No último dia 05 de janeiro, o jornalista norte-americano Michael Wolff publicou o que, em tempos menos peculiares, teria sido o equivalente editorial de uma bomba atômica: naquela data, veio a público seu livro Fire and Fury – Inside The Trump White House (editora Little & Brown, 2018).
Antes de entrarmos no livro, uma pequena confissão: sou apaixonado por livros de ficção científica, fantasia e, em especial, um gênero literário chamado weird fiction (ficção esquisita, na tradução literal). Quanto mais criativo e fantasioso o enredo (desde que bem escrito, claro), mais me interesso, mais aprecio. Em especial, o autor britânico China Mièville tem obras muito a meu gosto (aliás, põe muito nisso). Mulheres com cabeça de escaravelho que secretam uma pasta pelas mandíbulas, que esculpem em obras de arte valiosas; aranhas gigantescas que tecem e alteram a realidade com suas narrativas; mariposas interdimensionais que se alimentam de toda a consciência de uma pessoa, esgotando-a, defecando em seguida uma droga alucinógena poderosíssima, e por aí vai.
Menciono Mièville e sua ficção esquisita por uma razão simples: em Fire and Fury – Inside The Trump White House Michael Wolff consegue, com seu “enredo”, chegar ao nível das personagens e aventuras do autor britânico.
Michael Wolff é jornalista conhecido da mídia de Nova York: durante anos cobriu com acidez a própria mídia para a revistas New York Magazine e Vanity Fair. Entre os livros de sua autoria, encontra-se uma biografia de Rupert Murdoch, o australiano naturalizado americano dono do império Fox News, e um dos líderes do movimento conservador nos EUA.
Para escrever Fire and Fury, Wolff conta, no prefácio do livro, que passou incontáveis horas na Casa Branca, tanto em conversas com Donald Trump como em entrevistas — mais de 200, segundo o próprio autor — com inúmeras fontes de seu gabinete e dos funcionários da sede do poder nos EUA.
O livro se propõe a contar a história da ascensão de Trump à Casa Branca e seu primeiro ano de governo, em 22 capítulos. A intenção original era cobrir os 100 primeiros dias do governo do 45o presidente dos EUA, mas uma vez iniciado o périplo, Wolff se viu em uma roda-viva da qual é difícil enxergar um ponto de saída. Eu meio a tanto material e a revelações tão bombásticas que suas entrevistas iam angariando, o período do livro foi se estendendo a ponto de cobrir quase que a totalidade do primeiro ano de governo.
O livro de Wolff se inicia antes das eleições, em maio de 2016, quando Trump ainda era visto como um candidato esquisito e inviável. Naquele momento, para quem se lembra da eleição, o peso-pesado era Jeb Bush, irmão do ex-presidente George W. Bush, filho do outro ex-presidente George H. W. Bush, e ex-governador da Florida. Antes do nome de Trump apareciam ainda os nomes dos senadores Marco Rubio e Ted Cruz, como mais viáveis postulantes à candidatura pelo Partido Republicano.
Naquele momento, na residência de Trump em Beverly Hills, assistindo ao então candidato devorar meio quilo de sorvete Häagen-Dazs, Wolff começou a coleta do material, passando pelo processo de nomeação, pelo repúdio sofrido por Trump do establishment do Partido Republicano, pelo apoio do oportunista Steve Bannon, a eleição, a posse, e tudo o que veio desde então, inclusive a investigação de colusão com o governo russo para “azeitar” a eleição.
Imagino que toda história de sucesso tenha bastidores no mínimo peculiares, claro. Nada é tão brilhante e arrumadinho como o que aparece na imprensa oficial. Se pudéssemos, por exemplo, conhecer as minúcias da eleição do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2002, certamente que iríamos descobrir coisas do arco da velha escondidas nas reuniões e decisões do candidato, de seus assessores e de seu partido (o mesmo vale, obviamente, para qualquer eleição de qualquer candidato).
Ainda assim, seria muito difícil imaginar uma história tão estapafúrdia, tão surreal, tão absolutamente incrível quanto a da eleição de Trump. Bem, na verdade algo semelhante em termos de ficção (uma comédia, aliás) não só já foi imaginado, mas produzido com sucesso para o cinema, mas antes de falar disso, é preciso contextualizar a situação. Voltemos, então, a Trump.
O ponto pivô das revelações de Fire and Fury é nada menos do que explosivo: Trump não só não acreditava que venceria a eleição, como não tinha a menor intenção de vencer. Isso mesmo: segundo Wolff, Donald J. Trump não queria ser presidente.
O livro conta sem nenhuma cerimônia que Trump tinha interesse em expandir seus negócios e sua marca pessoal, e para tanto traçou o plano de uma candidatura com base na indignação, na falta de correção política, nas inclinações reacionárias do povo. Por meio dessa candidatura, Trump tinha interesse de ver seu nome ainda mais proeminente entre seus expectadores, pois vinha de uma produção bem-sucedida do reality show O Aprendiz, em sua versão original americana. Por meio dessa aceleração de sua marca pessoal, o candidato tinha o objetivo maior de criar um canal de televisão, base para construir um império da mídia, talvez rivalizando seu ídolo Rupert Murdoch.
