Este artigo é a conclusão do publicado na semana passada: Tempos Sombrios. Lá analisamos os falsos pressupostos e os cálculos parciais que o atual governo faz para justificar sua proposta de reforma da previdência.
Aqui veremos, em linhas gerais, as principais alterações previstas na PEC 287/16, destacando as consequências e objetivos delas. Assim como antes, apesar de farta bibliografia pesquisada, utilizaremos principalmente o material da ANFIP e do Dieese, que podem ser consultados na íntegra em suas 242 páginas, ou em sua síntese de 48 páginas.
Normalmente nos apegamos ao tempo de idade e de contribuição como os pontos mais graves, mas na verdade são 15 as principais alterações que o governo propõe, argumentando que a unificação dos regimes acabaria com as injustiças e privilégios.
O sistema realmente unifica trabalhadores urbanos e rurais, homens e mulheres. Segundo a proposta, todos teriam que trabalhar no mínimo (destaque para no mínimo) até os 65 anos de idade, e teriam que ter contribuído com no mínimo 25 anos, e não por 15 anos como é agora.
Já há uma idade mínima, de 65 anos (apenas para trabalhadores homens urbanos), ou 35 anos de contribuição, com bônus de 5 anos para as mulheres. Essa regra existe desde a Emenda Constitucional 20, de 1998. O Fator Previdenciário, criado durante o governo Fernando Henrique – e superado pela reforma de 2015 que combina idade+contribuição – previa um desconto no valor a receber para quem se aposentasse antes desta idade.
O que a PEC 287/16 faz é desconsiderar a situação dos trabalhadores mais pobres e menos qualificados, e trabalhadores rurais, que não têm condição alguma de continuar no trabalho braçal até essa idade. Além disso, se a pessoa perder o emprego aos 63 anos, por exemplo, dificilmente conseguirá se empregar para este tipo de trabalho – o que o impedirá de se aposentar. Mesmo que consiga, os valores a receber só serão iguais aos de hoje se ele tiver contribuído por 49 anos inteiros. A chance de isso não acontecer é enorme, o que significa, no mínimo, uma drástica redução de seus vencimentos.
Na prática, o que tende a ocorrer é que, para os poucos que conseguirem se aposentar, os benefícios serão muito reduzidos. Não chegarão aos 76% dos valores atuais, conforme estima o governo. Serão ainda menores, pois os 20% menores salários não serão descartados do cálculo, como ocorre hoje. Uma drástica redução do poder de compra dos aposentados será prejudicial, obviamente, para o próprio trabalhador, mas também para o país que não contará com seu poder de consumo que estimula a produção. Estaremos promovendo novo período de concentração de renda, diferente do que constatamos no período 2002-2014, como pode ser visto aqui, em especial para a população mais velha.
A proposta também desconsidera a dupla jornada feminina ao abolir a diferença de idade e tempo de contribuição entre homens e mulheres. Mesmo os trabalhadores não braçais serão os únicos a serem duramente atingidos. Qual o gestor, vendedor, segurança, professor, analista de sistemas, enfermeiro, secretário, motorista, (poderia fazer uma lista infinita) que, perdendo o emprego aos 55 anos, consegue se recolocar, principalmente em períodos de alto desemprego? É claro que as empresas preferirão pessoas mais jovens, com mais energia, mais dispostos a piores condições de trabalho, mais familiarizados com novas tecnologias. Imagine isso após os 60 anos, ainda longe da aposentadora. Por isso, esta proposta significa, na prática, que muitos dos que hoje estão com menos de 50 anos nunca se aposentarão. No caso da educação, como a proposta elimina direitos dos professores ao exigir que eles também trabalhem até os 65 anos e reduz seus benefícios, tornará a profissão ainda menos atraente, o que tende a piorar a qualidade do setor ao deixar de atrair bons profissionais.
A chamada regra de transição não é menos draconiana. Todos os homens abaixo de 50 anos e mulheres abaixo de 45 anos irão direto para nova regra. Isso é completamente diferente de outras experiências de transição em reformas previdenciárias ao longo do mundo. Isso é importante pois faz parte do imaginário popular – estimulado pela gigantesca propaganda governamental – de que em todo mundo a previdência é mais dura que no Brasil, onde seria generosa demais.
Pela importância, reproduzo aqui dois quadros dos estudos da ANFIP que comparam a situação mundial. A figura abaixo mostra as alterações em alguns países nos últimos anos, bem como seu tempo de transição. Note que são países com população mais idosa, mais ricos, com menor concentração de renda e com maior rede de proteção social que no Brasil.
Figura 1 – (ANFIP, 2008, p.90)
Analise o quadro acima, mas não se engane: idade de referência não é idade mínima. O próprio estudo da ANFIP afirma:
Em geral, a “carência mínima” para a idade que assegura o direito ao recebimento do benefício básico, ou pedido de aposentadoria antecipada, é inferior a “idade de referência”, que é o limite legal de idade estipulado para o recebimento da pensão completa. (ANFIP, 2008, p.90)
É exatamente o que nos confirma o quadro abaixo. Note que a diferença entre idade mínima e idade de referência chega a até 10 anos, como em Portugal, por exemplo:
Figura 2 – (ANFIP, 2008, p.90)
Logo, os que nos governam hoje e que chegaram ao poder por meios heterodoxos (para não chamar de golpe e desagradar alguns leitores e amigos) utilizam a idade máxima para aposentadoria integral nestes países – e com décadas para transição – para instituir aqui idades mínimas imediatamente, para quem já contribuiu por até 30 anos e que se aposentaria em poucos anos.
