sorriso bem puro. De repente sentiu muita necessidade de dar uma nome àquilo, tão bonito, encantador, que trazia tanta luz ao seu coração e que insistia em aparecer cada vez mais, do nada.
O marido saiu com as crianças. Beijou, abraçou todos e sentiu novamente “aquilo”. Ouviu a porta bater e pairar todo o silêncio da imensidão daquele lugar. Deixou o roteiro inacabado, colocou seu mantra favorito e decidiu meditar. O sentimento era tão bom que estava incomodada em não saber classificá-lo. Sabia que fechando os olhos e encontrando-se consigo mesma, alguma resposta viria. Mesmo que a resposta fosse apenas acalmar a mente para conseguir voltar à sua escrita. Era uma tática muito benéfica unir a meditação ao seu trabalho de escritora, como se um movesse o outro. Fechou os olhos. Queria sentir “aquilo” de novo para poder entender o que era. Sorriu. Se há controle, não há meditação. Sentiu-se patética. Fez suas respirações e se entregou àquele momento. Já no último exercício de respiração, surge uma lembrança bonita de quando morava no Brasil. Um ensaio fotográfico, realizado por um amigo muito querido e excelente profissional, que a salvou dela mesma num momento bem complicado. Lembrou de uma das fotos que fez e teve a mesma sensação, que estava agora tentando classificar.
Lembrou de como foram dias difíceis dentro dela. O momento econômico do país não ajudava e faltava trabalho e ânimo. Foram dias de muita tristeza interna e transformação a olhos vistos fora dela. E havia uma seleção natural de pessoas a entrar e sair de seu mundo. Um esquema todo estranho de pessoas novas e muito bondosas aparecendo e fazendo a diferença naquele cenário. E outras, tão irmãs, agindo de forma totalmente indiferente e estranha. Foi nesse exato momento que outras coisas ficaram tão mais bonitas. O relacionamento com o amado nunca esteve tão intenso, cúmplice e apaixonado. A família mais presente do que nunca. E começaram a acontecer muitas bênçãos milagrosas, quase que diárias. Eram mesmo presentes divinos e ela conseguia sentir cada um deles como uma experiência incrível de merecimento e alegria. A tristeza começou a se esvair e deu lugar à observação. Foi nesse momento em que aconteceu esse ensaio fotográfico. E aquela foto no lago, talvez a mais especial delas, apareceu em meio à meditação e trouxe consigo aquelas lembranças todas. E a meditação ainda nem havia começado, estava apenas e ainda no campo dos pensamentos, deixando que agissem como tivessem que agir para que depois fossem embora. Eis que lembrou do momento em que fechou os olhos para aquela foto do lago e de todo o sentimento que percorreu cada pedaço dela naquele instante. Era mais que uma pose apenas. Era uma entrega, era uma forma toda especial de devolver todo amor que estava recebendo naquele momento da vida, apesar de tudo estar tão confuso dentro dela. Era gratidão, da mais pura, simples e doce. E foi então que “aquilo” tomou conta dela toda e ela descobriu: “aquilo” era sentir gratidão. Sorriu de paz. As lágrimas escorreram pelos olhos fechados, em prece. Os pensamentos, finalmente, silenciaram e ela pode meditar. A entrega foi ainda maior. Voltou ao ouvir o barulho das crianças e aquela gargalhada gostosa do amado. Abriu os olhos, sorriu. Beijou e abraçou todos. Sentiu “aquilo” de novo. E agora sabia que havia aprendido a realmente sentir a gratidão. E ficou imensamente grata por sentir e não apenas saber.
Terminou o roteiro numa tranquilidade sem igual. Juntou-se à família para lanchar e sentiu de novo. O sorriso era certo ao perceber que amor e gratidão caminham juntas e quão abençoada ela sempre foi por ter ambos. E se tem ambos, pode-se dizer que se tem tudo, mesmo quando se acha que algo falta. Não falta. Nunca faltou, mas ela demorou a chegar a essa lógica tão simples. Não importa, cada um tem seu tempo e seu caminho de entendimento e de evolução. Tudo acontece exatamente quando precisa acontecer, nem antes, nem depois. Tudo me parece muito mais exato do que podemos imaginar e, ao mesmo tempo, muito mais mágico do que possa se medir.
Outro chá quente, beijos e abraços e a certeza de tudo ter sido exatamente como foi necessário que fosse. E a vida seguiu mais leve, serena e intensa. A felicidade mora mesmo é dentro da gente.
É isso e é só.
Créditos da foto: Wellington Johnny Araújo Cunha
https://www.instagram.com/wjohnny_photography/
Juro que queria ouvir outros comentários. Alguém que dissesse que o texto não presta, que a autora é uma louca e que diz essas coisas por ter dinheiro ou que não existe nada disso de “a felicidade mora em mim”... Querida Daniela, o seu texto teve uma intensidade enorme para mim. Li pensando no Amor, mas já sabendo pelo título que a palavra que viria seria Gratidão. Li pensando na Paz. Na paz interior, que sossega, revela, nos conduz, tanto a abraçar nossas sombras como a amar, a nós e ao outro, seja o outro quem for. Ouvi ontem que só podemos dar o que temos e receber o que necessitamos. Grato pelo que foi, pelo que é, pelo que virá. Grato hoje, aqui. Sou cético, com pouca fé, mas aberto ao que desconheço ou não alcancei maior profundidade de conhecer. A razão me guia, mas a verdade é que o intangível me assola e me assopra: confie, siga, deixe o pensar e sinta. Sigo e vou te dizer, estou no caminho. Sinto. :) Gratidão.
Jaylei querido! Que alegria encontrar sempre seus comentários sempre tão lindos, francos e doces! Li, pensando em carinho! Gratidão, muita! Grande abraço!!