Sim, Trump concorreu à presidência pensando em criar um canal de televisão. Nunca teve — até vencer a eleição — intenção de ser presidente dos EUA.
Não era só Trump que pensava na eleição como alavanca: seus próprios parentes e assessores mais próximos pensavam e agiam da mesma forma. Wolff afirma que não só era pensamento corrente na campanha que Trump não ganharia, mas que provavelmente, para o país, isso era uma boa notícia. Steve Bannon, um de seus assessores mais próximos (hoje posto para fora da Casa Branca e do círculo próximo a Trump) vinha de um pequeno e estridente site conservador chamado Breitbart News, e visava construir para si uma marca forte — leia-se: de projeção internacional — em notícias com viés conservador. Kellyanne Conway, coordenadora de campanha de Trump, não escondia que queria o posto de âncora (ou pelo menos, colaboradora sênior) de algum jornal televisivo.
O plano era perder. E o tiro, como qualquer um pode enxergar, saiu desastrosamente pela culatra.
A improvável eleição de Trump assemelha-se à comédia de Mel Brooks, de 1967, Primavera para Hitler, como lembra o próprio Michael Wolff. No filme, um produtor teatral falido e um contador têm uma ideia brilhante: vender várias quotas a mais da produção de uma peça fadada ao fracasso: uma vez constatado esse fracasso, não precisariam pagar os financiadores. Escolhem, para tanto, uma peça mostrando em uma luz positiva e laudatória a figura de Adolf Hitler e seu Terceiro Reich. Infelizmente, a performance do ator principal é tão hilariante que a peça se transforma em um sucesso imediato, colocando os dois personagens principais no centro de um problema enorme: como pagar a conta?
No caso de Trump, a situação é semelhante: atirou no que viu, acertou no que não queria acertar.
Com essa premissa em mente, Wolff se dispõe a contar como é a rotina, quem são e como atuam os personagens principais da Casa Branca de Trump e, principalmente, como passou a agir o presidente eleito desde que sua improvável vitória se concretizou.
Exemplo: como ninguém pensava em vencer, ninguém se propôs a criar uma lista de nomes para o gabinete, para os principais postos do governo. Não havia um plano viável, detalhado, de governo. Não havia planos para uma transição do governo de Barack Obama. É impensável conceber uma equipe — e, em seu cerne, um presidente eleito — tão fragorosamente despreparados para ocupar o posto mais importante do planeta.
O resultado é uma sequência de erros e ações descoordenadas e absurdas que até agora deixavam muita gente coçando a cabeça. Por que Trump se candidatou se não tinha interesse de tornar públicas suas declarações de impostos? A resposta é simples, segundo nos mostra Wolff: porque não pensava em ganhar e, com isso, não precisaria apresentar essa documentação. Por que se entregou ao nepotismo escancarado, designando sua filha e genro a postos-chave no governo? Porque não pensava em ganhar e, portanto, não coordenou previamente com nomes aptos e mais desejáveis para os postos em questão. Por que sua primeira ação no governo foi uma desastrosa proibição de entrada de muçulmanos no país, rapidamente repelida e cujo principal resultado foi jogar o governo no ridículo? Porque não acreditando na própria vitória, Trump não se deu o trabalho de concatenar uma lista viável (e legalmente abalizada) de ações para seus primeiros 100 dias de governo. E por aí vai.
De uma forma ou de outra, todas as desventuras do desastroso governo Trump podem ser facilmente explicadas como sendo decorrência da vitória improvável e absolutamente não planejada nas eleições de 2016.
Trump, claro, viu uma oportunidade enorme com sua vitória, e fez a volta de 180o em seus planos no momento em que os resultados saíram. Seu narcisismo, sua megalomania, sua capacidade de tecer uma “realidade pessoal” (em muitos casos, pouco aderente à realidade que o resto de nós temos de enfrentar) levaram-no a crer que era seu destino que o resultado fosse a vitória. Jogou com os preconceitos e inseguranças de uma parcela da população que se acreditava esquecida pelo governo, e ganhou de presente a oportunidade de pôr em prática suas ideias.
E que ideias são essas? Wolff nos mostra, capítulo a capítulo, que ideias substanciais, bem pensadas e bem planejadas não fazem parte do métier do presidente eleito. À medida que vamos lendo, percebemos que Trump não tem atenção suficiente para ouvir, e muito menos paciência para planejar. Adora ser adulado, prefere falar do que escutar, e não lê absolutamente nada do que se apresenta a ele na forma impressa. Seu bordão “Make America Great Again” é o sonho pueril (fortemente incentivado por Steve Bannon) de levar a América de volta a um suposto passado de glórias como nos dez anos entre 1955 e 1965, em que o país atingiu seu apogeu econômico e de influência política. Esquece-se de que, para chegar àquele ponto, os EUA tiveram que emergir como única potência industrial viável depois de uma Guerra que praticamente motonivelou todas as demais nações desenvolvidas. Em suma, a “grandeza” que Trump aspira para seu país é uma fantasia nos dias de hoje, e o que se pode atingir dela é apenas a desigualdade nas relações sociais que também eram presentes naquela época de glórias: afrodescendentes sendo tratados como inferiores, mulheres sendo abusadas como cidadãos de segunda classe, imigrantes vistos como lixo, total desrespeito pelo meio ambiente, e por aí a fora. Esta é a única porção do que ainda é possível desse sonho delirante de volta à grandeza, e a que o governo de Trump se entrega gostosamente.