Mas não é só isso. A proposta prevê que essa idade mínima aumente ao longo do tempo, de acordo com a expectativa de sobrevida da população. Estima-se então que daqui a 30 anos ela chegue a 67 anos. Ou seja, nossos filhos ainda não se aposentarão integralmente aos 65 anos nem se começarem a trabalhar com 16 anos. É isso que deixaremos para eles? Esse tipo de política?
Por isso também a pressa em aprovar de qualquer forma esta proposta: nenhum candidato seria eleito propondo esta reforma. Ela só é possível de ser aprovada em momentos únicos, de recessão econômica, crise política e falta de legitimidade, como o momento em que vivemos.
Mas, como já apontei acima, há outros pontos muito importantes nesta proposta. Há um enorme festival de maldades diluídas ao longo da PEC:
- Maiores dificuldades e redução dos valores pagos na aposentadoria por invalidez (acidentes e doenças do trabalho);
- Redução dos direitos – alcance, situação e benefícios das aposentadorias especiais decorrentes de situações perigosas e degradantes do trabalho – insalubridade e periculosidade;
- Redução dos valores das pensões – podendo ser até inferiores ao salário mínimo, o que vai afetar drasticamente a parcela mais pobre da população, que é maior parte dos atendidos pela previdência pública;
- Proibição do acúmulo de pensão e aposentadoria, que hoje garante uma renda mínima às famílias mais pobres;
- Redução dos valores do Benefício de Prestação Continuada para idosos e pessoas com deficiência, em especial – novamente – aos de baixa renda;
- Ignora as diferenças de contribuição e de financiamento dos regimes público e privado, igualando benefícios pagos pelos dois sistemas. Mas deixa-se de fora setores como os militares e possivelmente a polícia (dada a pressão do setor), aparelhos de repressão dos governos contra os protestos que estas políticas prejudiciais à população e ao próprio desenvolvimento sustentável do país já estão desencadeando.
O governo se defende também dizendo – cinicamente – que quem quiser se aposentar deverá fazer uma poupança própria – o sistema financeiro está adorando a ideia de gerenciar estes recursos de longo prazo. Não deixa de ser sintomático que um importante membro do governo, que elaborou a proposta, seja conselheiro do sistema privado de previdência.
Mesmo assim, num país de economia instável como a nossa, onde outros sistemas de proteção ao trabalhador também estão sendo desmontados, onde o trabalho tende a ser precarizado – por exemplo com a ideia de terceirização total – onde os recursos públicos para saúde e educação por habitante serão reduzidos nos próximos 20 anos – como é possível imaginar que a maioria da população vai conseguir ter uma reserva pessoal e segura para se aposentar?
Não se trata de uma reforma. Trata-se da destruição do sistema de proteção previdenciária, concentrando renda, transferindo recursos públicos para o setor financeiro, reduzindo direitos, piorando a qualidade de vida dos mais velhos – mas também dos mais jovens ao aumentar a procura por empregos – o que achatará ainda mais os salários médios.
Por isso, iniciei a primeira parte deste artigo, na semana passada, falando de cinco grandes questões que estão na ordem do dia do debate político e são completamente articuladas:
- A substituição de um governo eleito por outro que, sem legitimidade, aplica um programa completamente oposto, com apoio da antiga oposição que não ganha eleições com seu programa;
- A corrupção para financiamento das eleições e para enriquecimento ilícito. Fica cada vez mais claro que foi usado como simples argumento para depor um governo (e um determinado programa) por outro, não eleito;
- O corte dos gastos públicos e a consequente privatização – e redução do poder de compra dos trabalhadores;
- A reforma trabalhista que representará uma piora nas condições de trabalho e nos rendimentos dos mais pobres – e um consequente aumento da concentração de renda que já é escandalosa no Brasil;
- E, finalmente, a reforma previdenciária, que tratamos neste artigo.
Fazem parte de um todo que, se não for combatido desta forma e integralmente pelo conjunto dos trabalhadores – públicos, privados, braçais, intelectuais e por conta própria, homens e mulheres – nos fará retroceder décadas rumo a um país pior, mais desigual e mais cruel, como tínhamos antes.
Referências pesquisadas:
http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2016/12/PEC-287-2016.pdf
Previdência: reformar para excluir? – síntese http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_21_02_2017_17_30_29.pdf
Previdência: reformar para excluir? – completo http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_21_02_2017_17_29_36.pdf
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/03/1863267-reforma-da-previdencia-sob-suspeicao.shtml
http://cut.org.br/noticias/reforma-da-previdencia-sera-o-estopim-da-rebeldia-popular-cd0b/
http://brasildebate.com.br/a-previdencia-social-nao-tem-deficit/
(https://www.youtube.com/watch?v=pP2IGTZOS4M)
http://confrariando.com/tempos-sombrios/
http://confrariando.com/a-populacao-de-campinas/
http://confrariando.com/agosto-ou-contragosto-55-anos-depois/
Imagem: Nonell – Two Poor Men Sleeping. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Isidre_Nonell_-_Two_Poor_Men_Sleeping_-_Google_Art_Project.jpg
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