Quando se tem um trabalho fixo, com carteira assinada, o fim do domingo é motivo, para muitos, de grande agonia. A espera amarga pela segunda-feira tem gosto de um arrastar de correntes, bem rotulado pelo sistema, pela sociedade, chame como quiser. E quando não se tem emprego fixo, qual o sabor do domingo? No começo tem sabor de sorvete de pistache em tarde de férias, assim de pés descalços numa grama molhada ainda pelo orvalho, balão colorido de parque e sorriso certeiro. São tantas possibilidades, tantos projetos, tanto trabalho invisível correndo aos montes, que só pode dar certo e logo. E de repente você se dá conta de que não é bem assim, talvez não seja.
Depois de um tempo, com um bico aqui e outro acolá, o fim do domingo tem gosto de limão. A boca fica azeda de ansiedade por não saber quando, afinal, as coisas irão realmente fluir, prosperar. E nada acontece. Os trabalhos autônomos ficam cada vez mais escassos, os muitos amigos desaparecem, a falta de rotina vira sua rotina diária, assim sem sal. O desânimo toma conta num dia, a esperança no outro, e assim os dias vão passando. Quando você se dá conta já foram meses. E nada. A segunda metade do ano vai começar, o ano vai terminar. E nada. Foi no meio de tanto nada que achei que deveria buscar algum sentido perdido, algo que eu não deveria estar enxergando por algum motivo e que me faria voltar ao mercado de trabalho, seja ele qual fosse. Usei tanto a mente, quase fundiu, e o que descobri? O mais irritante nada.
Passei três semanas em profunda tristeza, daquelas de passar o dia todo de pijamas, me achando vítima da vida, me entupindo de chocolate para ver se era possível tapar o buraco no peito, aberto pelo vitimismo. Esse processo foi muito doloroso, mas hoje percebo como foi bonita a transformação que aconteceu dentro de mim, aqui no meu mundo tão particular e intenso. Eu estava cega, de tristeza, de raiva, de revolta. Tão cega, que mal podia ver o tanto que tenho, o tamanho do que sou. E nesse momento, o que sou por essência, mas que nem lembrava que era, cercou-me em formato de outras pessoas. O amor, em sua forma mais pura. Meu marido, meus pais, pouquíssimos amigos. Era tanto amor, tanto carinho, tanto colo, que não tive outra alternativa que não fosse tomar impulso, no fundo do poço, e subir com toda força quanto me coubesse na alma. Eu sei que foi meu amor próprio quem me chamou de volta, mas essas pessoas se vestiram de amor e me deram a mão, cada uma a seu modo, no seu tempo, e em sua profundidade. Meu companheiro de vida, meu cúmplice, meu amor, me envolveu numa grandeza tão bonita e aconchegante de apoio, de todas as formas, e então me senti forte. O olhar dele dentro do meu, me dizia o tempo todo, e sempre diz, que está tudo bem, que é possível, que vai dar certo. Sempre. E então acreditei.
Além disso, durante não só esse processo, como também por toda a vida, a Espiritualidade sempre se fez presente. E me emociono ao sentir isso. É muita presença divina, sempre. E foi saboreando também essa presença, que voltei à vida, agora com novos olhos. Não da noite para o dia, mas fui me refazendo aos poucos e da forma mais honesta possível, respeitei o tempo que meu coração quis. Aprendi tanto, vi tanta coisa, senti tudo, me fiz mais inteira do que nunca.
Hoje estou em paz, num equilíbrio interessante de uma alegria serena, silenciosa e misteriosa. Tantas coisas aconteceram e ainda estão em andamento, prontas para explodirem em glória, como mereço de fato. Quando? Eu não sei. Acontece que aprendi a ser paciente, tolerante. Zero de controle é libertador demais. Quando aceitei o que é, o que está, no agora, as coisas pareceram ficar mais simples, mais prazerosas. Não, minha vida profissional ainda não está fluindo, pelo menos não como eu gostaria. Ainda não. O que aconteceu foi que, ao invés de olhar para tudo o que não tenho, escolhi olhar para tudo o que tenho. E eu tenho tanto! A gratidão invadiu tudo o que sou, tudo o que sinto, vejo, penso. A sensação de completude vem justamente de não ter tudo. É insano, eu sei. Talvez por isso, eu aprecie tanto. Não entendo e acho engraçado não entender. Eu só sei que vai passar.
Continuo a plantar minhas sementes e eu sei, com a mais absoluta certeza, de que no tempo certo florescerá um jardim encantador e colorido, como sempre sonhei e busquei. Quando tudo se encaixa, chamo isso de milagre. Quando tudo se encaixa, mesmo que eu não saiba, chamo isso de fé. A vida é um milagre, meus caros.
Já dizia, o sábio, Guimarães Rosa, “quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo”. Assim sinto e creio. Assim é e está feito.
É isso e é só.
1- "....sorvete de pistache em tarde de férias, assim de pés descalços numa grama molhada ainda pelo orvalho, balão colorido de parque e sorriso certeiro." Com emprego ou sem, me convida?? 2- "...os muitos amigos desaparecem..." Não eram, né? Ou tbm tinham seus caminhos, suas dores, não sabiam o que fazer? 3- "Meu marido, meus pais, pouquíssimos amigos. Era tanto amor, tanto carinho, tanto colo, que não tive outra alternativa que não fosse tomar impulso, no fundo do poço, e subir com toda força quanto me coubesse na alma." Essa última vai pro Facebook porque, para alguns, basta acreditar, ter fé, basta querer/sonhar e eu acho que não. Não somos seres solitários, ainda que sejamos, e saber aceitar o amor, ter quem o dê "de grátis" e de vê-lo como uma dádiva, é capaz de fazer "milagres" na mente, corpo e alma.
Ah, bora para o sorvete de pistache!rs Reflexões lindas, como sempre!! Gratidão! Abraço grande!