O livro de Wolff é fundamental para entendermos a situação dos EUA e do mundo nos dias de hoje. É, apesar das revelações bombásticas, um testamento ao poder do populismo, uma vez que mesmo diante de suas revelações, o eleitorado de Trump continua firme na defesa de seu presidente. Não importa seu comportamento sexual predatório. Não importa sua misoginia. Não importa sua falta de conhecimento, e seu desinteresse por aprender as nuances de governar. Não importa que suas ações durante a campanha sejam enquadradas como atos de traição à pátria, uma vez que seus assessores — entre eles, seu filho — associaram-se ilegalmente à Rússia para obter supostas informações negativas sobre Hillary Clinton, sua oponente. Não importa seu narcisismo ou as incoerências que saem de sua boca em decorrência de ser apaixonado por seu suposto (e inexistente) intelecto. Não importa nem que suas ações no governo vão contra os interesses de seus eleitores mais necessitados.
Sua sintonia com a psique do americano “esquecido” pelo governo é forte demais, mesmo frente às graves revelações do livro de Wolff. Enquanto vozes se levantam para questionar a inadequação de Trump para o cargo que ocupa, seus defensores gritam ainda mais alto o bordão “Make America Great Again”.
Este fato não sugere bons augúrios para o futuro. O livro de Wolff traça um quadro com uma sutileza que poucos analistas têm comentado: a eleição de Trump mudou —permanentemente, é mais que provável — o nível do jogo político, e o fez na esfera mundial, dado que os EUA são a vitrine ditando os padrões da “moda” política planetária. Trump muda a ordem de grandeza do populismo, do histrionismo, do nacionalismo, do conchavo político, do discurso de exceção. A realidade de sua presidência abre as portas para que outros, ainda mais radicais e impensáveis, aspirem ao seu posto. Atitudes que antes eram facilmente vistas como antiéticas e imorais, desconsideradas na esfera política a não ser pelos que eram vistos como pontos fora da curva, malucos e excêntricos, agora são encaradas como estando dentro da esfera da normalidade.
Um presidente objetivamente incapaz de conduzir um país com responsabilidade, como o quadro pintado por Wolff apresenta? Não tem problema. Um gabinete de sicofantas tecnicamente incompetentes, tendo como característica desejável apenas a defesa feroz e a adulação ilimitada de seu chefe? Não tem problema. Ações governamentais que privilegiam o 1% mais rico e objetivamente prejudicam os 40% mais pobres da população? Não tem problema. Traição à pátria com o objetivo de atingir objetivos políticos? Não tem problema. Nepotismo descarado? Não tem problema. Incentivo ao preconceito racial e ao nacionalismo? Não tem problema.
O que boa parte da população americana diz (como se pode ver nos inúmeros comentários aos artigos publicados sobre o assunto), mesmo diante das revelações de Wolff é isso: não tem problema essa nova “normalidade”. E isso é — ou deveria ser — brutalmente preocupante.
Para o bem ou para o mal, o progresso da Humanidade ocorre essencialmente porque não respeitamos fronteiras. Nem sempre é fácil ultrapassá-las, mas de vez em quando conseguimos deixar uma delas para trás. A partir daí os que vêm depois constroem sobre o que o primeiro transgressor obteve como resultado. A bem da verdade, todo o progresso científico que fomos capazes de atingir desde que nos firmamos como espécie dominante no planeta, tem sido conseguido dessa forma.
O mesmo vale para as movimentações sociais e, obviamente, políticas. Trump tem quebrado barreiras antes impensáveis por qualquer um afeito ao jogo político. Ele muda o jogo de patamar, e estabelece o “novo normal”. Não que tenha sido o primeiro a propalar e agenciar as ideias normalizadas: muitos foram os déspotas e fascistas que desposaram ideias e ações semelhantes, e até mesmo mais radicais. Ocorre que esses eram vistos como exceções, como contraexemplos a serem evitados a todo custo. Aqui no Brasil, para ficarmos apenas em um caso mais recente, Fernando Collor e seu triunfalismo picareta são ridicularizados por todos os que conhecem a história de sua presidência.
Porém, não é o caso de Trump. Depois dele, os arrivistas e aventureiros políticos do mundo todo têm um novo e vasto campo de atuação à sua frente, já que o comportamento antes visto como indesejável, está mais que normalizado: é ovacionado por parte significativa da população.
O que vem por aí, não sabemos. Mas o livro de Wolff aponta para um futuro nada brilhante em que é até possível olharmos para a presidência de Trump dentro de duas ou três décadas e sentir saudade de tempos mais equilibrados e tranquilos.
Isso se ele próprio não decidir fechar a fatura da Humanidade, com seu botão maior, mais poderoso e que funciona.
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