AVISO: Essa resenha contém (alguns) spoilers.
A Marvel e o Netflix mantêm uma parceria próspera. A empresa de entretenimento, ligada às HQs e ao cinema, encontrou na plataforma de streaming, que também atua como produtora, uma possibilidade de desenvolver projetos relacionados ao portfólio de super-heróis e vilões, em continuidade e, às vezes, complemento ao conteúdo produzido para o cinema. O primeiro fruto dessa parceria é a série O Demolidor, que está prestes a estrear a terceira temporada, a partir da qual surgiram alguns spin-offs, com heróis de segunda grandeza no panteão da Marvel. É o caso de séries bacanas como Luke Cage, Jessica Parker, Punhos de Ferro e Os Defensores. Ao longo dos episódios dessas histórias, somos apresentados a alguns personagens clássicos oriundos dos quadrinhos, em que o bom mocismo reina: são personagens-tipo, lineares, que veremos passar por provações. Nesses casos, sua formação passa por um processo que envolve trauma, desencanto e crescimento. Já outros personagens são um tanto atípicos, o que é o caso da série O Justiceiro: mais dura, mais realista.
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Para início de conversa, Frank Castle é um anti-heróDoi e já nasce fruto de um baita trauma e desencanto: nos quadrinhos, ele atuou como agente federal disfarçado que teve sua família assassinada pela Máfia, que decidiu então combater o crime sem a misericórdia tão presente nos demais personagens Marvel. Criado nos anos 1970 por Gerry Conway, Ross Andru e John Romita, e tendo como grande incentivador o próprio Stan Lee (Quando você vai aparecer na série, Stan?), o personagem era uma forma de incorporar ao universo das HQs o cenário de crescente criminalidade percebido nos E.U.A. no fim da década de 1970 e início de 1980.
Grandes cidades americanas – como Detroit, Los Angeles e Nova York – tornaram-se vitrine dos efeitos dessa crescente criminalidade. Nada mais natural, portanto, instalar Castle em Nova York, antro da criminalidade, com forte presença das Máfias italiana e irlandesa. Assim, naquele contexto, a Máfia e o tráfico de entorpecentes eram vistos como os grandes elementos corruptores da sociedade americana. Com isso, o protagonista ganhou história pregressa: ex-fuzileiro, veterano da Guerra do Vietnã, psicótico. Também evoluiu, a cada nova sequência de histórias: foi um dos primeiros personagens a matar seus inimigos, que mudaram da Máfia dos anos 1970 para os cartéis internacionais de drogas dos anos 1980. Castle então era um vigilante mais próximo do cidadão comum, que pode portar armas e se defender, se preciso. Por esse motivo, as histórias em quadrinhos desse exército de um homem só sempre foram um sucesso de vendas para a Marvel, tendo sido um dos primeiros personagens a ser adaptado para o cinema.
Nada mais natural, portanto, que a história do Justiceiro fosse repaginada na série para o fim de um conflito recente – a guerra contra o jihadismo no Iraque e no Afeganistão. Enquanto as demais séries da Marvel estão alinhadas com uma postura mais positiva de seus protagonistas, a lógica das tramas de Castle é básica, mas contundente: uma lei de Talião adequada aos tempos atuais. A partir desse princípio, os roteiristas da atual produção dão moldes novos a Castle e reconfiguram as tramas dos quadrinhos para a atualidade. O Justiceiro continua um ex-fuzileiro, mas agora membro de um esquadrão da morte, associado às operações secretas do governo americano em solo estrangeiro. O argumento da Máfia e da delinquência nas ruas – já bem datado – é eliminado no primeiro episódio, com a rápida execução de mafiosos e assaltantes de ocasião sem armas por Castle. Assim, desfazendo-se da história de fundo que movia o personagem nas HQs, os roteiristas permitem a série ter uma nova perspectiva sobre problemas bem atuais: a relação permissiva entre política, mercado e crime; a invasão de privacidade derivada do uso das novas tecnologias de informação e comunicação por governos e grupos de interesse; a problemática da psicose dos veteranos que, em última instância, tem derivado nos massacres e atentados terroristas, a liberalização no controle de armas nos E.U.A. e em outros lugares do mundo (o que foi muito bem discutido pelo texto do confrade Ruy, Balela perigosa, na ocasião do massacre do cassino Mandalay Bay, em Las Vegas). As drogas como elemento corruptor da família se tornam um motivo periférico, em detrimento do lobby político, da quebra de direitos dos cidadãos promovida pelo próprio governo e da virtualização do cotidiano. Palmas para a série Black Mirror que nos conscientizou a respeito dos impasses advindos das tecnologias de informação e comunicação, o que foi devidamente tratada por nossos cronistas marcianos.
