Nos últimos dias, tenho folheado a obra de Gilles Lipovetsky (A Era do Vazio). Eu usei o verbo folhear e não o verbo ler porque o texto desse filósofo francês é tão denso que, ao ler uma única página, sou levada a reflexões tão profundas que tenho que voltar à tona para tomar meu fôlego e, somente depois de um tempo, voltar à próxima página para mergulhar novamente.
Lipovetsky desenvolve suas ideias sobre o que poderíamos chamar de pós-modernidade e conceitos como o processo da personalização e neonarcisismo despertam meu especial interesse. Ao ler esse pensador e mais alguns outros como Zygmunt Bauman (autor de Modernidade Líquida), tenho certeza de que somos testemunhas de uma grande era de transição. Vivemos a insegurança daqueles que já não se afirmam sobre as bases da modernidade e que ainda não encontraram novas bases para se afirmar. Vivemos numa fluidez que nos faz escorregar por tobogãs sem destino.
Nesses tobogãs aquosos, não temos onde nos segurar e contamos apenas com nosso próprio Eu. Talvez, por isso, a individualidade esteja valorizada como nunca estivera. Uma desenfreada busca por si mesmo, o encontro da própria consciência. E, nessa trajetória líquida, tornam-se populares “técnicas psi” que se prestam a apoiar o ser humano em busca de sua alma: meditação, ginásticas orientais, bioenergética, terapia reichiana, dentre outras.
“Canalizando as paixões para o Eu, que assim se promove a umbigo do mundo, a terapia psi, ainda que seja colorida por corporalidade e filosofia oriental, gera uma figura inédita de Narciso, hoje identificado ao homo psychologicus.” (LIPOVETSKY, 2005, p. 36)
O Narciso de nossa contemporaneidade vive um neonarcisismo que exaure o Eu a ponto de torná-lo impreciso, sem contorno definido. Talvez, da sobrecarga da “autoprocura”, o indivíduo de hoje tenha se esvaziado.
“O neonarcisismo não se contentou em neutralizar o universo social esvaziando as instituições de seus investimentos emocionais, é o Eu que desta vez se apresenta despido, esvaziado de sua identidade, paradoxalmente por seu hiperinvestimento.” (LIPOVETSKY, 2005, p. 36)
Nossa contemporaneidade institui o indivíduo livre como valor principal, mas foi a revolução do consumo que permitiu o desenvolvimento dessa ideologia individualista. Ou seja, sob um prisma, a individualidade pode parecer um caminho à liberdade pessoal; sob outro prisma, a individualidade é submissa à sociedade de consumo. É pelo consumo que o neonarcisismo se consolida: o consumo para se realizar pessoalmente, o consumo para se conquistar singularidade subjetiva, o consumo para se atingir uma personalidade incomparável.
O consumidor neonacisista: tão individualizado e tão influenciável. A personalização que se consolida pelo narcótico chamado consumismo. O encontro da subjetividade interna na aquisição do objeto externo.
É… não consigo deixar de lançar meu olhar crítico à nossa contemporaneidade. Tenho consciência de como a cultura do consumo pode ser nociva, coercitiva, discriminatória e alienadora.
Ao mesmo tempo, sou uma consumidora ativa. Ah… a delícia do consumo… Vitrines que hipnotizam nosso olhar. Lojas que embriagam nosso olfato. Promotoras de venda que seduzem nosso paladar. Cores, cheiros, sabores: overdoses de prazeres físicos e mentais. Eu gosto de saltitar como uma criança pelos corredores de shopping centers. Fico hipnotizada pelas belas vitrines tão minuciosamente elaboradas por especialistas. Sinto prazer ao encher minhas mãos e braços de sacolas de compras.
Pode parecer uma dissonância perceptiva de minha parte. Meu olhar social cai com rigor sobre a cultura do consumo. Meu olhar privado cai seduzido pelas compras. O que posso dizer em minha defesa? Talvez, nada. Simplesmente confessar que sou uma espécie de mutante que vive na transição de eras. Talvez eu seja uma criatura que cultiva sua visão crítica de mundo e que, ao mesmo tempo, deixa-se impregnar pela sedução narcísica dos apelos de uma sociedade consumista.
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Foto de Ruy Flávio de Oliveira
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio. São Paulo: Manole, 2005.
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