Mas o bacana não fica somente nas ações do protagonista da série, mas nas relações entre as pessoas: tomadas de violência, fragmentadas e, no mais das vezes, corrompidas. Na série, Castle (que é muito bem interpretado pelo ator Joe Bernthall) teve a família morta, cujas reminiscências ele retoma de maneira quase ritualística, preso em um padrão de comportamento em que – de maneira ambígua – a única possibilidade de interagir com seus filhos seria pelo medo. Comunicando-se por gestos e frases curtas, gruturais, ele encarna parte do imaginário do homem contemporâneo ocidental – quase incomunicável, como o personagem, devido aos impasses da correção política: voltar a ser um self-made man americano, alfa, restituído em sua patriarcalidade, mesmo que de uma família morta, nos moldes dos heróis clássicos americanos como os cowboys de impávidos de John Wayne, ou ainda o cavaleiro solitário de Clint Eastwood.
Outro personagem componente da mitologia dos quadrinhos do Justiceiro, o Microship (Ebon Moss-Bachrach), é um ex-analista da NSA, que se fingiu de morto para escapar da perseguição de seu próprio governo, por ter divulgado o programa de tortura e execuções do qual Castle participava no Afeganistão. O parceiro de Castle desde então acompanha sua família – mulher e dois filhos, como a família executada do próprio Justiceiro – à distância, por meio de câmeras e escutas instaladas por toda a casa. Então temos duas situações inusitadas ali: Micro até prefere se relacionar com a família à distância, em uma perspectiva voyeurista e romântica, ao mesmo tempo em que quebra a privacidade necessária e salutar da vida em família, e que ajuda a promover os laços de confiança e de segurança. É um mundo em ruínas.
Temos também a personagem da agente federal de segurança interna Dinah Madani (Amber Rose Revah), que mostra os impasses e contradições de uma mulher de família de imigrantes afegãos em cargo de liderança simbólica – mas não efetiva – que não consegue solucionar a execução sumária de seu parceiro da polícia afegã pelo esquadrão de Castle, enganados pelo sinistro diretor de operações secretas da CIA Rawlins (Paul Schulze). Ela enfrenta também a problemática da geração de imigrantes de primeira geração crescidos nos E.U.A. que podem concluir seus estudos e se estabelecer em solo americano, e que foram afetados pela revogação pelo governo Trump das políticas de concessão de cidadania e de auxílio a refugiados. Além disso, vive um caso com Billy Russo (Ben Barnes), melhor amigo de Castle à época do Afeganistão e agora dono de empresa de consultoria internacional e nacional em segurança privada (um eufemismo para mercenário contratado). Órfão relegado ao sistema de adoção, um alpinista social, metrossexual, um quê de sádico e de arrivista, sem empatia. Com as cicatrizes, sofridas no fim da temporada, teremos então o Retalho, o arquinimigo clássico das HQs do Justiceiro, repaginado.
Esses e outros personagens representam – por meio das cicatrizes, estigmas e traumas, aparentes ou não – a sensível fratura social em que vivem os americanos na atualidade. A figura do lobo solitário se faz agora devidamente absorvida pela indústria cultural. Para variar, O Justiceiro faz sucesso novamente, não sabemos se por empatia plena com a personagem ou pela contundência da história. Afinal, ele vai atrás dos corruptos e, bem ou mal, coincide muito bem com o momento em que vivemos: o público parece curtir esse Capitão Nascimento americano, sem refletir sobre seu aspecto trágico. Vamos aguardar as próximas temporadas com muito interesse!
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